domingo, 23 de junho de 2013

A Caverna dos Antigos - Lobsang Rampa

T. LOBSANG RAMPA
A CAVERNA DOS
ANTIGOS

3a Edição


Tradução de AFFONSO BLACHEYRE

RECORD
DISTRIBUIDORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO

1963

A MAX E VALERIA SOROCK, DOIS   QUE   PROCURAM   A  
VERDADE


PREFÁCIO

Este é um livro que trata do Oculto e dos poderes do
Homem. É livro simples, no sentido de que nele não há
"palavras estrangeiras", palavras em sânscrito, nem coisa
alguma de línguas mortas. A pessoa média quer SABER as
coisas, e não ficar a adivinhar palavras que o autor médio
tampouco compreende! Se um autor sabe trabalhar, pode
escrever, sem ter de disfarçar sua falta de conhecimento
com o emprego de uma língua estrangeira.
Um número demasiado de pessoas deixa-se envolver pela
confusão. As leis da Vida são realmente simples; não há
necessidade alguma de revesti-las de cultos místicos ou
pseudo-religiões. Tampouco existe qualquer necessidade de
que alguém afirme ter tido "revelações divinas".
QUALQUER PESSOA pode obter as mesmas "revelações",
se se esforçar por elas.
Nenhuma religião tem em si as Chaves do Céu, nem pessoa
alguma será condenada para sempre, por ter entrado em
uma igreja com o chapéu na cabeça, ao invés de tirar os
sapatos. À entrada das lamaserias tibetanas, lê-se a inscrição:
"Mil monges, mil religiões". Qualquer que seja nossa crença,
se ela englobar o "faze ao próximo o que queres que te seja
feito", teremos êxito, quando soar o Chamamento final.
Alguns dizem que o Conhecimento Interior só pode ser
obtido ingressando-se neste ou naquele culto, ao mesmo
tempo em que se faça o pagamento de uma contribuição
substancial. As Leis da Vida dizem: "Procura e encontrarás".
Este livro é o fruto de toda uma vida, de ensinamentos
obtidos nas grandes lamaserias do Tibete e de poderes
conquistados por uma observância rigorosa das Leis. Trata-se
de conhecimento transmitido pelos Antigos, e se acha
inscrito nas Pirâmides do Egito, nos Altos Templos dos
Andes e no maior de todos os repositorios de
conhecimentos ocultos do mundo, o Planalto do Tibete.
T. LOBSANG RAMPA
1

A noite era quente, deliciosa, invulgarmente quente para
aquela época do ano. Erguendo-se com suavidade no ar
onde não soprava vento algum, o odor doce do incenso
trazia tranqüilidade a nosso espírito. Muito longe, o sol se
punha, em um resplendor de glória, por trás dos cumes altos
dos Himalaias, conferindo às montanhas de cimos nevados a
coloração de vermelho-sangue, como a prevenir que o solo
tibetano se impregnaria de sangue, em dias futuros.
Sombras que se alongavam morosamente rastejavam em
direção à cidade de Lhasa, vindas dos picos gêmeos da Potala
e de nosso próprio Chakpori. Abaixo de nós, à direita, uma
caravana retardada de viajantes vindos da índia serpenteava
em direção ao Pargo Kaling, ou Portão Ocidental. Os
piedosos peregrinos que haviam ficado para trás seguiam
desajeitadamente apressados em seu circuito da Estrada
Lingkor, como a recear serem apanhados pela escuridão
aveludada da noite, que se aproximava com rapidez.
O Kyi Chu, o Rio Feliz, corria alegremente em sua intérmina
jornada até o mar, apresentando clarões brilhantes de luz,
como homenagem ao dia que findava. A cidade de Lhasa
refulgia com o brilho dourado das lâmpadas de manteiga. Da
Potala próxima, uma trombeta soou, ao Jinal do dia, suas
notas estendendo-se pelo Vale, repercutindo nas superfícies
rochosas e regressando a nós, com o timbre modificado.
Olhei para o cenário conhecido, fitei a Potala, as centenas de
janelas iluminadas, enquanto os monges de todos os graus
tratavam de suas atividades, ao encerramento do dia. Por
cima do edifício imenso, próxima aos Túmulos Dourados,
uma figura solitária, distante e sozinha, estava em vigilância.
Quando os últimos raios do sol desapareceram abaixo das
cordilheiras, voltou a soar uma trombeta e um canto
profundo ergueu-se do Templo, lá embaixo. Com rapidez, os
últimos vestígios de luz se desvaneceram e as estrelas no céu
formaram um esplendor de pedraria contra um pano de
fundo purpúreo. Um meteoro rebrilhou no céu, explodindo
em glória chamejante, antes de cair na Terra como poeira
fumegante.
Uma bela noite, Lobsang! — disse a voz que eu tanto
amava.
Uma bela noite, não há dúvida, — respondi, enquanto me
punha rapidamente em pé, para poder fazer reverência ao
Lama Mingyar Dondup.
Ele sentou-se ao lado de uma muralha e me fez um gesto
para que o imitasse. Apontando para cima, disse:
Você percebe que gente, você e eu, podemos ter um
aspecto como aquele?
Eu o fitei espantado, sem saber tomo poderia eu ter o
aspecto de estrelas no céu noturno. O lama era um homem
grande, de belo aspecto, a cabeça de aparência nobre. Ainda
assim, não se parecia com uma coleção de estrelas! Ele riu-se
de minha expressão intrigada.
Literal como sempre, Lobsang, literal como sempre,
— comentou, sorrindo. — Eu queria dar a entender que as
coisas não são sempre o que parecem. Se você escrevesse
"Om! mani pab-me Hum", e com letras tão grandes que
preenchessem todo o Vale de Lhasa, as pessoas não o
conseguiriam ler, pois seria grande demais para ver.
Èle se deteve na explicação, observando-me para verificar se
eu a acompanhava, e depois prosseguiu:
Do mesmo modo, as estrelas são "tão grandes" que não
podemos determinar o que realmente formam.
Olhei para ele, como se o meu guia houvesse enlouquecido.
As estrelas, formando alguma coisa? As estrelas eram — bem
— estrelas! Depois, pensei em uma escrita tão grande que
enchesse o Vale e que assim se tornava ilegível, devido a tais
dimensões. A voz gentil prosseguiu:
Pense em você encolhendo, encolhendo, tornando-se
tão pequeno quanto um grão de areia. Qual seria meu
aspecto para você, então? Suponha que se torne ainda
menor, tão pequeno que o grão de areia passe a ser tão
grande quanto um mundo, para você. Nesse caso, o que
seria de mim? — perguntou, detendo-se e passando a me
fitar com um olhar penetrante. — Bem? — perguntou. — O
que você veria?
Eu continuei sentado, boquiaberto, o cérebro paralisado com
o pensamento, a boca aberta como se fosse um peixe que
haviam acabado de atirar à terra.
Você veria, Lobsang — disse o Lama —, um grupo de
mundos amplamente espaçados, flutuando nas trevas. De-
vido a seu tamanho minúsculo, você veria as moléculas de
meu corpo, como mundos separados, com espaço imenso
entre elas. Você veria mundos girando ao redor de mundos,
você veria "sóis", que seriam as moléculas de certos centros
psíquicos, você veria um universo!
Meu cérebro rangia, eu era capaz de jurar que a "maquinaria"
acima de minhas sobrancelhas tinha um estremecimento
convulsivo, com o esforço que eu despendia a fim de
acompanhar todo aquele conhecimento estranho e
emocionante.
O meu guia, o Lama Mingyar Dondup, estendeu a mão à
frente, e com gentileza ergueu meu queixo.
Lobsang! — disse, com uma risadinha. — Os seus
olhos estão ficando vesgos, no esforço por me acompanhar.
Voltou a sentar-se, rindo, e deu-me alguns momentos para
que eu me pudesse recuperar um pouco. Em seguida,
exclamou:
Olhe o tecido de seu manto. Apalpe-o!
Obedeci, sentindo-me notavelmente aparvalhado enquanto
fitava o traje velho e esfarrapado que eu usava. O Lama
observou:
É tecido, algo liso ao tato. Você não pode ver através
dele, mas imagine que o examina por um vidro de aumento,
que amplie dez vezes a visão. Pense nos fios grossos de lã
iaque, cada qual, dez vezes mais grosso do que você está
vendo, agora. Conseguiria perceber a luz entre os fios, mas
amplie os mesmos um milhão de vezes, e conseguirá passar
entre dois a cavalo, a não ser que cada fio se tornasse grande
demais para escalar!
Eu compreendia, agora que me era mostrado. Permaneci
sentado, pensando, assentindo, enquanto o Lama dizia:
Como uma mulher velha e decrépita!
Senhor! — exclamei, finalmente. — Nesse caso, toda a
vida é uma porção de espaço, salpicado de mundos.
Não é tão simples assim — respondeu ele — mas sente-se
de modo mais confortável, e eu falarei de um pouco do
Conhecimento que descobrimos na Caverna dos Antigos
A Caverna dos Antigos! — exclamei, cheio de curiosidade
ávida. — O senhor ia falar-me sobre isso, e sobre a
Expedição!
Sim! — disse ele, para me acalmar. — E vou falar, mas
antes examinemos o Homem e a Vida, como os Antigos,
nos dias da Atlântida, os concebiam.
Em segredo, eu estava muito mais interessado na Caverna
dos Antigos, que uma expedição de altos lamas descobrira, e
que continha repositórios fabulosos de conhecimento e
artefatos, de uma Era em que a Terra era muito jovem.
Conhecendo tão bem o meu guia, sabia que de nada
adiantaria esperar que ele me contasse tal história enquanto
não estivesse pronto para fazê-lo, e que tal momento ainda
não chegara. Acima de nós, as estrelas brilhavam com todo
seu esplendor, sem sofrerem quase diminuição alguma da
luz, graças ao ar rarefeito e puro do Tibete. Nos Templos e
Lamaserias, as luzes se apagavam, uma por uma. De muito
longe, trazido pelo ar da noite, veio o lamento de um
cachorro, e os latidos de resposta dos que se achavam na
Aldeia de Shö, abaixo de nós. A noite era calma, até mesmo
plácida, e nenhuma nuvem encobria a face da Lua, que se
erguera fazia pouco. As bandeiras de oração pendiam inertes
e sem vida, nos mastros. De algum lugar, veio o estralejar
débil de uma Roda de orações, enquanto algum monge
piedoso, envolto na superstição e sem perceber a Realidade,
fazia a Roda girar, na esperança inútil de conquistar a graça
dos Deuses.
O Lama, meu guia, sorriu ao ouvir aquele som, e disse:
A cada qual segundo sua crença, a cada qual de acordo
com sua necessidade. Os aparatos externos da religião ceri-
monial são um consolo para muitos, e não devemos
condenar aqueles que ainda não percorreram uma distância
suficiente, na Trilha, e não conseguem ficar em pé sem tais
muletas. Vou-lhe falar, Lobsang, da natureza do Homem.
Eu me sentia muito achegado a esse Homem, o único que
demonstrara consideração e amor por mim. Ouvia com
atenção, a fim de corresponder à confiança que ele tinha em
mim. Pelo menos, foi assim que comecei a ouvir, mas logo
descobri que o assunto era fascinante, e que eu ouvia com
interesse completo e indisfarçado.
Todo o mundo é feito de vibrações, toda a Vida, tudo
que é inanimado consiste de vibrações. Até mesmo os pode-
rosos Himalaias — disse o Lama — são apenas uma massa de
partículas suspensas, na qual nenhuma delas pode tocar a
outra. O mundo, o Universo, consiste de partículas
diminutas de matéria, ao redor das quais outras partículas de
matéria rodopiam. Assim como o nosso Sol tem mundos a
circular em torno de si, mantendo sempre a distância, sem
se tocarem em momento algum, também tudo quanto existe
é composto de mundos em rodopios.
Ele parou, fitando-me, como a querer saber se tudo aquilo
estaria além de minha capacidade de compreensão, mas eu
estava compreendendo tudo, com facilidade.
Ele prosseguiu:
Os fantasmas que nós, os clarividentes, vemos no Templo,
são pessoas, pessoas vivas, que deixaram este mundo e
entraram em um estado no qual suas moléculas se acham tão
amplamente dispersas que o "fantasma" pode atravessar a
parede mais densa, sem tocar uma só molécula da mesma.
Honrado Mestre — disse eu — por que sentimos uni
formigamento, quando um "fantasma" passa perto de nós?
Cada molécula, cada pequenino sistema de "sol e planeta"
está cercado por uma carga elétrica, não o tipo de eletri-
cidade que o Homem gera com máquinas, mas de um tipo
mais refinado. A eletricidade que vemos brilhando no céu,
em algumas noites. Assim como a Terra tem as Luzes
Austrais, ou Aurora Boreal, brilhando nos pólos, também a
partícula mais insignificante de matéria possui suas "Luzes
Austrais". Um "fantasma" que se aproxima demasiadamente
de nós causa um choque suave à nossa aura, e é por isso que
ficamos com esse formigamento.
Ao redor de nós, a noite estava calma, sem um só sopro de
vento perturbando a tranqüilidade; reinava um silêncio que
só se conhece em países como o Tibete.
A aura, então, que nós vemos, é uma carga elétrica?
perguntei.
Sim! — respondeu meu guia, o Lama Mingyar
Dondup.
Em países fora do Tibete, onde os fios carregam uma
corrente elétrica em voltagens elevadas, estendidos sobre a
terra, observa-se um "efeito de corona", que é reconhecido
pelos engenheiros elétricos. Nesse "efeito de corona" os fios
parecem estar cercados por uma corona ou aura de luz
azulada. Observa-se principalmente em noites escuras e
nubladas, mas, naturalmente, está presente todo o tempo,
para aqueles que podem ver.
Dito isso, fitou-me com uma expressão reflexiva.
Quando você for a Chungking, para estudar medicina,
utilizará um instrumento que registra as ondas elétricas do
cérebro. Toda a Vida, tudo que existe, é eletricidade e
vibração.
Agora, estou perplexo! — respondi. — E como pode a
Vida ser vibração e eletricidade? Eu entendo uma, mas não
ambas.
Mas, meu caro Lobsang, — disse o Lama, rindo — não
pode haver eletricidade sem vibração, sem movimento! É o
movimento que gera a eletricidade e, portanto, os dois se
acham intimamente relacionados.
Notou que eu franzia a testa, espantado, e com seu poder
telepático leu meus pensamentos.
Não! — disse, então. — Não é qualquer vibração que
serve! Vou-lhe explicar o seguinte: Imagine um teclado
musical realmente vasto, que se estenda daqui ao infinito. As
vibrações, que consideramos como corpos sólidos, estarão
representadas por uma nota nesse teclado. A seguinte pode
representar o som, e a outra, a visão. Outras notas indicarão
as sensações, os sentidos, os intuitos, dos quais não temos
compreensão alguma, enquanto nos achamos nesta Terra.
Um cão pode ouvir notas mais altas do que o ser humano, e
este pode ouvir notas mais baixas do que um cachorro.
Palavras poderiam ser ditas ao cachorro em tons altos que
ele ouviria, sem que o humano sequer o percebesse. Do
mesmo modo, as pessoas do chamado Mundo Espiritual se
comunicam com aquelas ainda nesta Terra, quando o ser
terreno tem o dom especial da audição especial.
O Lama fez uma pausa, e riu de leve.
Não o estou deixando dormir, Lobsang, mas você terá
a manhã de folga, para descontar isso — declarou, e fez um
movimento com a mão, em direção às estrelas que
brilhavam com tanta clareza no ar puríssimo. — Desde que
visitei a Caverna dos Antigos e experimentei os
instrumentos maravilhosos de lá, instrumentos que ficaram
intactos desde os dias da Atlântida, muitas vezes me diverti
com um capricho. Gosto de pensar em duas pequenas
criaturas sencientes, menores do que o menor dos vírus.
Não importa que forma tenham, basta concordar que sejam
inteligentes e disponham de instrumentos super poderosos.
Imagine as mesmas, de pé sobre um espaço aberto em seu
próprio mundo infinitesimal (exatamente como estamos
agora!) "Puxa! É uma bela noite!", exclama A, fitando o céu
com atenção. "Sim", responde B, "faz a gente ficar pensando
no propósito da Vida, no que somos, para onde vamos." A se
cala, pensativo, fitando as estrelas que se estendem nos céus,
em número infinito. "Mundos sem limite, milhões, bilhões
deles. Quantos serão habitados?" "Bobagens! Sacrilégio! Ridí-
culo”! Gagueja B, "você sabe que não há vida senão em
nosso mundo, pois os Sacerdotes não afirmam que somos
feitos à Imagem de Deus? E como pode haver outra vida,
senão exatamente igual à nossa? Não, é impossível, você está
ficando doido!" A murmura para si próprio, com raiva,
enquanto se afasta: "Eles podem estar errados, você sabe,
eles podem estar errados!" O Lama Mingyar Dondup sorriu
para mim, dizendo:
Sei, até mesmo, de uma seqüência para isso! Ei-la: em
algum laboratório distante, dispondo de uma ciência com a
qual nem sequer sonhamos, e onde existiam microscópios
de poder fantástico, dois cientistas estavam trabalhando.
Um, sentado num banco, os olhos colados ao super-super
microscópio pelo qual espiava. De repente, teve um
sobressalto, empurrando o banco para trás, fazendo ruído e
riscando o soalho luzidio. "Olhe, Chan!" gritou para seu
ajudante. "Venha ver isto!" Chan se levantou, foi ter com o
Superior agitado, sentando-se diante do microscópio. "Estou
com a milionésima parte de um grão de sulfato de chumbo
na lâmina", disse o Superior. "Olhe só!" Chan ajustou os
controles e assoviou com surpresa completa. "Puxa!"
exclamou. "É como olhar o Universo, por um telescópio.
Um sol brilhando, planetas em órbita...!" O Superior falou,
em tom sôfrego: "Será que teremos uma ampliação
suficiente para ver um desses mundos individuais, será que
existe vida ali?" "Bobagens!" disse Chan, com brusquidão.
"Naturalmente que não existe vida senciente. Não pode
haver, pois os Sacerdotes não afirmam que somos feitos à
Imagem de Deus? Assim sendo, como é possível haver vida
inteligente ali?"
Sobre nós, as estrelas seguiam em seu curso, infinitas,
eternas. Sorrindo, o Lama Mingyar Dondup enfiou a mão no
manto e dali retirou uma caixa de fósforos, tesouro trazido
da longínqua Índia. Devagar, retirou um palito de fósforo e o
suspendeu.
Vou mostrar-lhe a Criação, Lobsang! — disse, em tom
alegre.
Com gestos deliberados, passou o fósforo pela superfície
áspera da caixa e, enquanto o mesmo irrompia em fogo, ele
o segurava. Em seguida, soprou, apagando-o!
A Criação e a dissolução — declarou. — O fósforo
aceso emitiu milhares de partículas, cada qual a separar-se
das demais, em explosão. Cada uma delas era um mundo
separado, o conjunto era um Universo. E o Universo
morreu, quando a chama se extinguiu. Você pode afirmar
que não havia vidas nesses mundos?
Eu o olhei com ar de dúvida, sem saber o que dizer.
Se eles eram mundos, Lobsang, e se tinham vida em si,
para essa Vida os mundos teriam durado milhões de anos. E
nós, seremos apenas um fósforo aceso? Estaremos nós vi-
vendo aqui, com nossas alegrias e pesares... na maior parte
pesares!... pensando que este é um mundo sem fim ?
Pense, e conversaremos amanhã mais um pouco.
Dito isso, ficou em pé e desapareceu.
Eu segui com passos pesados pelo telhado, tateando às cegas,
para o patamar da escada que dava para lá. Nossas escadas
eram diferentes das usadas no mundo ocidental, e
consistiam de postes com entalhes. Encontrei o primeiro
entalhe, o segundo, o terceiro, e logo meu pé escorregou
onde alguém derramara manteiga de uma lâmpada. Eu caí
estrepitosamente, chegando ao pé da escada de qualquer
maneira, vendo mais "estrelas" do que havia no céu par
cima, e fazendo surgir muitos protestos dos monges que
dormiam. Uma mão surgiu, na escuridão, aplicando-me um
cachação que fez minha cabeça retinir. Com rapidez, pus-
me em pé e saí correndo para a segurança da escuridão ao
redor. Tão silenciosamente quanto possível, descobri um
lugar onde dormir, envolto no manto e abandonando o
controle da consciência. Nem mesmo o arrastar de pés
rápidos me incomodava, nem as conchas e sinetas de prata
interromperam meus sonhos.
A manhã já ia alta, quando fui despertado por alguém que,
com grande entusiasmo, me dava pontapés. Os olhos
pesados, fitei o rosto de um cheia imenso.
Acorda! Acorda! Pela Adaga Sagrada, tu és um lorpa
preguiçoso!
Ato contínuo, deu-me novos pontapés — e com força.
Estendi a mão, apanhei-lhe o pé e o torci. Com um estrondo
de quebrar ossos, ele caiu ao chão, gritando.
O Senhor Abade! O Senhor Abade! Ele quer falar
contigo, imbecil!
Desferindo-lhe um bom pontapé, para compensar os muitos
que ele me dera, endireitei o manto e segui apressadamente.
"Não comi... não fiz desjejum!" resmungava para mim mes-
mo. "Por que motivo todo mundo quer falar comigo,
quando está na hora de comer?" Seguindo às pressas pelos
corredores sem fim, passando de carreira pelas esquinas,
quase causei ataque cardíaco a alguns monges velhos que
caminhavam por ali, tropegamente, mas cheguei à sala do
Senhor Abade sem perder tempo. Entrando com afobação,
caí de joelhos e fiz minhas mesuras demonstrativas de
respeito.
O Senhor Abade examinava meu Registro, e em certo
momento ouvi que ele conseguia abafar, às pressas, o riso.
Ah! — disse ele. — O rapaz rebelde, que cai nos
penhascos, passa graxa nas andas e provoca mais agitação do
que qualquer outro daqui!
Fez uma pausa, fitando-me com severidade, e prosseguiu:
Mas você estudou bem, extraordinariamente bem.
Suas capacidades metafísicas são de tal natureza, e você se
adiantou tanto no estudo, que vou mandá-lo estudar, de
modo especial e individual, com o Grande Lama Mingyar
Dondup. Você recebe uma oportunidade sem precedentes,
pela ordem expressa de Sua Santidade. Agora, apresente-se
ao Lama, seu guia.
Mandando-me embora, com um aceno da mão, o Senhor
Abade voltou-se novamente para seus documentos. Aliviado
pelo fato de que nenhum dos meus numerosos "pecados"
fora descoberto, saí à toda pressa. O meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, estava sentado e à minha espera. Fitando-
me com atenção, quando entrei, ele disse:
Já quebrou o seu jejum?
Não, Senhor — respondi —, o Reverendo Senhor Abade
mandou-me chamar, enquanto eu ainda dormia... eu estou
com fome!
Ele riu e disse:
Ah! Notei que você tinha um ar acabrunhado, como o
de quem sofreu algo. Vá saindo, faça seu desjejum e volte
para cá.
Não foi preciso ordenar duas vezes — eu estava com fome, e
isso não me agradava. Pouco sabia, naquela ocasião, embora
houvesse sido predito, que a fome me acompanharia por
muitos anos de minha vida.
Retemperado por um bom desjejum, mas abatido em espí-
rito pelo pensamento de mais trabalho duro à frente, voltei a
ter com o Lama Mingyar Dondup. Ele se pôs em pé quando
entrei.
— Venha! — disse. — Vamos passar uma semana na Potala.
Seguindo à frente, saiu do Salão, até um local onde um
monge-palafreneiro esperava, com dois cavalos. Cheio de
presságios, examinei o animal que me era destinado. Com
aspecto ainda mais agourento, o animal me fitou,
demonstrando a meu respeito opinião menos lisonjeira do
que a que eu tinha dele. Tomado do pressentimento de
desastre iminente, montei e segurei-me na sela. Os cavalos
eram criaturas terríveis, inseguras, temperamentais e não
tinham freios. Andar a cavalo era uma de minhas
habilitações menos destacadas.
Seguimos aos trancos pela trilha montanhosa que parte de
Chakpori. Atravessando a estrada Mani Lakhang, tendo o
Pargo Kaling à nossa direita, logo entramos na Aldeia de Shö
— onde meu guia fez uma parada rápida, e depois subimos
penosamente os degraus íngremes da Potala. Montar em
cavalo que sobe degraus íngremes é uma experiência
desagradável, e minha preocupação principal era não cair da
sela! Monges, lamas e visitantes, numa procissão incessante,
subiam e desciam os degraus, alguns parando para admirar a
vista, enquanto outros, que tinham sido recebidos pelo
próprio Dalai Lama, só pensavam nessa entrevista. No fim
dos degraus, nós paramos, e eu desmontei do cavalo, cheio
de satisfação, porém absolutamente sem estilo. Ele, pobre
coitado, deu um relincho de desagrado e voltou as costas
para mim!
Prosseguimos caminhando, subindo escada após escada, até
chegarmos ao nível alto da Potala, onde o Lama Mingyar
Dondup tinha aposentos permanentes, próximos à Sala das
Ciências. Dispositivos estranhos, vindos de países de todo o
muado, encontravam-se ali, mas os mais estranhos de todos
eram aqueles que tinham vindo do passado mais distante.
Assim, chegamos finalmente a nosso destino, e eu me
instalei por algum tempo no que era agora o meu quarto.
Da minha janela, bem alta, na Potala, apenas um andar
abaixo do Dalai Lama, eu podia examinar Lhasa, no Vale.
Bem ao longe, podia ver a grande Catedral (Jo Kang), seu
telhado dourado a refulgir. A Estrada Circular, ou Língkor,
estendia-se a distância, fazendo um circuito completo da
Cidade de Lhasa. Peregrinos piedosos a congestionavam,
todos eles vindos para prostrar-se diante do maior centro
mundial de conhecimentos ocultos. Fiquei maravilhado por
minha boa sorte, em ter um guia tão maravilhoso quanto o
Lama Mingyar Dondup; sem ele, eu seria um cheia comum,
vivendo num dormitório escuro, ao invés de estar quase no
ponto mais alta do mundo. De repente, e tão de súbito que
emiti um grito de surpresa, braços fortes agarraram os meus,
erguendo-me no ar. Uma voz penetrante disse:
- Então! Tudo que pensa, sobre o seu guia, é que ele o traz
para cima, na Potala, e que lhe dá aqueles confeitos
enjoativamente doces, que vêm da Índia? — perguntou,
rebatendo meus protestos com risadas, e eu estava cego ou
confuso demais para compreender que ele sabia o que eu
pensava a seu respeito!
Finalmente, ele disse:
Nós estamos em rapport, nós nos conhecemos muito
bem em uma vida anterior. Você já tem todo o
conhecimento dessa vida passada, e só precisa ser lembrado.
Agora, é preciso trabalhar. Venha a meu quarto.
Endireitei o manto, recoloquei no mesmo minha tigela, que
caíra quando eu fora erguido no ar, e segui apressadamente
para o quarto de meu guia. Ele, com um gesto da mão,
mandou-me sentar e, após eu o ter feito, disse:
E já pensou sobre a questão da Vida, em nossa con-
versa de ontem à noite?
Baixei a cabeça, um tanto desalentado, enquanto respondia.
Senhor, eu tive de dormir, depois o Senhor Abade quis
falar comigo, em seguida o senhor quis falar comigo, e eu
precisei comer, e depois o senhor quis falar comigo outra
vez. Não tive tempo de pensar em coisa alguma hoje!
Havia um sorriso no rosto dele, enquanto dizia:
Nós vamos falar mais tarde sobre os efeitos da comida,
mas antes disso voltemos a falar sobre a Vida.
Fez silêncio, estendendo a mão para um livro que estava
escrito em alguma língua estrangeira exótica. Hoje sei que
essa língua era o inglês.
Passando as páginas, ele encontrou finalmente aquela que
procurava. Entregando-me o livro, aberto de modo a ver
uma ilustração, ele perguntou:
Você sabe o que é isto?
Examinei a ilustração, e notei que era tão comum que
examinei também as palavras estranhas escritas por baixo da
mesma. Aquilo não significava coisa alguma para mim.
Devolvendo o livro, eu disse, em tom recriminador:
O senhor sabe que eu não posso lê-lo, Honrado Lama!
Mas você reconheceu o desenho? — persistiu ele.
Bem, sim, é só um Espírito da Natureza, sem diferença
das coisas daqui.
Eu me tornava cada vez mais perplexo. De que se tratava,
afinal de contas? O Lama abriu novamente o livro e disse:
Em um país distante, no outro lado do mar, a capa-
cidade geral de ver os Espíritos da Natureza foi perdida. Se
alguém, por lá, vir um Espírito assim, passa a ser assunto de
galhofa, e o vidente é literalmente acusado de "estar vendo
coisas que não existem". Os ocidentais não acreditam senão
nas coisas que possam ser retalhadas e examinadas, ou
seguras com as mãos, ou postas em uma gaiola. Um Espírito
da Natureza recebe, por lá, o nome de Duende... e eles não
acreditam nas histórias de Duendes.
Isso me deixou bastante espantado. Eu via Espíritos à todo
momento, e os considerava inteiramente naturais. Sacudi a
cabeça, procurando clarear as idéias.
O Lama Mingyar Dondup voltou a falar:
Toda a Vida, como eu lhe disse ontem à noite, consiste
de Matéria em vibração rápida, gerando uma carga elétrica, a
eletricidade é a Vida da Matéria. Como na música, existem
diversas oitavas. O Homem comum vibra em certa oitava, e
um Espírito Natural e um Fantasma vibram numa oitava
acima. Devido ao fato de que o Homem Comum vive, pensa
e crê em apenas uma oitava, os seres das demais oitavas lhes
são invisíveis!
Remexi em meu manto, pensando no caso: aquilo não fazia
sentido para mim. Eu conseguia ver fantasmas e espíritos
naturais e, portando, qualquer um deveria poder vê-los
também. O Lama, lendo meus pensamentos, respondeu:
Você vê a aura dos seres humanos. A maioria dos outros
seres humanos não a vê. Você vê os espíritos naturais e os
fantasmas. A maioria dos outros seres humanos não os vê.
Todas as crianças muito novas podem ver essas coisas,
porque os infantes são mais receptivos. E depois, à medida
que a criança se torna mais velha, as ocupações da vida
embrutecem suas percepções. No Ocidente, as crianças que
dizem aos pais que brincaram com Espírito são castigadas
por estarem mentindo, ou se vêem ridicularizadas por sua
"imaginação vívida". A criança não gosta de tal tratamento e,
após algum tempo, convence-se a si mesma de que tudo foi
imaginação! Você, devido à sua criação especial, vê
fantasmas e espíritos naturais, e os verá sempre... assim
como verá sempre a aura humana.
Quer dizer que até os espíritos naturais que tratam das
flores são o mesmo que nós? — perguntei.
Sim — respondeu ele —, o mesmo que nós, a não ser que
vibram mais depressa, e que suas partículas de matéria são
mais difusas. É por isso que você pode atravessá-los com a
mão, assim como pode atravessar com a mão um raio de sol.
O senhor já tocou... o senhor sabe, segurou... um
fantasma? — indaguei.
Sim, toquei! — respondeu ele. — Isso pode ser feito,
quando se eleva a velocidade das vibrações. Eu lhe falarei a
respeito.
Meu guia tocou a sineta de prata, presente dado por um Alto
Abade de uma das Lamaserias mais conhecidas do Tibete. O
monge-criado, conhecendo-nos bem, trouxe, não o tsampa,
mas chá de plantas indianas e aqueles bolinhos doces que
eram trazidos pelas cordilheiras, especialmente para Sua
Santidade, o Dalai Lama, e dos quais eu, um simples cheia,
gostava tanto. "Recompensa pelos esforços especiais no
estudo", como Sua Santidade dissera muitas vezes. O Lama
Mingyar Dondup percorrera o mundo, tanto no plano físico
quanto no astral. Uma de suas pouquíssimas fraquezas era a
preferência pelo chá indiano, fraqueza essa que eu
endossava com o maior gosto! Nós nos sentamos a cômodo,
e assim que eu terminei os meus bolinhos, o meu guia e
amigo falou:
Há muitos anos, quando eu era jovem, passei correndo
por uma esquina, aqui, na Potala... exatamente como você,
Lobsang! Estava atrasado para o Serviço, e para meu horror
vi um abade enorme, impedindo a passagem. Também ele
estava com pressa! Não havia tempo para desviar-me; eu
ensaiava minhas desculpas, quando colidimos, com toda a
força. Ele ficou tão alarmado quanto eu, mas eu estava tão
estupidificado, que continuei correndo, e assim não cheguei
atrasado, ou atrasado demais, afinal de contas.
Eu ri, pensando no digno Lama Mingyar Dondup, correndo!
Ele sorriu, prosseguindo:
Bem tarde, aquela noite, pensei no assunto. E pensei:
"Por que eu não posso tocar em um fantasma?" Quanto mais
pensava, tanto mais me decidi a tocar um deles. Preparei os
planos com cuidado, li todas as Escrituras antigas que tratam
dessas questões. Consultei também um homem muito sábio,
que vivia em uma caverna bem alta, nas montanhas. Ele me
contou muita coisa, pôs-me no caminho certo, e eu vou
contar como foi, porque leva diretamente ao tema de tocar
um fantasma.
Serviu-se de mais chá e sorveu-o durante algum tempo,
antes de prosseguir.
A Vida, como lhe disse, consiste em uma massa de
partículas, pequeninos mundos circulando ao redor de
pequenos sóis. O movimento gera uma substância que, por
falta de expressão melhor, chamaremos "eletricidade". Se
comermos de modo sensato, poderemos aumentar nossa
cadência de vibrações. Uma dieta sensata, que nada tem a
ver com aquelas idéias de certos cultos extravagantes,
aumenta a saúde da pessoa, e aumenta a cadência básica de
vibração. Assim, aproximamo-nos mais da cadência de
vibração do fantasma.
Ele se deteve, acendendo um novo bastão de incenso.
Satisfeito ao ver que a extremidade do mesmo brilhava de
modo satisfatório, voltou a dedicar-me sua atenção.
O fito único do incenso é aumentar a cadência de vi-
brações do lugar onde é queimado, e a cadência daqueles
que se encontram nesse lugar. Utilizando-se o incenso
correto, pois todos são preparados para uma certa vibração,
podemos atingir determinados resultados. Por uma semana,
eu me ative a uma dieta rígida, que aumentou minha
vibração ou "freqüência". Também durante essa semana,
queimei constantemente o incenso apropriado, em meu
quarto. Ao final desse período, estava quase "fora" de mim
mesmo; achava que flutuava, ao invés de andar, sentia
dificuldade em manter minha forma astral dentro da forma
física.
Olhou para mim, sorrindo, enquanto prosseguia:
Você não teria gostado de uma dieta tão rigorosa!
"Não", eu estava pensando, "prefiro uma boa refeição sólida
a qualquer fantasma!"
Ao fim da semana — disse o Lama, meu Guia — desci
para o Santuário Interno e queimei mais incenso, enquanto
implorava que um fantasma viesse e me tocasse. De repente,
senti o calor de uma mão amiga no ombro. Voltando-me
para ver quem perturbava minha meditação, quase caí de
costas, ao ver que estava sendo tocado pelo espírito de um
que "morrera" mais de um ano antes.
O Lama Mingyar Dondup parou abruptamente, e depois riu
alto, ao recordar a experiência de antes.
Lobsang! — exclamou, finalmente. — O velho Lama
"morto" riu para mim, e perguntou por que motivo eu me
dera a todo aquele trabalho, quando tudo que tinha a fazer
era entrar no plano astral! Confesso que fiquei
mortificadíssimo em pensar que uma solução tão óbvia me
escapara. Ora, como você sabe muito bem, nós passamos ao
astral para conversar com os fantasmas e os seres da
natureza.
Naturalmente, o senhor falava por telepatia — observei —
, e eu não conheço qualquer explicação para a telepatia. Eu a
uso, mas como a uso?
Você faz as perguntas mais difíceis, Lobsang! — disse
meu guia, rindo. — As coisas mais simples são as mais difí-
ceis de explicar. Diga-me, como explicaria o processo da
respiração? Você respira, todos respiram, mas como se
explica esse processo?
Eu assenti, carrancudo. Sabia que eu estava sempre fazendo
perguntas, mas esse era o único meio de aprender as coisas.
A maioria dos demais cheias não se interessava, desde que
recebesse comida e o trabalho não fosse muito pesado, com
o que se dava por satisfeita. Eu queria mais, eu queria saber.
O cérebro — disse o Lama — é como um aparelho de
rádio, como o dispositivo que esse homem Marconi está
usando para mandar mensagens através dos oceanos. A
coleção de partículas e cargas elétricas que constitui um ser
humano tem o dispositivo elétrico, ou rádio, do cérebro,
para lhe dizer o que fazer. Quando uma pessoa pensa em
mover um órgão, correntes elétricas percorrem os nervos
apropriados para galvanizar os músculos, levando-os à ação
desejada. Do mesmo modo, quando uma pessoa pensa,
ondas de rádio ou elétricas...na verdade, elas vêm da parte
superior do espectro de rádio... são irradiadas do cérebro.
Certos instrumentos podem registrar as radiações e até
marcá-las no que os médicos ocidentais chamam "linhas alfa,
beta, delta e gama".
Eu assenti, com movimentos lentos da cabeça. Já ouvira falar
nessas coisas, junto aos Lamas Médicos.
Pois bem — meu guia prosseguiu — as pessoas sensíveis
também podem perceber essas radiações, e compreendê-las.
Eu leio seus pensamentos, e quando você o tentar, poderá
ler os meus. Quanto mais duas pessoas estejam em simpatia,
em harmonia, uma com a outra, tanto mais fácil será para
elas ler essas radiações cerebrais que são os pensamentos.
Assim é que temos a telepatia. Os gêmeos, muitas vezes, são
inteiramente telepáticos um quanto ao outro. Os gêmeos
idênticos, onde o cérebro de um é a cópia fiel do outro, são
tão telepáticos entre si que muitas vezes se torna realmente
difícil determinar qual dos dois deu origem a um
pensamento.
Respeitável Senhor — disse eu — como sabe, posso ler a
maioria das mentes. Por que é assim? Existem muitos outros
com essa capacidade?
Você, Lobsang — respondeu meu guia — tem dons
especiais, e recebe treinamento especial. Os seus poderes
estão sendo aumentados por todos os métodos de que
dispomos, porque tem à frente uma tarefa difícil a
desempenhar na Vida.
Dito isso, sacudiu a cabeça, com ar solene, acrescentando:
Uma tarefa difícil, sem dúvida. Nos Dias Antigos,
Lobsang, a humanidade vivia em comunhão telepática com
o mundo animal. Nos anos vindouros, após a Humanidade
ter percebido a loucura das guerras, tal capacidade será
recuperada; mais uma vez o Homem e o Animal viverão
juntos, em paz, sem qualquer desejo de um causar mal ao
outro.
Lá embaixo um gongo soou repetidamente. Houve o clangor
de trombetas e o Lama Mingyar Dondup se pos em pé num
salto, dizendo:
Temos de apressar-nos, Lobsang, o Serviço do Templo
vai começar, e Sua Santidade estará presente.
Eu me ergui depressa, arrumei o manto e saí atrás de meu
guia, já na extremidade do corredor e quase desaparecendo.

2

O grande Templo parecia um ser vivo. De onde eu me
encontrava, bem alto no telhado, podia olhar para baixo e
ver toda a extensão do lugar. Em ocasião anterior do dia, o
meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e eu havíamos viajado
para aquele lugar, em missão especial. O Lama, agora, se
achava a portas fechadas com um alto dignitário e eu — que
tinha liberdade de movimentos — encontrara aquele posto
de observação dos sacerdotes, entre as vigas poderosas que
sustentavam o telhado. Rondando pela passagem do telhado,
descobrira a porta e, audaciosamente, a abrira. Nenhum grito
de ira veio assinalar meu ato, e eu espiei para o interior. O
lugar se achava vazio, de modo que entrei e me encontrei
em pequena sala de pedra, como cela embutida na pedra da
muralha do templo. Por trás de mim, estava a pequena porta
de madeira, degraus de pedra em ambos os lados, e à minha
frente um ressalto de pedra, com uns três palmos de altura.
Em silêncio, adiantei-me e me ajoelhei, de modo que apenas
minha cabeça ficasse acima do ressalto. Sentia-me como um
Deus nos Céus, fitando lá embaixo os mesquinhos mortais,
examinando a obscuridade do chão do Templo, bem mais
abaixo. Do lado de fora do Templo, o crepúsculo purpúreo
cedia lugar à escuridão. Os últimos raios do Sol poente
esmaeciam por trás dos picos cobertos de neve, mandando
chuveiros iridiscentes de luz pela espuma perpétua de neve
que voava das cordilheiras mais altas.
A escuridão do Templo era atenuada, e em alguns lugares
intensificada, por centenas de tremelicantes lâmpadas de
manteiga. Eram lâmpadas que brilhavam como pontos
dourados de luz, mas que ainda assim difundiam a radiação
ao redor. Parecia que estrelas estavam a meus pés, ao invés
de se acharem por cima da cabeça. Sombras fantásticas
deslizavam em silêncio por colunas poderosas; sombras ora
finas e compridas, ora curtas e atarracadas, mas sempre
grotescas e bizarras, com a iluminação cruzada fazendo com
que o comum se tornasse fantástico e este ultrapassasse
qualquer descrição.
Eu contemplava aquilo, olhando para baixo, sentindo-me
como em um semi-mundo, incerto do que via e do que
imaginava. Entre mim e o soalho flutuavam nuvens de
incenso azul, a fumaça erguendo-se camada após camada,
fazendo-me recordar ainda mais a posição de um Deus a
olhar para baixo, em meio às nuvens da Terra. Nuvens de
incenso, subindo com suavidade, rodopiavam, espessas, dos
Turíbulos que, em vaivém, pendiam dos braços de jovens
cheias piedosos. Eles seguiam de um para outro lado, com
passos silentes e faces imóveis. Ao se voltarem repetidas
vezes, um milhão de pontos luminosos se refletiam nos
Turíbulos dourados, emitindo feixes estonteantes de luz. De
onde eu me encontrava, podia ver o incenso vermelho em
brasa que, soprado pela brisa, às vezes quase prorrompia em
chamas, emitindo chuveiros de fagulhas vermelhas, que logo
se apagavam. Recebendo vida nova, a fumaça de incenso se
erguia em colunas ainda mais espessas, azuis, formanc trilhas
acima e por trás dos cheias. Erguendo-se mais alto, a fumaça
formava uma outra nuvem, dentro do Templo. As
contorções e movimentos das leves correntes de ar,
causadas pelos monges em movimento, davam a impressão
de uma coisa viva, como uma criatura, entrevista na
penumbra, respirando e voltando-se no leito em que
dormia. Por algum tempo observei, tornando-me quase
hipnotizado com a fantasia de que me achava dentro de uma
criatura viva, observando o soerguimento e o pulsar de seus
órgãos, ouvindo os sons do corpo, da própria Vida.
Em meio à penumbra e às nuvens de fumaça de incenso, eu
via as fileiras cerradas de lamas, trapas e cheias. Sentados de
pernas cruzadas sobre o chão, estendiam-se em fileiras sem
fim, até se tornarem invisíveis nos recantos mais distantes
do Templo. Todos envergavam seus Mantos da Ordem,
parecendo formar um retalho vivo e ondulante de cores
conhecidas. Dourado, açafrão, vermelho, castanho, e um
borrifo muito leve de cinzento, as cores pareciam viver e
fundir-se umas nas outras, quando os monges se moviam.
No ponto mais alto do Templo estava sentado Sua Santidade,
O Mais Precioso, a Décima-Terceira Encarnação do Dalai
Lama, a Figura mais reverenciada em todo o mundo budista.
Observei por algum tempo, ouvi o canto dos lamas de voz
profunda, acentuado pela voz alta dos pequenos cheias.
Observei as nuvens de incenso que vibravam em sintonia
com as vibrações mais profundas. As luzes tremulavam na
escuridão e eram substituídas, o incenso se queimava e era
substituído por novos bastões, em meio a um chuveiro de
fagulhas vermelhas. Eu via as sombras a dançar, crescendo e
morrendo sobre as muralhas, observava os minúsculos
pontos refulgentes de luz, até não saber mais onde me
encontrava, nem o que fazia.
Um lama idoso, curvado sob o peso dos anos muito além da
duração normal, seguia devagar entre seus Irmãos da Ordem.
Ao redor, havia trapas atentos, com bastões de incenso e
uma luz à mão. Inclinando-se para O Mais Precioso, e
voltando-se devagar em mesura para cada um dos Quatro
Cantos da Terra, ele finalmente se pos no meio da
assembléia de monges, dentro do Templo. Com voz
surpreendentemente forte para criatura tão idosa, entoou:
Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de
Ilusão. À Vida sobre a Terra é apenas um sonho, pois no
tempo da Vida Eterna ela não passa de um piscar de olhos.
Ouçam as Vozes de nossas Almas, todos os que estão muito
abatidos. Esta vida de Sombra e Tristeza terminará, e a Glória
da Vida Eterna brilhará sobre os justos. O primeiro bastão de
incenso é aceso, para que uma Alma Perturbada possa ser
guiada.
Um trapa adiantou-se, fez uma mesura para O Mais Precioso,
antes de se voltar devagar e reverenciar, a seu turno, os
Quatro Cantos da Terra. Acendendo um bastão de incenso,
voltou-se novamente e apontou com ele para os Quatro
Cantos. O cantar, em vozes profundas, ergueu-se
novamente e morreu, sendo acompanhado pela voz alta dos
jovens cheias. Um lama corpulento recitou certas passagens,
pontuando-as com o toque de sua Sineta de Prata, com um
vigor que era motivado apenas pela presença de O Mais
Precioso. Voltando ao silêncio, olhou disfarçadamente ao
redor, para ver se seu desempenho merecera a devida
aprovação.
O lama idoso adiantou-se mais uma vez, fez uma mesura
para O Mais Precioso e para as Estações. Outro trapa se
apresentava, atento, aflito na Presença do Chefe do Estado e
da Religião. O lama idoso entoou:
Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de
Ilusão. A Vida sobre a Terra é a Prova, para que nos possa-
mos purificar das impurezas e subir sempre. Ouçam as
Vozes de nossas Almas, todos os que estão em dúvida. Logo
a recordação da vida na Terra passará, e haverá Paz e
libertação quanto ao Sofrimento. O segundo bastão de
incenso é aceso, para que uma Alma em dúvida possa ser
guiada.
Lá embaixo, o canto dos monges aumentou e tomou vulto
novamente, enquanto o trapa acendia o segundo bastão e
executava o ritual de inclinação para O Mais Sagrado,
apontando o incenso para cada Canto a seu turno. As
muralhas do Templo pareciam respirar, oscilar em uníssono
com o canto. Ao redor do lama idoso, formas
fantasmagóricas se reuniam: eram os que haviam
recentemente passado desta vida sem estarem preparados, e
agora vagavam sem orientação, sozinhos.
As sombras trêmulas pareciam saltar e contorcer-se como
almas em tormento; minha própria consciência, minhas
percepções, até mesmo meus olhos, tremularam entre dois
mundos. Em um, eu fitava com atenção extasiada a marcha
do culto, lá embaixo. Em outro, via o "entre-mundos", onde
as almas recém-partidas tremiam de medo, diante da
estranheza do Desconhecido. Almas isoladas, envoltas em
escuridão úmida e pegajosa, choravam em seu terror e
solidão. Separadas umas das outras, separadas de todos os
demais devido à sua falta de crença, eram tão imóveis como
um iaque atolado num pântano das montanhas. Na escuridão
viscosa do "entre-mundos", que era aliviada apenas pela
débil luz azul vinda daquelas formas fantasmagóricas,
penetrava o canto, o Convite, do lama idoso:
— Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de
Ilusão. Assim como o Homem morreu na Realidade Maior
para poder nascer na Terra, também tem de morrer na Terra
para poder renascer na Realidade Maior. Não há Morte,
apenas o Nascimento. As dores da Morte são as dores do
Nascimento. O terceiro bastão de incenso é aceso, para que
uma Alma em Tormento possa ser guiada.
À minha consciência veio uma ordem telepática: "Lobsang!
Onde está? Venha ter comigo, agora!" Com um solavanco,
voltando a este mundo mediante grande esforço, cambaleei,
pon-do-me sobre os pés entorpecidos, e segui pela pequena
porta. "Já vou, Respeitável Senhor!" pensei, para meu guia.
Esfregando os olhos, que marejavam ao ar frio da noite, após
o calor e fumaça do incenso no Templo, segui trôpego e
apalpei o caminho acima do chão, até onde meu guia
esperava, numa sala bem por cima da porta principal. Éle
sorriu ao me ver.
Ora, Lobsang! — exclamou. — Está com o aspecto de
quem viu um fantasma!
Senhor! — respondi. — Vi diversos.
Esta noite, Lobsang, ficaremos aqui — disse o Lama.
— Amanhã, iremos visitar o Oráculo do Estado. Você vai
achar a experiência interessante, mas agora é o momento de
comer, primeiramente, e depois dormir...
Enquanto comíamos, eu me achava preocupado, pensando
no que vira no teto, imaginando como este podia ser "o
Mundo de Ilusão". Terminei rapidamente o jantar, seguindo
para o quarto que me fora destinado. Envolvendo-me no
manto, deitei-me e logo dormi. Sonhos, pesadelos e
impressões estranhas me atormentaram durante toda a noite.
Sonhei que estava sentado, inteiramente desperto, e que
grandes globos de alguma coisa vinham ter comigo, como a
poeira de uma tempestade. Eu estava sentado, e de grande
distância pequenos fragmentos surgiam, tornando-se cada
vez maiores, até eu poder ver que os globos, que já eram
então, exibiam todas as cores. Tornando-se do tamanho da
cabeça de um homem, vinham rapidamente em minha
direção e logo se afastavam. Em meu sonho — se era mesmo
sonho! — não conseguia voltar a cabeça a fim de ver para
onde tinham ido; havia, apenas, aqueles globos sem fim,
vindos de algum lugar desconhecido, passando perto de
mim, seguindo para — para onde?
Fiquei imensamente espantado com o fato de que nenhum
deles colidisse comigo. Pareciam sólidos, mas ainda assim
não tinham substância. Com subtaneidade tão horrível que
me pôs inteiramente desperto, uma voz se fez ouvir, por
trás:
Assim como um fantasma vê as paredes grossas e só-
lidas do Templo, você também está vendo agora!
Estremeci de apreensão; estaria morto! Teria morrido du-
rante a noite? Mas por que motivo me preocupava com a
"morte"? Sabia que a chamada morte era apenas o renasci-
mento. Continuei deitado e, com o tempo, adormeci, outra
vez.
Todo mundo estremeceu, rangendo e desmoronando, de
modo louco. Eu me sentei, com grande alarme, julgando que
o Templo caía ao redor de mim. A noite era escura, tendo
apenas a radiação fantasmagórica das estrelas no céu a
apresentar levíssimos pontos de luz. Olhando diretamente à
frente, senti que os cabelos se me punham em pé, tamanho
o susto. Fiquei paralisado, não conseguia mover um só dedo
e, pior ainda, aquele mundo se tornava cada vez maior. A
pedra lisa das muralhas fazia-se mais bruta, transformava-se
em rocha porosa parecida com a dos vulcões extintos. Os
buracos na parede aumentavam sempre, e eu vi que eram
povoados por criaturas de pesadelo, que eu observara
mediante o bom microscópio alemão do Lama Mingyar
Dondup.
O mundo crescia sem parar, criaturas assustadoras adquiriam
dimensões imensas, tornando-se tão vastas que, com a
passagem do tempo, eu podia ver-lhes os poros! O mundo
crescia sempre, e então compreendi que me tornava cada
vez menor. Percebi que uma tempestade de poeira estava
soprando. De algum lugar atrás de mim os grãos de poeira
vinham estrugindo, mas nenhum deles me tocava. Com
rapidez, tornavam-se cada vez maiores. Alguns eram tão
grandes quanto a cabeça de um homem, outros tão grandes
quanto os Himalaias. Ainda assim, nenhum deles me tocava.
Tornavam-se ainda maiores, até que perdi toda a noção de
tempo. Em meu sonho, parecia estar deitado entre as
estrelas, frio e imóvel, enquanto uma galáxia após outra
passava, cintilante, e desaparecia na distância. Não sei por
quanto tempo fiquei assim. Pareceu-me que ali permaneci
deitado por toda uma eternidade. Finalmente, toda uma
galáxia, toda uma série de Universos, veio diretamente em
minha direção. "Isto é o fim!" Pensei, de modo vago, quando
aquela multidão de mundos colidiu comigo.
Lobsang! Você foi para os Campos Celestiais? — per-
guntou a Voz, retumbante e ecoando em todo o Universo,
reverberando nos mundos... e voltando a ecoar nas paredes
de minha câmara de pedra.
Com um esforço penoso, abri os olhos e procurei focalizá-
los. Acima de mim havia uma constelação de estrelas
brilhantes, que de algum modo pareciam conhecidas.
Estrelas que desapareceram devagar, sendo substituídas pelo
semblante benigno do Lama Mingyar Dondup. Ele, com
gentileza, me sacudia. A luz clara do sol iluminava o quarto.
Um feixe de luz solar iluminava fragmentos de poeira que
rebrilhavam com todas as cores do arco-íris.
Lobsang! A manhã já vai alta. Eu o deixei dormir, mas
chegou o momento de comer e em seguida partiremos.
Fatigado, pus-me em pé. Estava "escangalhado" aquela
manhã; a cabeça parecia grande demais, o espírito ainda se
achava nos "sonhos" da noite. Reunindo os poucos
pertences na parte dianteira do manto, deixei o quarto à
procura de tsampa, nosso alimento básico. Desci pela escada
de nós, bem seguro, com medo de cair. Desci até onde os
monges-cozinheiros se encontravam.
Vim buscar comida, — anunciei, com humildade.
Comida? A esta hora da manhã? Vá dando o fora!
- berrou o monge-cozinheiro-chefe.
Estendendo o braço, estava prestes a me desferir um golpe,
quando outro monge cochichou, em voz roufenha:
Ele está com o Lama Mingyar Dondup!
O monge-cozinheiro-chefe deu um salto, como se houvesse
sido mordido por um marimbondo, e em seguida berrou
para o ajudante:
E então? O que esperas? Dá ao jovem cavalheiro o
desjejum dele!
Em condições normais, eu devia ter cevada suficiente na
bolsa de couro que todos os monges carregam consigo, mas
como estávamos fazendo visitas, tal suprimento se esgotara.
Todos os monges, quer sejam chelas, trapas ou lama,
carregam a bolsa de couro com cevada, bem como uma
tigela na qual comê-la. O tsampa era misturado com chá
amanteigado, proporcionando assim o alimento principal do
Tibete. Se as lamaserias tibetanas imprimissem cardápios,
haveria apenas uma palavra a ser impressa nos mesmos:
tsampa!
Um tanto retemperado apos a refeição, fui ter com o Lama
Mingyar Dondup e partimos a cavalo para a Lamaseria do
Oráculo do Estado. Não conversamos durante a viagem, e
meu cavalo tinha um movimento singular a requerer toda
minha atenção, se eu quisesse continuar montado. Enquanto
seguíamos pela Estrada de Lingkor os peregrinos, vendo a
alta patente do manto de meu guia, pediam-lhe a bênção.
Recebendo-a, retomavam seu Circuito Sagrado, com o
aspecto de quem já estivesse a meio caminho da salvação.
Logo entrávamos a cavalo pelo Bosque de Salgueiros,
chegando à trilha de pedra que dava para o Lar do Oráculo.
No pátio, monges-criados ficaram com nossos cavalos,
enquanto eu, finalmente, e cheio de satisfação, deslizava
para o chão.
O lugar estava cheio de gente. Os lamas de categoria mais
elevada haviam vindo de todos os pontos do país para
estarem presentes. O Oráculo ia entrar em comunicação
com os Poderes que governavam o mundo. Eu, mediante
arranjo especial, por ordem especial de O Mais Precioso,
deveria estar presente.
Mostraram-nos onde dormir, eu ao lado do Lama Mingyar
Dondup e não em dormitórios com muitos outros cheias.
Ao passarmos por um pequeno templo, dentro do edifício
principal, ouvi: "Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o
Mundo de Ilusão".
Senhor! — disse eu a meu guia, quando estávamos a
sós. — Como é este o "Mundo de Ilusão"?
Ele me olhou, sorrindo.
Bem — respondeu —, o que é verdadeiro? Você toca esta
muralha, e seu dedo é detido pela pedra. Assim sendo, você
raciocina que a muralha existe como sólido, que nada pode
penetrar. Para além das janelas, as cordilheiras dos Himalaias
se apresentam firmes, como se fossem a coluna dorsal da
Terra. Um fantasma, entretanto, ou você, no plano astral,
pode mover-se tão livremente em meio à pedra das
montanhas quanto o pode pelo ar.
Mas como é essa "ilusão"? — perguntei. — Ontem à noite
tive um sonho, que realmente foi ilusão; empalideço, em
pensar nele!
Meu guia, com infinita paciência, ouviu enquanto eu lhe
narrava o sonho, e assim que terminei ele, disse:
Terei de falar-lhe sobre o Mundo de Ilusão. Não neste
momento, porém, porque precisamos visitar o Oráculo.
O Oráculo do Estado era um homem surpreendentemente
jovem, magro, de aparência muito doentia. Fui-lhe
apresentado, e seus olhos escaldantes me perfuraram,
fazendo comichões de pavor percorrer minha espinha.
Sim! É você, eu o reconheço bem, — afirmou. —
Você tem o poder interno; terá também o conhecimento.
Mais tarde conversaremos.
O Lama Mingyar Dondup, meu amado amigo, pareceu mui-
to satisfeito comigo.
Você passa por todas as provas, Lobsang, todas as
vezes! — comentou. — Agora, venha, vamos retirar-nos
para o Santuário dos Deuses e conversar.
Sorria para mim, enquanto tomávamos aquele caminho.
Conversar, Lobsang, — observou — a respeito do
Mundo de Ilusão.
O Santuário se achava deserto, como meu guia já sabia
antecipadamente. Lâmpadas tremeluziam diante das
Imagens Sagradas, fazendo com que suas sombras dessem
saltos e se movessem, como em alguma dança exótica. A
fumaça do incenso fazia espirais, subindo, formando uma
nuvem baixa acima de nós. Juntos nós nos sentamos ao lado
do Atril do qual o Leitor fazia a leitura dos Livros Sagrados.
Ficamos sentados, na atitude de contemplação, as pernas
cruzadas, os dedos entrelaçados.
Este é o Mundo de Ilusão — disse meu guia. — Por
conseqüência, chamamos as Almas para que nos escutem,
por que apenas elas se encontram no Mundo de Realidade.
Nós dizemos, como você bem sabe, "ouçam as Vozes de
nossas Almas", e não dizemos "ouçam nossas Vozes físicas".
Escute, e não interrompa, porque esta é a base de nossa
Crença Interna. Como explicarei depois, as pessoas que não
se acham suficientemente evoluídas precisam, de início, ter
uma crença que as sustenha, fazendo-as sentir que um Pai
ou Mãe benevolente as vigia e protege. Somente quando se
chegou à etapa apropriada é que se pode aceitar o que vou
dizer agora.
Olhei para meu guia, achando que ele era todo o mundo
para mim, desejando que pudéssemos estar sempre juntos.
Nós somos criaturas do Espírito — afirmou ele —, somos
como cargas elétricas dotadas de inteligência. Este mundo,
esta vida, é o Inferno, o lugar de provas, onde nosso Espírito
se purifica, pelo sofrimento de aprender a controlar nosso
grosseiro corpo carnal. Assim como um fantoche é
controlado por cordéis manipulados pelo Senhor dos
Fantoches, também nosso corpo carnal é controlado por
cordões de força elétrica de nosso Eu Maior, nosso Espírito.
Um bom Senhor de Fantoches pode criar a ilusão de que os
bonecos de madeira são dotados de vida, que podem agir por
vontade própria. Do mesmo modo, nós, enquanto não
aprendemos mais, achamos que nosso corpo carnal é a coisa
única que importa. Na atmosfera sufocante para o espírito, a
da Terra, esquecemos que temos a Alma que realmente nos
controla, julgamos estar fazendo as coisas por nossa própria
vontade livre, e que somos responsáveis apenas perante
nossa "consciência". Assim, Lobsang, temos a primeira
ilusão, a ilusão de que o fantoche, o corpo carnal, é o que
importa. Ele se deteve, notando minha expressão de
perplexidade.
Bem? — perguntou. O que o perturba?
Senhor! — disse eu. — Onde estão meus cordéis de força
elétrica? Não posso ver coisa alguma a ligar-me com meu Eu
Maior?
Ele ria, ao responder:
Você pode ver o ar, Lobsang? Não pode, enquanto
estiver no corpo carnal.
Inclinando-se à frente, apanhou meu manto, e quase me
matou de susto, enquanto eu lhe fitava os olhos penetrantes.
Lobsang! — disse ele com severidade. — O seu
cérebro se evaporou todo? Você é realmente feito de osso,
do pescoço para cima? Esqueceu-se do Cordão de Prata,
aquela coleção de linhas de força elétrica, que o ligam...
aqui... à sua alma? Francamente, Lobsang, você está no
Mundo de Ilusão!
Senti que o meu rosto se punha escarlate. Eu, naturalmente,
tinha conhecimento do Cordão de Prata, esse fio de luz
azulada que liga o corpo físico ao espiritual. Muitas vezes,
quando viajando no plano astral, eu observava o Cordão
bruxuleando e pulsando com luz e vida. Era como o cordão
umbilical que liga a mãe e a criança recém-nascida, só que a
"criança" que é o corpo físico não poderia existir um só
momento, se o Cordão de Prata fosse cortado.
Ergui o olhar, e meu guia estava pronto para prosseguir, após
minha interrupção.
Quando estamos no mundo físico, inclinamo-nos a
pensar que somente o mundo físico importa. Esse é um dos
dispositivos de segurança do Eu Maior; se recordássemos o
Mundo Espiritual com sua felicidade, somente
conseguiríamos continuar aqui mediante um grande esforço
de vontade. Se nos recordássemos de vidas anteriores,
quando, talvez, fomos mais importantes do que nesta vida,
não teríamos a humildade necessária. Vamos mandar trazer
chá, e eu lhe mostrarei, ou lhe contarei, a vida de um
chinês, desde sua morte ao renascimento e à morte e
chegada ao Mundo Seguinte.
O lama estendeu a mão, para tocar a pequena sineta de prata
no Santuário, e logo se deteve, ao observar minha expressão.
Bem? — perguntou. — Qual é sua pergunta?
Senhor! — respondi. — Por que um chinês? Por que não
um tibetano?
Porque — respondeu ele — se eu disser "um tibetano"
você procurará ligar o nome a alguém que conhece... e
obterá resultados incorretos.
Dito isso, tocou a campainha e um monge-criado trouxe chá
para nós. Meu guia fitou-me, com a expressão pensativa.
Você compreende que ao tomar este chá estamos
engolindo milhões de mundos? — perguntou. — Os fluidos
possuem um teor molecular mais esparso. Se pudéssemos
ampliar as moléculas deste chá, você verificaria que elas
rolam como as areias, ao largo de um lago turbulento. Até
mesmo um gás, ou o próprio ar, se compõe de moléculas, de
partículas diminutas. Entretanto, isso é uma digressão, e
íamos falar sobre a morte e vida de um chinês, — disse,
dando fim ao chá e esperando, enquanto eu terminava o
meu.
Seng era um velho mandarim, — disse meu guia. —
Sua vida fora afortunada e agora, ao anoitecer dessa vida,
sentia grande contentamento. A família era grande, as
concubinas e escravos numerosos. O próprio Imperador da
China o tinha em seu favor. Ao fitar com olhos idosos e
míopes a janela do quarto, mal conseguia discernir os belos
jardins com o canto dos pássaros que regressavam às árvores,
ao encerramento do dia. Seng deitou-se, apoiado nas
almofadas. Dentro de si, sentia os dedos da Morte,
afrouxando seus laços com a vida. Devagar, o sol de
vermelho cor de sangue se punha, por trás do pagode antigo.
Devagar, o velho Seng inclinou-se nas almofadas, a
respiração difícil e ruidosa passando entre os dentes. A luz
do sol esmaeceu, as pequenas lâmpadas no quarto foram
acesas, mas o velho Seng já se fora — já se fora com os
últimos raios do sol.
Meu guia olhou para mim, para ter certeza de que eu
prestava atenção, e depois prosseguiu:
O velho Seng estava caído em meio às almofadas, com
os sons corporais rangendo e arquejando, chegando ao
silêncio. O sangue já não percorria as artérias e veias, os
fluidos do corpo já não gorgolejavam. O corpo do velho
Seng estava morto, encerrado, sem mais serventia. Mas um
clarividente, se estivesse presente, teria visto uma luz azul e
difusa formar-se ao redor do corpo do velho Seng. Formar-
se, e depois erguer-se acima do corpo, flutuando
horizontalmente por cima, ligada pelo Cordão de Prata que
se afinava. Gradualmente, o Cordão de Prata tornou-se fino
e se separou. A Alma, que já fora o velho Seng, flutuou,
afastando-se, derivando como uma nuvem de fumaça de
incenso, desaparecendo sem esforço pelas paredes.
O lama encheu novamente a chávena, verificou se eu tam-
bém tinha chá, e prosseguiu:
A Alma seguiu vagando por reinos, por dimensões que
a mente materialista não pode compreender. Finalmente,
alcançou um jardim maravilhoso, pontilhado de edifícios
imensos, em um dos quais se deteve, e ali a Alma que já fora
o velho Seng entrou e seguiu para um andar refulgente. Uma
alma, Lobsang, em seu próprio ambiente, é tão sólida quanto
você, neste mundo. A alma, no mundo da alma, pode ser
confinada por paredes, e andar sobre o chão. Ali, a alma tem
capacidades e talentos diferentes daqueles que conhecemos
na Terra. Essa Alma prosseguiu andando, e finalmente
entrou em pequeno cubículo. Sentando-se, fitou a parede à
frente. De repente, a parede pareceu sumir, e em seu lugar
viu cenas, as cenas de sua vida. Viu aquilo a que chamamos
o Registro Akáshico, isto é, o Registro de tudo que já
aconteceu, e que pode ser visto prontamente por aqueles
que se acham capacitados. Também é visto por todos que
passam da vida terrena à vida do Além, pois o homem vê o
Registro de seus próprios êxitos e fracassos. O homem vê o
seu passado, e julga a si mesmo! Não existe juiz mais severo
do que o próprio Homem. Nós não nos sentamos tremendo
diante de um Deus; sentamo-nos, e vemos tudo que fizemos
e tudo quanto já tivemos a intenção de fazer.
Eu estava sentado, em silêncio, achando que tudo aquilo era
de grande interesse, e poderia ficar ouvindo horas seguidas
— era muito melhor do que o trabalho tedioso com as
lições!
A Alma que fora o velho Seng, o mandarim chinês,
sentou-se e viu novamente a vida que ele, sobre a Terra, jul-
gara tão bem sucedida — prosseguiu meu guia. — Viu, e
teve o pesar de ver suas muitas faltas, e depois se levantou e
deixou o cubículo, seguindo rapidamente para uma sala
maior, onde homens e mulheres do Mundo 'das Almas o
aguardavam. Em silêncio, sorrindo com compaixão e
compreensão, eles esperavam sua aproximação, seu pedido
para que o guiassem. Sentado em sua companhia, narrou-
lhes suas faltas, as coisas que tentara fazer, quisera fazer, e
não conseguira.
Mas eu pensei que o senhor disse que ele não foi julgado,
que se julgou a si próprio! — observei, depressa.
É assim, Lobsang — respondeu meu guia. — Tendo visto
seu passado e seus enganos, ele se aproximava agora da-
queles Conselheiros, a fim de receber-lhes as sugestões...
Mas não interrompa, escute e deixe suas perguntas para
depois.
Como estava dizendo — continuou o lama —, a Alma
sentou-se com os Conselheiros, narrando-lhes seus
fracassos, falando-lhes das qualidades que ele tinha de "criar"
em sua Alma, antes de poder evoluir mais. Em primeiro
lugar, viria o regresso para ver seu corpo, e depois um
período de descanso ... anos ou séculos... e então seria
auxiliado a encontrar condições tais como as que se
mostravam essenciais para seu progresso maior. A Alma que
fora o velho Seng voltou à Terra, para fitar seu corpo morto,
já pronto para o sepultamento. E então, não sendo mais a
Alma do velho Seng, porém uma Alma pronta para o
descanso, ele regressou à Terra do Além. Por período
indeterminado, descansou e se recuperou, estudando as
lições das vidas anteriores, preparando-se para a vida que
viria. Aqui, nesta vida além da morte, os artigos e
substâncias eram tão sólidos à seu tato quanto haviam sido
sobre a Terra. Ele repousou, até ficarem preparados o tempo
e as condições.
Eu gosto disso! — exclamei. — Acho de grande
interesse.
Meu guia sorriu para mim, antes de prosseguir:
Em algum tempo predeterminado, a Alma que Espera
foi chamada e levada para o Mundo da Humanidade por
alguém cuja tarefa era a execução desse serviço. Eles se
detiveram, invisíveis aos olhos dos que tinham corpos
carnais, observando os que iam ser os pais, examinando a
casa, avaliando as probabilidades que aquela casa
proporcionaria aos recursos desejados para aprender lições
que tinham de ser aprendidas dessa feita. Satisfeitos, eles se
retiraram. Meses depois, a Futura Mãe sentiu algo em seu
corpo, quando a Alma ingressou, e a criança passou a viver.
Com o tempo, a Criança nasceu para o Mundo do Homem.
A alma que já animara o corpo do velho Seng lutava agora,
outra vez, com os nervos e cérebro relutantes da criança Lee
Wong, vivendo num ambiente humilde, em uma aldeia de
pescadores da China. Mais uma vez as vibrações elevadas de
uma Alma foram convertidas para as vibrações de uma
oitava inferior de um corpo carnal.
Eu permanecia sentado, pensando. Depois, pensei mais.
Finalmente, disse:
Honrado Lama, se é assim, por que motivo as pessoas
receiam a morte, que é apenas uma libertação quanto aos
problemas da terra?
Aí temos uma pergunta sensata, Lobsang, — respondeu
meu guia. — Se nós sequer nos lembrássemos das alegrias do
Outro Mundo, muitos de nós não conseguiriam tolerar as
vicissitudes aqui, em conseqüência das quais temos,
implantado em nós, o medo à morte.
Dedicando-me um olhar de esguelha e trocista, ele obser-
vou:
Alguns de nós não gostam da escola, não gostam da
disciplina que é tão necessária na escola. Entretanto, quando
a gente cresce e se torna adulta, os benefícios da escola
tornam-se evidentes. Não daria certo fugir da escola e
esperar progredir no estudo; tampouco se aconselha dar fim
à vida, antes do tempo destinado a cada um.
Fiquei pensando sobre isso, porque poucos dias antes um
velho monge, analfabeto e doente, se atirara de um alto
eremitério. Homem velho e azedo que fora, sempre recusara
todas as ofertas de ajuda. Sim, o velho Jigme estava melhor,
tendo-se retirado, pensava eu. Melhor para si mesmo,
melhor para os outros.
Senhor! — disse eu. — Nesse caso o monge Jigme
errou, quando deu fim à própria vida?
Sim, Lobsang, errou muito, — respondeu meu guia. —
Um homem ou mulher tem certo tempo sobre a Terra. Se
der fim à vida antes desse momento, terá de regressar quase
imediatamente. Assim, temos o espetáculo de uma criança
que nasce para viver apenas alguns meses. Será a alma de um
suicida, que regressa para apoderar-se do corpo, e assim
viver o resto do tempo que deveria ter sido vivido antes. O
suicídio nunca se justifica; constitui uma ofensa grave contra
a própria pessoa, contra o Eu Maior da pessoa.
Mas, senhor — disse eu —, que diz do japonês de alto
nascimento, que comete suicídio cerimonial a fim de expiar
a vergonha da família? Ele, por certo, é um homem
corajoso, ao
fazer isso.
Não, Lobsang — disse meu guia, do modo mais enfá-
tico. — Não é assim. A bravura não está em morrer, mas em
viver, diante da vicissitude, diante do sofrimento. Morrer é
fácil. viver... isso é um ato de coragem! Nem mesmo a
demonstração teatral de orgulho, o "Suicídio Cerimonial",
pode cegar alguém quanto ao erro do mesmo. Estamos aqui
para aprender, e só podemos aprender vivendo o tempo que
nos foi dado. O suicídio nunca se justifica!
Voltei a pensar no velho Jigme. Era uma criatura muito
idosa, quando se matara, de modo que quando voltasse, ao
que eu pensava, seria apenas para uma estada curta.
Honrado Lama — perguntei —, qual é o objetivo do
medo? Por que temos de sofrer tanto, pelo medo? Eu já des-
cobri que as coisas que mais temo jamais acontecem, mas
ainda assim eu as temo!
O lama riu, e disse:
— Isso acontece com todos nós. Nós receamos o
Desconhecido. No entanto, o medo é necessário. É ele que
nos acicata a prosseguir, quando, de outra forma, seríamos
preguiçosos. O medo confere vigor adicional, com o qual
evitamos os acidentes. O medo é um propulsor que nos
confere mais poder, mais incentivo, e faz com que
sobrepujemos nossa própria inclinação à preguiça. Você não
estudaria nem faria seus trabalhos escolares, se não tivesse
medo do professor, ou medo de parecer estúpido, diante dos
colegas.
Os monges entravam no Santuário; cheias corriam de um
lado para outro, acendendo mais lâmpadas de manteiga, mais
incenso. Nós nos pusemos em pé e seguimos para o frescor
da noite, onde uma brisa leve brincava com as folhas dos
salgueiros. As grandes trombetas soavam, na Potala tão
distante, e muito fracos os ecos vinham pelas muralhas da
Lamaseria do Oráculo do Estado.

3

A Lamaseria do Oráculo do Estado era pequena, compacta e
muito isolada. Uns poucos chelas pequenos brincavam com
toda liberdade. Nenhum grupo de trapas permanecia
indolentemente no pátio banhado de sol, passando a hora do
meio-dia em conversa ociosa. Velhos — velhos lamas,
também! — encontravam-se em maioria, naquele lugar.
Homens idosos, cabelos brancos e curvados sob o peso dos
anos, eles andavam devagar, cuidando da vida. Aquele era o
Lar dos Videntes. Aos lamas idosos, de modo geral, e ao
próprio Oráculo, fora confiada a tarefa da Profecia, das
Predições. Nenhum visitante entrava ali sem convite,
nenhum viajante perdido batia à porta procurando descanso
ou comida. Tratava-se de lugar receado por muitos e
proibido a todos, a não ser àqueles especialmente
convidados. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, era a ex-
ceção: a qualquer momento, podia entrar e verificar que era
realmente um visitante bem-vindo.
Um bosque gracioso de árvores conferia à Lamaseria a
solidão e a reserva com relação a olhares curiosos. Muralhas
fortes de pedra proporcionavam aos edifícios a proteção
quanto aos super curiosos, se surgisse algum que com sua
curiosidade ociosa se arriscasse a incorrer na ira do poderoso
Lama Oracular. Salas cuidadosamente mantidas eram
reservadas para Sua Santidade, O Mais Precioso, que com
tanta freqüência visitava aquele Templo do Conhecimento.
A atmosfera era calma, a impressão geral de quietude, de
homens que cuidavam placidamente de suas tarefas
importantes.
Tampouco havia qualquer oportunidade para brigas, para a
admissão de intrusos ruidosos. O Lugar era patrulhado pelos
poderosos Homens de Kham, os homens enormes, muitos
dos quais com dois metros de altura, e nenhum deles
pesando menos do que cento e dez quilos, empregados em
todo o Tibete como monges-policiais, encarregados da
manutenção da ordem nas comunidades monásticas, que às
vezes eram compostas de milhares de monges. O monge-
policial andava por ali, constantemente alerta,
constantemente em guarda. Portando cacetes poderosos,
constituíam certamente uma visão assustadora para os donos
de consciências culpadas. O manto de um monge não
encobre necessariamente um homem religioso; há
transgressores e preguiçosos em todas as comunidades, de
modo que os Homens de Kham se mantinham ocupados.
Os edifícios da Lamaseria também estavam à altura de seu
fito. Não se viam edifícios altos ali, nenhum poste comprido
e com entalhes para escalar; aquilo era para homens idosos,
homens que haviam perdido a elasticidade da juventude,
homens cujos ossos eram fracos. Os corredores
apresentavam acesso fácil, e os de idade mais avançada
residiam no pavimento térreo. O próprio Oráculo do Estado
também vivia no térreo, ao lado do Templo de Adivinhação.
Ao redor, alojavam-se os homens mais idosos, os mais
sábios. E o monge-policial-chefe dos Homens de Kham.
Vamos ver o Oráculo, Lobsang, — disse meu guia. —
ele demonstrou grande interesse por você, e está preparado
a dedicar-lhe grande parte de seu tempo.
O convite — ou ordem — veio encher-me da maior tristeza;
qualquer visita a um astrólogo ou "vidente", no passado,
somente me trouxera más notícias, mais sofrimento, mais
confirmação de dificuldades no futuro. De um modo geral,
igualmente, eu tinha de usar o meu melhor manto, e sentar-
me como um pato empalhado, enquanto ouvia algum velho
tagarela; balindo uma série de coisas conhecidas, que eu
preferia não ter de escutar. Olhei para ele, com ar
desconfiado; o Lama se esforçava por esconder um sorriso,
ao retribuir o olhar. Como era óbvio, pensei com azedume,
ele estivera lendo meus pensamentos! Prorrompeu em
risada, ao dizer:
Vá como está, o Oráculo não se deixa absolutamente
impressionar pelo estado do manto da pessoa. Ele sabe mais
a seu respeito do que você mesmo!
Ouvindo isso, minha tristeza aumentou, e eu me pus a
imaginar o que ia ouvir em seguida.
Seguimos pelo corredor, saindo para o pátio interno. Olhei
as cordilheiras imensas, sentindo-me como alguém que ia
ser executado. Um monge-policial, carrancudo, aproximou-
se de nós, e a mim se parecia mais uma montanha em
movimento. Reconhecendo meu guia, prorrompeu em
sorrisos de acolhimento, com mesuras profundas.
Prostrações à teus Pés de Lotos, Santo Lama, — disse.
— Honra-me, permitindo que te leve à Sua Reverência, o
Oráculo do Estado.
Acertou o passo a nosso lado, e tenho a certeza de que o
chão estremecia à sua marcha pesada.
Dois lamas estavam ao lado da porta, lamas e não monges-
guardas comuns, e à nossa aproximação puseram-se de lado,
para que pudéssemos entrar.
O Santo os aguarda, — disse um deles, sorrindo para meu
guia.
Ele anseia por tua visita, Senhor Mingyar, — disse o
outro.
Entramos, e nos encontramos num aposento de iluminação
um tanto fraca. Por alguns segundos, pude distinguir apenas
poucas coisas; meus olhos haviam sido ofuscados pela luz
brilhante do sol, no pátio. Gradualmente, enquanto minha
visão voltava ao normal, percebi uma sala vazia, tendo
apenas dois tapetes nas paredes e um pequeno turíbulo, que
fumegava a um canto. No centro da sala, sobre uma
almofada simples, estava sentado um homem muito jovem.
Parecia magro e frágil, e fiquei realmente espantado ao
compreender que aquele era o Oráculo do Estado do Tibete.
Tinha olhos um tanto esbugalhados, olhava para mim e via
meu íntimo. Eu tinha a impressão de que ele via minha
alma, e não meu corpo carnal.
Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e eu prostramo-nos no
cumprimento tradicional e prescrito, e depois nos pusemos
em pé, assim permanecendo. Finalmente, quando o silêncio
se tornava decididamente incômodo, o Oráculo falou.
Bem-vindo, Senhor Mingyar, bem-vindo, Lobsang! —
disse.
Sua voz era um tanto alta, e não se mostrava forte, em
absoluto; dava a impressão de vir de grande distância. Por
alguns momentos, meu guia e o Oráculo falaram sobre
questões de interesse comum; em seguida, porém, o Lama
Mingyar Dondup fez uma mesura, voltou-se e deixou a sala.
O Oráculo ficou a olhar-me, e disse, finalmente:
Traga uma almofada, e sente-se perto de mim,
Lobsang.
Estendi a mão para uma das almofadas quadradas, encostadas
em uma parede distante, e a coloquei de modo a poder
sentar-me diante dele. Por algum tempo, fitou-me em
silêncio um tanto soturno, mas, finalmente, quando eu já
estava inquieto sob seu escrutínio, falou:
Com que, então, você é Terça-Feira Lobsang Rampa! Nós
nos conhecemos bem, em outra fase da existência. Agora,
por ordem de O Mais Precioso, tenho de falar-lhe de vicis-
situdes que virão, dificuldades a vencer.
Oh, Senhor! — exclamei. — Eu devo ter feito coisas
horríveis nas vidas anteriores, para ter de sofrer assim na de
agora. O meu carma, o meu Destino predestinado, parece
ser mais duro do que o de qualquer outra pessoa.
Não é assim — replicou ele —, e acontece um engano
muito comum, quando as pessoas pensam que, devido a
terem dificuldades nesta vida, estão obrigatoriamente
sofrendo pelos passados de vidas anteriores. Se você aquecer
o metal em uma fornalha, faz isso porque o metal errou e
tem de ser punido, ou o faz para melhorar as qualidades do
material?
Fitou-me, com dureza, e acrescentou:
Entretanto, o seu guia, o Lama Mingyar Dondup, falará
sobre isso com você. Tenho de falar-lhe apenas do futuro.
O Oráculo tocou uma sineta de prata, e um criado entrou,
em silêncio. Seguindo até nós, colocou uma mesa muito
baixa entre mim e o Oráculo do Estado e sobre a mesa
depositou uma tigela ornamental de prata forrada, ao que
parecia, por um tipo de porcelana. Dentro da tigela,
brilhavam brasas de carvão, que emitiam um vermelho vivo,
enquanto o monge-criado a fazia balançar no ar, antes de
colocá-la diante do Oráculo. Com uma palavra murmurada,
cujo significado não percebi, ele colocou uma caixa de
madeira com muitos entalhes à direita da tigela, e partiu tão
silenciosamente como viera. Permaneci imóvel, pouco à
vontade, imaginando o motivo pelo qual tudo isso tinha de
acontecer comigo. Todos me diziam que eu ia levar uma
vida difícil; e pareciam deleitar-se com isso. Agruras eram
agruras, embora aparentemente eu não estivesse tendo de
pagar pelos pecados de alguma vida anterior. Devagar, o
Oráculo estendeu a mão à frente, abrindo a caixa. Com uma
pequena colher de ouro, tirou um pó fino, que espargiu
sobre as brasas vivas.
A sala encheu-se de um nevoeiro azul e fino; notei que
meus sentidos fraquejavam, a visão escurecia. De uma
distância incomensurável, pareceu-me ouvir o bimbalhar de
um grande sino. O som se aproximou mais, a intensidade
aumentou até que julguei que minha cabeça ia estourar. A
visão clareou, eu observei atentamente, enquanto uma
coluna de fumaça se erguia da tigela, ininterrupta. Dentro da
fumaça, vi movimentos, movimentos que se aproximavam e
me engoliam, de modo que passei a fazer parte deles. De
alguma parte, para além de minha compreensão, a voz do
Oráculo do Estado chegou a meus ouvidos, falando em tom
monótono. Mas eu não necessitava de sua voz. Estava vendo
o futuro, vendo-o de modo tão vívido quanto ele. Em certo
ponto do Tempo, afastei-me e observei os acontecimentos
de minha vida, que se desenrolavam diante de mim como se
registrados em uma película de movimento constante.
Minha infância, os fatos de minha vida, o caráter feroz de
meu pai — tudo surgia à minha frente. Mais uma vez eu me
achava sentado diante da grande Lamaseria em Chakpori.
Mais uma vez senti as rodas duras da Montanha de Ferro,
enquanto o vento me atirava do telhado da Lamaseria, com
força capaz de quebrar ossos, pela encosta da montanha. A
fumaça rodopiou e os quadros, o que chamamos "o Registro
Akáshico", prosseguiram. Voltei a ver minha iniciação,
cerimônias secretas envoltas em fumaça, quando eu ainda
não fora iniciado. Nos quadros, vi quando partia na trilha
comprida e solitária, para Chungking, na China.
Uma estranha máquina girava e se sacudia no ar,
levantando-se e caindo sobre os penhascos íngremes de
Chungking. E eu... eu... estava nos controles da mesma!
Mais tarde, vi revoadas de máquinas assim, com o Sol
Crescente do Japão nas asas. Das máquinas caíam manchas
negras, que iam ter à terra e explodiam em chamas e fumaça.
Corpos estraçalhados eram atirados ao ar, e por algum tempo
chovia sangue e fragmentos humanos do céu. Senti-me de
coração pesado, aturdido, enquanto os quadros se moviam e
me mostravam a mim mesmo, sendo torturado pelos
japoneses. Vi minha vida, vi as dificuldades, a amargura. Mas
o maior pesar de todos foi a traição e o mal de algumas
pessoas no mundo ocidental que, como percebia, se
dedicavam a destruir o trabalho pelo bem, tendo a única
explicação de sua inveja. Os quadros continuavam a se
mover, e eu vi o curso provável de minha vida, antes de
vivê-la.
Como bem sabia, as probabilidades podem ser previstas do
modo mais preciso. Apenas os detalhes de menor
importância são diferentes, às vezes. As configurações
astrológicas da pessoa determinam o limite do que se pode
ser, e se pode suportar, assim como o controlador de um
motor pode determinar suas velocidades mínima e máxima.
"É uma vida dura para mim, não há dúvida!" pensei. Depois,
saltei de tal modo que quase caí da almofada; u'a mão fora
posta em meu ombro. Ao me voltar, vi o rosto do Oráculo
do Estado, que agora estava sentado atrás de mim. Sua
expressão era da maior compaixão, de pesar pelo caminho
difícil que eu tinha à frente.
Você é muito psíquico, Lobsang, — disse. —
Normalmente, tenho de descrever esses quadros para que
sejam apreendidos. O Mais Precioso, como seria de esperar,
está inteiramente certo.
Tudo que desejo — respondi — é permanecer aqui, em
paz. Por que motivo haveria de querer ir para o mundo
ocidental, onde eles pregam tão ardorosamente a religião...
e cortam a garganta da pessoa, pelas costas?
Há uma Tarefa, meu amigo, — disse o Oráculo — tarefa
que precisa ser cumprida. Você pode cumpri-la, a despeito
de todas as oposições. Daí o preparo especial e difícil que
está recebendo.
Isso me encheu da maior tristeza, toda essa conversa sobre
dificuldades e Tarefas. Tudo quanto eu queria era paz e
tranqüilidade, e alguma diversão inofensiva, de vez em
quando.
Agora — disse o Oráculo — chegou o momento de
regressar ao seu guia, pois ele tem muito a lhe dizer, e o está
esperando.
Pus-me em pé, e fiz u'a mesura, antes de me voltar e deixar
a sala. Lá fora, o enorme monge-policial esperava para levar-
me ao Lama Mingyar Dondup. Juntos seguimos, lado a lado,
e eu pensei em um livro de ilustrações que vira, no qual um
elefante e uma formiga seguiam pela trilha do mato, lado a
lado...
Bem, Lobsang! — disse o lama, quando entrei em sua
sala. — Espero que não esteja abatido demais com tudo que
viu.
Sorria, fazendo-me um gesto para que me sentasse.
Alimento para o corpo, primeiro, Lobsang, e depois
alimento para a Alma, — exclamou, rindo, enquanto tocava
a sineta de prata para que o monge-criado trouxesse nosso
chá.
Evidentemente, eu chegara a tempo! As regras das
lamaserias determinavam que ninguém devia olhar ao redor
enquanto comia e que os olhos da pessoa não se deviam
desviar, dedicando toda a atenção à Voz do Leitor. Ali, na
sala do Lama Mingyar
Dondup, não havia Leitor empoleirado lá em cima, lendo
em voz alta os Livros Sagrados, a fim de afastar nossos
pensamentos de coisas comuns tais como comida.
Tampouco havia Inspetores severos, prontos a saltar sobre
nós pela menor infração às regras. Espiei pela janela, vendo
os Himalaias que se estendiam sem fim à minha frente,
pensando que breve chegaria a época em que eu não mais os
poderia fitar. Eu recebera vislumbres do futuro — o meu
futuro — e receava as coisas que vira claramente, mas que
haviam estado, em parte, veladas na fumaça.
Lobsang! — disse meu guia. — Você viu muito, mas
muito mais ficou oculto. Se achar que não pode enfrentar o
futuro planejado, nesse caso aceitaremos o fato... embora
com tristeza... e você poderá permanecer no Tibete.
Senhor! — respondi. — Certa feita me dissestes que o
homem que parte para uma das Trilhas da Vida, mas que
fraqueja e volta, não é um homem. Eu irei à frente, mesmo
sabendo das dificuldades que encontrarei.
Ele sorriu, assentindo com aprovação.
Como esperava — afirmou —, você terá êxito, no
fim.
Senhor! — perguntei. — por que motivo as pessoas
não vêm a este mundo com um conhecimento do que
foram, nas vidas passadas, e o que deverão fazer, nesta vida?
Por que deve haver o que chama "Conhecimento Oculto"?
Por que não podemos nós todos saber tudo?
O Lama Mingyar Dondup ergueu as sobrancelhas e riu.
Você, por certo, quer saber muita coisa! — comentou.
— E sua memória está falhando, também, porque
recentemente eu lhe disse que nós, de modo normal, não
nos lembramos das vidas passadas, porque isso seria
aumentar nosso encargo neste mundo. Como dizemos, "a
Roda da Vida gira, trazendo riqueza a um e pobreza a outro.
O mendigo de hoje é o príncipe de amanhã". Se não
tivermos conhecimento de nossas vidas passadas,
começamos tudo de novo, sem procurar tira- partido do que
fomos em nossa última encarnação.
Mas — perguntei — e o Conhecimento Oculto? Se
todas as pessoas tivessem esse conhecimento, todas estariam
melhor, progrediriam mais depressa.
O meu guia sorriu, compadecido.
Não é tão simples assim! — respondeu.
Por momentos, permaneceu sentado, silente, e depois
voltou a falar.
Existem poderes dentro de nós, dentro do controle de
nosso Eu Maior, imensuravelmente maiores do que tudo que
o Homem já conseguiu fazer no mundo material, no mundo
físico. O Homem Ocidental, de modo particular, viria a
abusar de tais Poderes, como os que podemos controlar, pois
tudo com que ele se importa é o dinheiro. O Homem
Ocidental só sabe fazer duas perguntas: você pode provar?
e... o que ganho com isso?
Ele riu, com ar bastante juvenil, e acrescentou:
Eu sempre me divirto muito, quando penso na vasta
quantidade de mecanismo e aparelhagem que o Homem usa
para enviar uma mensagem "sem fio" pelos oceanos. "Sem
fios" é a última expressão que eles deviam usar, pois a
aparelhagem consiste de muitas milhas de fios. Mas aqui, no
Tibete, nossos lamas enviam mensagens telepáticas, sem
qualquer aparelhagem. Entramos no plano astral e viajamos
no espaço e no tempo, visitando outras partes do mundo, e
outros mundos. Podemos levitar... erguer cargas imensas,
pela aplicação de poderes que de um modo geral não são
conhecidos. Nem todos os homens são puros, Lobsang, e
tampouco o manto de um monge sempre encobre um
homem santo. Pode haver um homem mau em uma
lamaseria assim como um santo pode ser encontrado na
prisão.
Eu o fitei com certa perplexidade.
Mas se todos os homens soubessem disso, por certo
todos seriam bons, não é? — perguntei.
O lama olhou para mim com pesar, ao responder:
Nós mantemos o Conhecimento Secreto, para que ele
continue secreto, a fim de que a Humanidade seja
salvaguardada. Muitos homens, em especial os do Ocidente,
pensam apenas em dinheiro e no poder sobre os demais.
Como foi previsto pelo Oráculo e outros, esta nossa terra
será mais tarde invadida e fisicamente conquistada por um
culto estranho, um culto que não dedica qualquer
pensamento ao homem comum, mas existe unicamente para
aumentar o poder de ditadores, ditadores que escravizarão
metade do mundo. Houve altos lamas que foram torturados
até a morte pelos russos, porque não divulgavam
conhecimentos proibidos. O homem comum, Lobsang, que
tivesse repentinamente acesso ao conhecimento proibido,
reagiria da seguinte maneira: em primeiro lugar, recearia o
poder que adquirira. Depois, ocorrer-lhe-ia que tinha o meio
de tornar-se mais rico, mais do que em seus sonhos mais
aloucados. Faria experiências, e o dinheiro lhe viria. Com
poder e dinheiro cada vez maior, desejaria ainda mais
dinheiro e poder. Um milionário jamais se satisfaz com um
milhão, mas quer muitos milhões a mais! É dito que, nos
não-evoluídos, o poder absoluto corrompe. O
Conhecimento Oculto confere poder absoluto.
Uma grande luz se fez para mim; eu sabia como o Tibete
podia ser salvo! Saltando, agitado, exclamei:
Nesse caso, o Tibete está salvo! O Conhecimento
Oculto nos salvará da invasão!
Meu guia fitava-me com compaixão.
Não, Lobsang, — respondeu, com tristeza — nós não
usamos os Poderes para coisas assim. O Tibete será
perseguido, quase aniquilado, mas nos anos vindouros ele se
levantará outra vez, tornando-se maior, mais puro. O país
será purificado da escória, na fornalha da guerra, exatamente
como, mais tarde, todo o mundo o será.
Dito isso, dirigiu-me um olhar de esguelha.
Tem de haver guerra, você sabe, Lobsang! — disse,
falando baixo. — Se não houvesse guerras, a população do
mundo tornar-se-ia grande demais. Se não houvesse guerras,
não haveria pragas. As guerras e a doença regulam a popu-
lação do mundo, e proporcionam oportunidades ao povo da
Terra... e de outros mundos... para fazer o bem aos outros.
Sempre haverá guerras, até que a população do mundo possa
ser controlada de algum outro modo.
Os gongos nos chamavam para o serviço noturno. Meu guia,
o Lama Mingyar Dondup, pôs-se em pé.
Venha, Lobsang, — disse — somos hóspedes aqui, e
devemos demonstrar respeito aos nossos anfitriões,
comparecendo ao serviço.
Saímos da sala, passando ao pátio. Os gongos chamavam
com insistência — e soavam por mais tempo do que teria
ocorrido em Chakpori. Seguimos por nosso caminho,
surpreendentemente devagar até o Templo. Eu estava
pensando na lentidão de nossos passos, e ao olhar ao redor
vi homens muito idosos, e os enfermos, andando com
dificuldade pelo pátio, atrás de nós. Meu guia sussurrou-me:
Seria uma cortesia, Lobsang, se você fosse para lá e se
sentasse com aqueles chelas.
Assentindo, dei a volta pelas paredes internas do Templo,
até chegar ao ponto onde os cheias da Lamaseria do Oráculo
do Estado estavam sentados. Eles me olharam com
curiosidade, quando me sentei ao lado deles. De modo quase
imperceptível, quando os Inspetores não estavam olhando,
eles se aproximaram, até me cercarem.
De onde vens? — perguntou um rapaz, que parecia ser
o chefe.
Chakpori, — respondi, em cochicho.
Você é o camarada mandado por O Mais Precioso? —
sussurrou outro.
Sim — cochichei, em resposta —, fui mandado ver o
Oráculo, ele me disse...
SILÊNCIO! — berrou uma voz, por trás de mim. — Nem
um som mais de vocês!
Vi que o homenzarrão se afastava.
Bolas! — disse o menino. — Não dê atenção a ele, o
latido que tem é pior do que a mordida.
Nesse exato instante o Oráculo do Estado e um Abade
apareceram, por pequena porta lateral, e o serviço começou.
Logo estávamos seguindo outra vez para fora. Em com-
panhia dos outros, fui à cozinha, para encher novamente
minha bolsa de couro com cevada, e obter chá. Não houve
oportunidade para conversar; monges de todos os graus
estavam ali, travando uma discussão final, antes de se
recolherem para dormir. Segui para o quarto que me fora
destinado, envolvi-me no manto e me deitei para dormir. O
sono não veio depressa, porém. Fitei a escuridão purpúrea,
pontilhada pelas lâmpadas de manteiga, de cor dourada. Lá
ao longe, os Himalaias eternos estendiam dedos rochosos
para o céu, como em súplica aos Deuses do Mundo. Raios
brancos e vívidos de luar rebrilhavam em meio às falhas das
montanhas, desaparecendo e rebrilhando novamente, à
medida que a lua subia no céu. Não havia qualquer brisa
aquela noite, as bandeiras de oração pendiam inertes dos
mastros. Uma nuvem pequena, quase um farrapo, flutuava
brilhantemente sobre a Cidade de Lhasa. Eu me voltei, e
imergi num sono sem sonhos.
Às primeiras horas da manhã, despertei com um sobressalto
de susto; dormira demais, e estaria atrasado para o serviço
matutino. Pondo-me em pé com um salto, enverguei
apressadamente o manto e parti para a porta. Em disparada
pelo corredor deserto, cheguei ao pátio — e fui ter
diretamente aos braços de um dos Homens de Kham.
Aonde vais? — sussurrou ele, com ferocidade,
enquanto me segurava com mãos de ferro.
Ao serviço matutino, — respondi. — Devo ter
dormido demais.
Ele riu e me soltou.
Oh! — disse. — Tu és um visitante. Aqui não existe
serviço matutino. Volta, e vai dormir outra vez.
Não há serviço matutino? — gritei. — Ora, todos têm
serviço religioso de manhã!
O monge-policial devia estar de bom humor, pois deu-me
uma resposta educada:
Nós temos homens idosos aqui, alguns que se acham
enfermos, e por esse motivo dispensamos o serviço
matutino. Vai e descansa um pouco em paz.
Deu-me um tapa na cabeça, em gesto que para ele era gentil,
e que a mim pareceu o ribombo e estremecimento de um
trovão, empurrando-me de volta para o corredor. Voltando-
se, retomou a caminhada pelo pátio, as passadas pesadas
fazendo "bonk! bonk!", o cacete pesado fazendo "thunk!
thunk!" quando batia no chão, a cada dois passos. Segui em
disparada pelo corredor, e em questão de minutos dormia
outra vez.
Mais tarde, naquele dia, fui apresentado ao Abade e a dois
dos lamas superiores. Eles me interrogaram com atenção, fa-
zendo perguntas a respeito de minha vida no lar, ou o que
recordava de vidas anteriores, minha relação com meu guia,
o Lama Mingyar Dondup. Finalmente, os três se puseram
em pé, com esforço, seguindo rumo à porta.
Venha — disse o último, voltando para mim o dedo
dobrado.
Espantado, andando como alguém ofuscado, segui com
humildade. Eles prosseguiram lentamente, saindo pela porta,
e andando com passos letárgicos pelo corredor. Eu os
acompanhava, quase tropeçando em meus próprios pés, no
esforço por andar devagar. Assim nos arrastamos, passando
por quartos abertos onde trapas e cheias fitavam com
curiosidade nossa passagem lenta. Senti as faces arderem de
embaraço, por estar na "cauda" dessa procissão; à sua cabeça,
o Abade seguia devagar, com a ajuda de dois bastões. Em
seguida, vinham dois velhos lamas, tão decrépitos e
encarquilhados que mal conseguiam acompanhar o Abade. E
eu, fechando a retaguarda, quase não conseguia andar na
mesma lentidão.
Finalmente, chegamos a um pequeno umbral, em muralha
distante. Paramos, enquanto o Abade procurava uma chave
e resmungava baixinho. Um dos lamas adiantou-se para
ajudá-lo, e com o tempo uma porta foi aberta, com rangido
de dobradiças em protesto. O Abade entrou, acompanhado
pelo primeiro lama e depois o outro. Ninguém me disse
coisa alguma, de modo que entrei também. Um velho lama
fechou a porta, após eu ter entrado. À minha frente, havia
uma mesa bastante comprida, cheia de objetos velhos e
cobertos de poeira. Mantos antigos, antigas Rodas de Oração,
velhas tigelas e fieiras variadas de Miçangas de Oração.
Espalhadas sobre a mesa estavam algumas Caixas de Encanto,
diversos outros objetos que, à primeira vista, eu não
conseguia identificar.
Hmmmm. Hmmmm. Venha cá, meu menino! —
ordenou o Abade.
Segui com relutância, e ele agarrou meu braço esquerdo,
com a mão ossuda. A sensação que tive era como se
houvesse sido agarrado por um esqueleto!
-— Hmmmm. Hmmmm. Menino! Hmmmm. Qual destes
objetos e artigos esteve em sua posse, durante uma vida
passada, se é que há algum?
Fez-me percorrer o comprimento da mesa, depois me
voltou para o outro lado e disse:
Hmmmm. Mmmmm. Se você acha que algum artigo
foi seu, Hmmmm, apanhe-o e Hmmmm, traga-o a mim.
Sentou-se com esforço, parecendo não se interessar mais
por minhas atividades. Os dois lamas sentaram-se com ele, e
não disseram mais uma só palavra.
"Bem!" eu estava pensando. "Se os três velhos querem
brincar assim... está bem, vou fazer o que desejam!" A
psicometria, naturalmente, é a coisa mais simples de todas.
Segui devagar, com a mão esquerda estendida de palma para
baixo, sobre os diversos artigos. Com certos objetos,
experimentei uma forma de comichão no centro da palma, e
um leve estremecimento ou tremor que se estendia pelo
braço. Apanhei uma Roda de Oração, uma tigela velha e
surrada, e uma fieira de miçangas. Depois, repeti a viagem
pelo lado da mesa comprida. Apenas um outro artigo fez
com que a palma de minha mão comichasse e meu braço
formigasse; um velho manto esfarrapado, na última etapa de
deterioração. Era um manto açafrão de alto dignitário, a cor
quase desfeita pela idade, o material apodrecido e
transformando-se em pó ao contato. Com cuidado, eu o
recolhi, receando que se desintegrasse entre minhas mãos
cuidadosas. Cautelosamente, levei-o ao velho Abade,
depositando-o a seus pés e regressando para apanhar a Roda
de Oração, a tigela em mau estado e a fieira de miçangas.
Sem uma palavra, o Abade e os dois lamas examinaram os
artigos e compararam certos sinais, ou marcas secretas, com
os de um livro velho e negro que "o Abade tirara do manto.
Por algum tempo, eles permaneceram sentados, olhando uns
para os outros, as cabeças assentindo sobre pescoços
encarquilhados, os cérebros antigos quase rangendo com o
esforço por pensar.
Harrumph! Arrrf! — resmungou o Abade,
resfolegando como um iaque esgotado pelo trabalho. —
Mmmmmnnn. É realmente ele. Hmmmn. Um feito notável.
Mmmmm. Vá ao seu guia, o Lama Mingyar Dondup, meu
rapaz, e Hmmm, diga a ele que ficaríamos honrados com sua
presença. Você, meu filho, não precisa voltar. Harrumph!
Arrrf!
Eu me voltei e saí correndo da sala, satisfeito por estar livre
daquelas múmias vivas, cuja presença ressecada estava tão
distante da humanidade cálida do Lama Mingyar Dondup.
Em disparada, ao passar por uma esquina, consegui deter-me
a poucos centímetros de meu guia. Ele riu e disse:
Oh! Não fique tão surpreso, eu também recebi a men-
sagem. .
Dando-me um tapa amigo nas costas, apressou-se rumo à
sala onde estavam o Abade e os dois velhos lamas. Eu segui
para o pátio, e ali chutei uma ou duas pedras, ociosamente.
Tu és o camarada cuja Encarnação está sendo Reco-
nhecida? — perguntou uma voz, atrás de mim.
Voltei-me e vi um chela que me fitava com atenção.
Eu não sei o que eles estão fazendo — respondi. —
Tudo que sei é que fui levado pelos corredores, para poder
apanhar algumas de minhas coisas antigas. Qualquer um
pode fazer isso!
O menino riu, bonachão.
Vocês, os homens do Chakpori, sabem o que fazem —
disse —, ou não estariam naquela Lamaseria. Ouvi dizer que
você foi alguém grande, em vida passada. Você deve ter
sido, para que o próprio Oráculo lhe dedicasse meio dia.
Deu de ombros, fingindo horror, e observou:
É melhor ter cuidado. Antes de saber o que está
acontecendo, eles o terão Reconhecido, e feito de você um
Abade. Depois, você não poderá brincar mais com outros
homens de Chakpori.
De uma porta na extremidade distante do pátio surgiu a
forma de meu guia. Com rapidez, veio em nossa direção. O
chela com quem eu estivera conversando fez mesura
profunda, em saudação humilde. O lama sorriu para ele e
falou com bondade, como sempre:
Temos de seguir, Lobsang! — disse para mim. — Logo
a noite cairá, e não queremos viajar pela escuridão.
Juntos, seguimos para os estábulos, onde um monge-
palafreneiro estava à espera, com nossos cavalos; Com
relutância, montei e acompanhei meu guia na trilha pelos
salgueiros. Sacolejávamos em silêncio, pois eu jamais
conseguiria conversar de modo inteligente quando
montado, uma vez que todas as minhas energias eram
dedicadas a permanecer na sela. Para meu espanto, não
voltamos para Chakpori, mas prosseguimos rumo à Potala.
Devagar, os cavalos subiram a Estrada de Degraus. Por baixo
de nós, o Vale já submergia nas sombras da noite. Com
satisfação, desmontei, seguindo com pressa para a Potala, já
minha conhecida, à procura de comida.
Meu guia esperava por mim, quando fui para meu quarto
após o jantar.
Entre comigo, Lobsang, — ordenou.
Entrei e, à convite dele, sentei-me.
Bem! — disse ele. — Você deve estar imaginando o que
se passou.
Oh! Conto ser Reconhecido como uma Encarnação! —
respondi, desembaraçadamente. — Um dos homens e eu
estivemos falando sobre isso, na Lamaseria do Oráculo do
Estado, quando o senhor me chamou!
Bem, isso é ótimo para você, — disse o Lama Mingyar
Dondup. — Agora, precisamos de algum tempo para
examinar as coisas. Você não precisa ir ao serviço desta
noite. Sente-se de modo mais confortável e ouça, e não
continue a me interromper. A maioria das pessoas vem a
este mundo a fim de aprender as coisas — começou meu
guia. — Outras vêm para que possam ajudar aos que
necessitam, ou completar alguma tarefa altamente
importante.
Dedicou-me um olhar severo, para ter certeza de que eu
prestava atenção, e prosseguiu:
Muitas religiões falam de um Inferno, o lugar de cas-
tigo, ou de expiação pelos pecados da pessoa. O inferno é
aqui, neste mundo. Nossa vida verdadeira é no Outro
Mundo. Vimos aqui para aprender, pagar pelos erros que
cometemos em vidas anteriores ou... como já disse... tentar a
realização de alguma tarefa de alta importância. Você está
aqui para executar uma tarefa relacionada com a aura
humana. As suas "ferramentas" serão uma percepção
psíquica excepcionalmente sensível, uma capacidade
grandemente intensificada de ver a aura humana, e todo o
conhecimento que lhe pudermos dar, com referência a
todas as artes ocultas. O Mais Precioso decretou que todos os
meios possíveis sejam usados para aumentar suas
capacidades e talentos. O ensino direto, as experiências
verdadeiras, o hipnotismo, vamos usar tudo para que você
obtenha o máximo de conhecimento dentro do menor
tempo possível.
É o inferno, não há dúvida! — exclamei, tomado de
tristeza.
O lama riu de minha expressão.
Mas este Inferno é apenas o degrau para uma vida
muito melhor, — respondeu. — Aqui, conseguimos livrar-
nos de algumas das faltas mais desprezíveis. Aqui, com
alguns anos de vida na Terra, livramo-nos de faltas que
poderão ter-nos perseguido no Outro Mundo, por faixas
ilimitadas de tempo. Toda a vida neste mundo não passa de
um piscar de olhos, em comparação à do Outro Mundo. A
maioria das pessoas no Ocidente — prosseguiu — pensa que
quando alguém "morre" pode ficar sentado em uma nuvem,
tocando harpa. Outras julgam que quando alguém deixa este
mundo, passando ao próximo, adquire um estado místico de
inconsciência, e gostam da idéia.
Ele riu, e prosseguiu:
Se conseguíssemos fazê-los comprender, ao menos,
que a vida após a morte é mais verdadeira do que qualquer
coisa na Terra! Tudo, neste mundo, consiste de vibrações, as
vibrações
de todo o mundo... e tudo dentro do mundo... pode ser
comparado a uma oitava de uma escala musical. Quando
passamos ao Outro Lado da Morte, a "oitava" sobe mais na
escala.
Meu guia parou, tomou-me a mão e esfregou os nós de meus
dedos no soalho.
Isto, Lobsang, — disse — é pedra, as vibrações às
quais chamamos pedra.
Voltou a tomar minha mão e esfregou meus dedos em meu
manto.
Isto — exclamou — é a vibração que indica a lã. Se
subirmos com tudo a escala de vibrações, ainda assim
mantemos os graus relativos de dureza e maciez. Assim, na
Vida após a Morte, a verdadeira Vida, podemos possuir
coisas, exatamente como neste mundo. Você compreendeu
isso com clareza? — Perguntou.
Era tudo obviamente claro, eu sabia essas coisas há muito
tempo. O lama interrompeu meus pensamentos.
Sim, sei que tudo isto é conhecimento comum aqui,
mas se vocalizarmos esses "pensamentos impronunciados"
poderemos torná-los mais claros em sua mente. Mais tarde
— asseverou — você vai viajar para as terras do mundo
ocidental. Lá, encontrará muitas dificuldades, provenientes
das religiões ocidentais.
Ele sorriu com certa tristeza, e observou:
Os cristãos nos chamam pagãos. Em sua Bíblia, está
escrito que "Cristo vagueou pelo deserto". Em nossos
registros, está revelado que Cristo peregrinou pela Índia,
estudando as religiões indianas, e depois veio a Lhasa,
estudando no Jo Kang, sob a direção dos nossos sacerdotes
mais destacados da época. Cristo formulou uma boa religião,
mas o cristianismo praticado hoje não é a religião ensinada
por Cristo.
Meu guia fitou-me com ar um tanto severo, afirmando:
Eu sei que você fica um pouco entediado com isso,
pensando que eu falo só por falar, mas eu viajei por todo o
mundo ocidental, e é meu dever adverti-lo quanto ao que
vai enfrentar. O melhor meio de fazer isso é falar com você
sobre as religiões deles, pois sei que você tem uma memória
eidética.
Não pude deixar de corar, pois estivera realmente pensando:
"Palavras em demasia!".
Lá fora, nos corredores, os monges seguiam em direção ao
Templo, para o serviço noturno. Sobre o telhado os
trombeteiros fitavam o Vale e emitiam as últimas notas do
dia que terminava. Ali, à minha frente, meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, prosseguiu em sua preleção:
Existem duas religiões básicas no Ocidente, porém são
inúmeras as subdivisões. A religião judaica é antiga e
tolerante. Você não encontrará problemas, não terá
dificuldades causadas pelos judeus. Há séculos eles vêm
sendo perseguidos, e têm grande simpatia e compreensão
pelos outros. Os cristãos não se mostram tão tolerantes, a
não ser nos domingos. Não vou dizer coisa alguma sobre as
crenças individuais, porque você lerá sobre elas, mas vou-
lhe dizer como as religiões começaram.
"Nos primeiros dias de vida sobre a Terra — disse o lama —
as pessoas se achavam, inicialmente, em grupos pequenos,
tribos muito pequenas. Não havia leis, nenhum código de
comportamento. A força era a lei única; uma tribo mais forte
e feroz fazia a guerra contra as mais fracas. Ao correr do
tempo, surgiu um homem mais forte e mais sábio. Ele
compreendeu que sua tribo seria a mais forte, se fosse
organizada. Fundou uma religião e um código de conduta.
"Crescei e multiplicai-vos", ordenou, sabendo que quanto
mais crianças nascessem, tanto mais forte sua tribo se
tornaria. "Honrai vosso pai e vossa mãe", ordenou, sabendo
que se desse autoridade aos pais sobre os filhos, teria
autoridade sobre os primeiros. Sabendo, também, que se
conseguisse convencer os filhos de suas obrigações para com
os pais, seria mais fácil impor a disciplina. "Não cometereis
adultério", trovejou o Profeta dessa época. Sua ordem
verdadeira era que a tribo não devia ser "adulterada" com o
sangue do membro de outra tribo, pois em casos assim as
fidelidades ficariam divididas. Com o correr do tempo, os
sacerdotes haviam descoberto que havia alguns que nem
sempre obedeciam aos ensinamentos religiosos. Depois de
muito pensar, depois de muita discussão, esses sacerdotes
prepararam um plano de recompensa e castigo. "Céu",
"Paraíso", "Valhala"... podemos dar o nome que
quisermos... para aqueles que obedeciam aos sacerdotes. O
fogo do inferno e a condenação, com torturas infinitas, para
quem desobedecesse.
Quer dizer que o senhor se opõe às religiões organizadas
no Ocidente? — perguntei.
Não, certamente que não, — respondeu meu guia. — Há
muitos que se sentem perdidos, a menos que possam sentir
ou imaginar um Pai onisciente que os vigia, tendo um Anjo-
Secretário pronto a anotar qualquer ato bom, bem como os
atos maus! Nós somos Deus para as criaturas microscópicas
que habitam em nossos corpos, e as criaturas ainda menores
que habitam as moléculas dela! Quando à oração, Lobsang,
você ouve com freqüência as orações das criaturas que
existem em suas moléculas?
Mas o senhor disse que a oração era eficaz! — retorqui,
com algum espanto.
Sim, Lobsang, a oração é muito eficaz, se orarmos para
nosso próprio Eu Maior, a parte verdadeira de nós que está
em outro mundo, a parte que controla nossos "cordões de
fantoche". A oração é muito eficaz, se obedecermos às
regras simples e naturais que a tornam eficaz.
Sorriu para mim, ao prosseguir.
O homem é um simples fragmento minúsculo, em um
inundo conturbado. O homem só está a cômodo quando se
sente seguro, em alguma forma de "Abraço Materno". Para
aqueles no Ocidente, sem preparo na arte de morrer, o
último pensamento, o último grito, é "Mamãe!" Um homem
inseguro de si mesmo, embora procure dar uma aparência de
confiança, suga um charuto ou cigarro, exatamente como
um bebê sugará uma chupeta. Os psicólogos concordam em
que o hábito de fumar é apenas uma reversão aos traços da
infância inicial, onde a criancinha extraia a nutrição e a
confiança de sua mãe. A religião é um fator de reconforto. O
conhecimento da verdade da vida... e da morte... é de
reconforto ainda maior. Somos como a água, quando sobre a
Terra; como o vapor, quando passamos pela "morte"; e
voltamos a condensar-nos, formando água, quando
renascemos mais uma vez neste mundo.
Senhor! — exclamei. — Acha que os filhos não devem
honrar os pais?
Meu guia fitou-me, com certa surpresa.
Ora, essa, Lobsang! Os filhos, naturalmente, devem
respeitar os pais... enquanto os pais o merecerem. Os pais
demasiadamente dominadores não devem ter licença de
arruinar os filhos, porém, e um "filho" adulto certamente
tem a primeira responsabilidade para com o cônjuge. Aos
pais não deve ser permitido tiranizar e impor vontade aos
filhos adultos. Permitir que os pais ajam assim é prejudicar
tanto os mesmos quanto a si próprio. Isso cria uma dívida
que os pais terão de pagar, em alguma outra vida.
Pensei nos meus. Meu pai severo e áspero, um pai que
jamais tinha sido um "pai" para mim. Minha mãe, cujo pen-
samento principal era a vida social. Depois, pensei no Lama
Mingyar Dondup, que era mais do que mãe e pai para mim,
a única pessoa que me demonstrara bondade e amor, em
todos os momentos.
Um monge-mensageiro entrou apressadamente, fazendo
profunda reverência.
Honrado Senhor Mingyar, — disse, com respeito. —
Recebi ordens de transmitir os respeitos e cumprimentos de
O Mais Precioso e pedir que tenha a bondade de ir ter com
Ele. Posso levá-lo a Ele, Senhor?
Meu guia pôs-se em pé e acompanhou o mensageiro. Eu saí,
subindo ao telhado da Potala. Pouco mais alta, a Lamaseria
Médica de Chakpori se apresentava na escuridão da noite. A
meu lado, uma Bandeira de Oração tremulava débilmente
em seu mastro. De pé, numa janela próxima, vi um velho
monge, ocupado em fazer girar sua Roda de Orações, cujo
estrépito era um som alto no silêncio da noite. As estrelas se
estendiam por cima, em procissão infinita, e eu fiquei ima-
ginando se nós parecíamos assim aos olhos de alguma outra
criatura, em alguma parte.
4

Estávamos no tempo de Logsar, o Ano Novo Tibetano. Nós,
cheias — e também os trapas —, tínhamos estado ocupados
por algum tempo, preparando imagens de manteiga. No ano
anterior não nos tínhamos dado a esse trabalho, e isso
ocasionara certo mal-estar; outras lamaserias haviam
declarado (e corretamente!) que nós, de Chakpori, não
tínhamos o tempo ou o interesse para tais atividades infantis.
Aquele ano, então, por ordem de O Mais Precioso, tivemos
de fazer imagens de manteiga e entrar no torneio. Nosso
esforço foi modesto, comparado ao de algumas lamaserias.
Sobre uma estrutura de madeira, com perto de vinte palmos
de altura, por trinta de comprimento, nós modelávamos em
manteiga colorida diversas cenas tiradas dos Livros Sagrados.
Nossas figuras eram inteiramente tridimensionais, e
contávamos que, quando vistas à luz bruxuleante das
lâmpadas de manteiga, apresentariam uma ilusão de
movimento.
Sua Santidade em pessoa, bem como todos os lamas de
maior graduação, examinavam as exposições todos os anos, e
muito louvor era dado aos vitoriosos. Após a época de
Logsar, a manteiga era derretida e utilizada nas lâmpadas,
durante o ano. Enquanto eu trabalhava — ainda tinha
alguma habilidade na modelagem — pensava em tudo que
aprendera nos últimos meses. Certas coisas a respeito da
religião ainda me intrigavam, e decidi falar com meu guia, o
Lama Mingyar Dondup, a respeito das mesmas, na primeira
oportunidade que tivesse, mas, agora, a escultura em
manteiga era a ocupação! Eu me, abaixei e raspei uma carga
nova de manteiga colorida, subindo cuidadosamente no
tapume, de modo a poder modelar a orelha em proporções
de Buda. À minha direita, dois jovens chelas travavam uma
guerra de manteiga, apanhando punhados da mesma,
modelando-os mais ou menos em forma de bola, e depois
atirando o projétil pegajoso sobre o "inimigo". Divertiam-se
à grande, mas por azar um monge-inspetor surgiu, por trás
de uma coluna de pedra, para ver qual era a causa de tanto
alarido. Sem pronunciar uma só palavra, ergueu ambos os
meninos, um com a mão direita e o outro com a esquerda,
atirando-os dentro de uma dorna com manteiga quente!
Eu me voltei, e prossegui trabalhando. A manteiga misturada
com fuligem de lâmpada formava sobrancelhas muito
apropriadas. A ilusão de vida já estava presente na figura.
"Este é o Mundo de Ilusão, afinal de contas", estava
pensando. Desci, seguindo pelo chão para poder olhar
melhor o trabalho. O Mestre de Artes sorriu para mim;
talvez eu fosse seu aluno favorito, pois gostava de modelar e
pintar, e me esforçava realmente por aprender com ele.
Estamos indo bem, Lobsang, — disse êle, em tom
agradável. — Os Deuses parecem vivos.
Afastou-se também, para poder ordenar modificações em
outra parte do cenário, e eu pensei: "Os Deuses parecem
vivos! Existem Deuses? Por que nos ensinam a respeito
deles, se não existe um só? Preciso perguntar a meu guia".
Imerso em pensamentos, raspei a manteiga das mãos. Ao
canto, os dois cheias que haviam sido jogados na dorna de
manteiga quente procuravam limpar-se, esfregando os
corpos com areia escura e fina, e tinham um aspecto muito
embaraçado, enquanto o faziam. Eu dei uma risada, e me
voltei para ir embora. Um cheia atarracado andava a meu
lado e observou:
Até os Deuses devem ter rido disso!
"Até os Deuses... Até os Deuses... Até os Deuses", e esse
refrão se repetia em meu espírito, sincronizado com minhas
passadas. Os Deuses, existiam Deuses! Desci para o templo e
me instalei, à espera de que começasse o serviço religioso
conhecido.
Ouçam as Vozes de nossas Almas, todos vocês que
vagueiam. Este é o Mundo de Ilusão. A Vida é apenas um
sonho. Todos os que nascem têm de morrer.
A voz do sacerdote prosseguia em sua récita, nas palavras
conhecidas, palavras que agora despertavam minha
curiosidade.
O terceiro bastão de incenso é aceso, para chamar um
fantasma errante, para que possa ser guiado.
"Não é ajudado pelos Deuses", eu pensava, "mas guiado por
seus semelhantes, por que não pelos Deuses? Qual o motivo
pelo qual orávamos ao nosso Eu Maior e não a um Deus?" O
resto do serviço não tinha qualquer atrativo, nenhum
significado para mim. Fui despertado de meus pensamentos
por um cotovelo que me cutucava violentamente as costelas.
Lobsang! Lobsang! O que houve com você, está
morto? Levante-se, o serviço acabou!
Levantei-me desajeitadamente, acompanhando os demais
que se retiravam do Templo.
Senhor! — disse a meu guia, o Lama Mingyar Dondup,
algumas horas depois. — Senhor! Existe um Deus? Ou
Deuses?
Ele olhou para mim, e respondeu:
Vamos sentar-nos no telhado, Lobsang. Quase não se
pode conversar aqui, neste lugar cheio de gente.
Voltou, seguindo à frente pelo corredor, passando pelos
alojamentos dos lamas, subindo o poste entalhado e assim
chegamos ao telhado. Por momentos, permanecemos na
contemplação da cena amada, as cordilheiras imensas, a água
brilhante do Kyi Qiu, e do Kaling Chu orlado de juncos. Por
baixo de nós, o Norbu Linga, o Parque das Jóias, parecia uma
massa de verde vivo. Meu guia acenou com a mão.
Você acha que tudo isto seja ocasional, Lobsang?
Naturalmente existe um Deus!
Dito isto, passamos à parte mais alta do telhado, sentando-
nos ali.
Você está confuso em seus pensamentos, Lobsang —
afirmou meu guia. — Existe um Deus; existem Deuses.
Enquanto estamos nesta Terra, não nos encontramos em
condições de perceber a Forma e a Natureza de Deus.
Vivemos no que pode ser chamado um mundo
tridimensional. Deus vive em um mundo tão distante, que o
cérebro humano, enquanto estiver na Terra, não pode
abarcar o conceito necessário de Deus, e desse modo os
homens tendem a racionalizar as coisas. "Deus" é tomado
como algo humano, super-humano, se preferir esse termo,
mas o Homem, em sua presunção, acredita ter sido feito à
Imagem de Deus! O Homem também acredita que não haja
vida em outros mundos. Se o Homem é feito à Imagem de
Deus, e os povos de outros mundos são de imagem dife-
rente... o que aconteceria a nosso conceito de que o
Homem, somente ele é feito à Imagem de Deus?
O lama fitou-me com atenção, para ter a certeza de que eu
lhe acompanhava as observações. Isso era fora de dúvida,
pois tudo aquilo parecia evidente por si mesmo.
Todos os mundos, todos os países de todos os mundos,
têm seu Deus, ou Anjo Guardião. Nós chamamos ao Deus
encarregado do mundo de Manu. É um Espírito altamente
evoluído, um ser humano que mediante encarnações
sucessivas expurgou a escória de si, deixando apenas o que é
puro. Existe um grupo de Grandes Seres que, nos momentos
de necessidade, vêm a esta Terra, e podem estabelecer um
exemplo pelo qual os mortais comuns conseguem erguer-se
do atoleiro dos desejos mundanos.
Eu assenti, pois sabia a esse respeito, sabia que Buda, Moisés,
Cristo e muitos outros pertenciam àquela Ordem. Sabia
também de Maitreya que, como se acha nas Escrituras
Budistas, virá ao mundo 5.656 milhões de anos após a
passagem de Buda ou Gautama, como Ele deveria ser
chamado com mais precisão. Tudo isso, e mais, fazia parte
de nossos ensinamentos religiosos comuns, bem como o
conhecimento de que qualquer boa pessoa tem uma
oportunidade igual, qualquer que seja o nome ostentado por
sua própria crença religiosa. Nunca acreditamos que apenas
uma seita religiosa "fosse para o Céu", e que todas as outras
caíssem no Inferno, para o divertimento de amigos
sanguinários de todo o tipo. O meu guia, porém, estava
pronto a prosseguir.
Nós temos o Manu do mundo, o Grande Ser Evoluído,
que controla o destino do mundo. Existem Manus menores,
que controlam o destino de um país. Em anos infinitos, o
Manu Mundial partirá, e o seguinte, na escala de valores, a
essa altura bem preparado, evoluirá, tomará conta da Terra.
Ah! — exclamei, com certo ar triunfal. — Nesse caso,
nem todos os Manus são bons! O Manu da Rússia está dei-
xando que os russos ajam contra o nosso bem. O Manu da
China permite aos chineses invadir nossas fronteiras e matar
nossa gente.
Você se esquece, Lobsang, — replicou — de que este
mundo é o Inferno, que vimos aqui para aprender lições.
Vimos para sofrer, a fim de que nosso espírito possa evoluir.
As dificuldades ensinam, a dor ensina, a bondade e a
consideração não ensinam. Existem guerras, para que os
homens possam demonstrar coragem nos campos de batalha
e... como o minério de ferro na fornalha... se temperem e
fortaleçam, pelo fogo da batalha. O corpo carnal não
importa, Lobsang, ele é apenas um fantoche temporário. A
Alma, o Espírito, o Eu Maior (chame como quiser) é tudo
quanto deve ser levado em conta. Na Terra, em nossa
cegueira, achamos que apenas o corpo importa. O medo de
que o corpo possa sofrer obnubila nossa visão, deforma
nosso juízo. Temos de agir pelo bem de nossos próprios Eus
Maiores, enquanto continuamos ajudando os outros.
Aqueles que seguem cegamente os ditames de pais tirânicos
aduzem uma carga aos pais, bem como a si próprios. Os que
seguem cegamente os ditames de alguma crença religiosa
estereotipada também impedem sua evolução.
Honrado Lama! — protestei. — Posso aduzir dois
comentários ?
Sim, pode — respondeu meu guia.
— O senhor disse que aprendemos mais depressa se as
condições forem duras. Eu preferiria um pouco mais de
bondade. Eu conseguiria aprender desse modo.
Ele me fitou, pensativo.
Poderia? — perguntou. — Você aprenderia o que está
nos Livros Sagrados, mesmo que não receasse os
professores? Faria sua parte de trabalho nas cozinhas, se não
temesse o castigo caso ficasse com preguiça? Você faria isso?
Eu baixei a cabeça, reconhecendo a razão, pois trabalhava
nas cozinhas quando recebia ordens para isso. Estudava os
Livros Sagrados porque receava o resultado de não o fazer.
E qual é sua outra pergunta? — indagou o lama.
Bem, Senhor, como é que uma religião estereotipada
prejudica a evolução da pessoa?
Eu lhe darei dois exemplos, — respondeu mei1 guia. — Os
chineses acreditavam que não importava o que faziam nesta
vida, uma vez que podiam pagar os pecados e faltas quando
voltassem outra vez. Assim, adotaram a política da preguiça
mental. Sua religião tornou-se um elemento de
entorpecimento, levando-os à preguiça espiritual; eles
viviam apenas para a vida seguinte, de modo que suas artes e
habilidades caíram em desuso. A China assim se tornou uma
potência de terceira classe, na qual os chefes de bandoleiros
deram início a um reinado de terror e pilhagem.
Eu observava que os chineses em Lhasa pareciam
desnecessariamente brutais e de todo fatalistas. A morte,
para eles, não representava outra coisa senão a passagem
para um outro aposento! Eu não receava a morte de modo
algum, mas queria executar minha tarefa em um período de
vida, ao invés de relaxar, e ter de voltar a este Mundo,
repetidas vezes. O processo de nascer, ser criança indefesa,
ter de freqüentar a escola, tudo isso era dificuldade para
mim. Esperava que esta vida fosse a última que eu passava
sobre a Terra. Os chineses tinham tido invenções
maravilhosas, obras de arte igualmente maravilhosas, uma
cultura admirável. Ora, por ter aderido a uma crença
religiosa de modo demasiadamente servil, o povo chinês se
tornara decadente, presa fácil para o comunismo. Em certa
época, o conhecimento e a idade haviam merecido respeito
profundo na China, como deveria acontecer, mas, agora —
os sábios não recebiam mais honras que lhes eram devidas ;
tudo que importava, agora, era a violência, o ganho pessoal e
o egoísmo.
Lobsang! — e a voz de meu guia interrompeu meus
pensamentos. — Vimos uma religião que ensinava a
inatividade, ensinava que não se deve, de modo algum,
influenciar outra pessoa, para que não se aumentasse o
carma próprio... A dívida que passa de uma vida para a outra.
Ele fitou a cidade de Lhasa, vendo nosso Vale Pacífico, e
voltou-se novamente para mim.
As religiões do Ocidente tendem a ser muito militantes.
As pessoas, por lá, não se contentam em acreditar o que eles
querem crer, mas estão prontas a matar outras para fazê-las
acreditar também.
Eu não percebo como matar uma pessoa possa ser boa
prática religiosa, — observei.
Não, Lobsang — respondeu o lama —, mas ao tempo da
Inquisição espanhola, um ramo dos cristãos torturava outro
ramo para que os seus componentes pudessem ser
"convertidos e salvos". As pessoas eram postas em ecúleos
ou queimadas, para se persuadirem a mudar de crença!
Ainda hoje essa gente envia missionários, que procuram, por
quase todos os meios, obter convertidos. Parecem estar tão
inseguros de sua crença que têm de fazer com que os demais
exprimam aprovação e acordo com sua religião...
raciocinando, presumivelmente, que a segurança reside nos
grandes números!
Senhor! — disse eu. — Acha que as pessoas devam seguir
uma religião?
Ora, por certo, se assim o desejarem, — respondeu o
Lama Mingyar Dondup. — Se as pessoas ainda não atingiram
a etapa na qual podem aceitar o Eu Maior e o Manu do
Mundo, nesse caso sentir-se-ão reconfortadas em aderir a
algum sistema formal de religião. Trata-se de uma disciplina
mental e espiritual, fazendo algumas pessoas sentirem que
pertencem a um grupo familiar, tendo um Pai benevolente a
vigiá-las e uma Mãe compadecida sempre pronta a
interceder em seu favor junto ao Pai. Sim, para esses, em
certa etapa da evolução, tal religião é boa. Mas quanto mais
cedo essas pessoas compreenderem que devem orar a seu Eu
Maior, tanto mais depressa evoluirão. Às vezes perguntam-
nos o motivo pelo qual temos Imagens Sagradas em nossos
Templos, ou pelo qual temos Templos, afinal de contas. A
isso podemos responder que tais Imagens são lembrete de
que também podemos evoluir e, com o tempo, tornar-nos
altos Seres Espirituais. Quanto a nossos Templos, são lugares
onde as pessoas de pensamento semelhante podem reunir-
se, a fim de conferir força mútua na tarefa de chegar ao Eu
Maior de cada um. Pela oração, ainda que ela não esteja
corretamente dirigida, consegue-se alcançar uma cadência
maior de vibrações. A meditação e a contemplação dentro
de um Templo, de uma Sinagoga, ou uma Igreja, é benéfica.
Fiquei pensando sobre aquilo que acabara de ouvir. Lá
embaixo, o Kaling Chu tilintava e corria mais depressa, ao
estreitar-se sob a Ponte da Estrada de Lingkor. Para o sul,
divisei um grupo de homens à espera do Barqueiro do Kyi
Chu. Os comerciantes haviam chegado mais cedo aquele dia,
trazendo jornais e revistas para o meu guia. Jornais da Índia
e de países estranhos do mundo. O Lama Mingyar Dondup
viajara para muito longe e numerosas vezes, mantendo-se
em contato atento com as questões do mundo fora do Tibete
- Jornais, revistas. Um pensamento seguia sub-repticiamente
em meu espírito. Alge que tinha a ver com aquela palestra.
Jornais? De repente, dei um salto, como se fora mordido.
Não os jornais, mas uma revista! Algo que eu vira, e o que
era, mesmo? Já sabia! Tudo se esclarecia para mim; eu
percorrera algumas páginas, sem compreender uma só
palavra das línguas estrangeiras, mas procurando as
ilustrações. Uma dessas páginas ficara parada, sob meu
polegar investigador. O quadro de um ser alado, pairando
nas nuvens, adejando acima de um campo sangrento de
batalha. O meu guia, a quem eu mostrara a ilustração, lera e
traduzira a legenda para mim.
— Honrado Lama! — exclamei agitado. — Ainda hoje o
senhor me falou daquela Figura.... e a chamou o anjo de
Mons... que muitos homens afirmam ver acima dos campos
de batalha. É um Deus?
— Não, Lobsang — respondeu meu guia —, inúmeros
homens, na hora de seu desespero, ansiaram por ver a figura
de um Santo ou, como o chamam, um Anjo. Sua
necessidade urgente e as emoções fortes inerentes a uma
batalha deram vigor a seus pensamentos, aos seus desejos e
às suas orações. Assim, do modo como lhe mostrei, criaram
uma forma de pensamento, de acordo com suas próprias
especificações. Quando o primeiro esboço fantasmagórico
de uma figura se apresentou, as orações e pensamentos dos
homens que o causavam se intensificaram, e a figura
adquiriu vigor e solidez, perdurando por bastante tempo.
Nós fazemos a mesma coisa aqui, quando "criamos formas
de pensamento" no Templo Interno. Mas venha, Lobsang, o
dia já se adiantou, e as Cerimônias de Logsár ainda não
foram concluídas.
Seguimos pelo corredor, descendo para o cenário de
movimentação, o torvelinho que era a vida cotidiana dentro
de uma lamaseria, durante uma Estação de Comemoração. O
Mestre de Artes veio à minha procura, querendo um
menino pequeno e leve para subir no tapume e fazer
algumas alterações na cabeça de uma figura lá em cima.
Seguindo atrás dele, fui ter em passos rápidos pela trilha
escorregadia até a Sala de Manteiga. Enverguei um manto
antigo, que estava liberalmente coberto de manteiga
colorida, e atei uma corda leve ao redor da cintura, para
poder suspender o material, após o que subi no tapume. Era
como o Mestre calculara, parte da cabeça se partira,
soltando-se dos sarrafos de madeira. Gritando para baixo o
que eu queria, fiz oscilar minha corda e suspendi um balde
de manteiga. Trabalhei por algumas horas, retorcendo
fragmentos de madeira fina ao redor das escoras, modelando
mais uma vez a manteiga para recolocar a cabeça no lugar.
Finalmente, o Mestre de Artes, observando com ar crítico lá
do chão, indicou que estava satisfeito. Devagar, entorpecido,
desemaranhei-me do tapume e desci lentamente para o
chão. Satisfeito, mudei de manto e saí apressadamente.
No dia seguinte, eu e muitos outros cheias estávamos na
planície de Lhasa, ao pé da Potala, na Aldeia de Shö. Em
teoria, observávamos as procissões, os jogos, as corridas. Na
verdade, estávamo-nos exibindo diante dos peregrinos
humildes que congestionavam as trilhas montanhosas, para
chegarem a Lhasa a tempo para o Logsar. Eles vinham de
todo o mundo budista, para ali, a Meca do Budismo.
Homens velhos, estropiados pela idade, mulheres novas,
carregando crianças ao colo, todos vinham na crença de
que, completando o Circuito Santo da Cidade da Potala,
estavam expiando os pecados passados e assegurando um
bom renascimento na vida próxima sobre a Terra. Ledores
da sorte congestionavam a Estrada de Lingkor, mendigos
antigos choramingavam, pedindo óbulos, e vendedores com
as mercadorias suspensas sobre os ombros abriam caminho
em meio à multidão, procurando fregueses. Logo me cansei
daquela cena movimentada, cansei-me da multidão
boquiaberta e de suas perguntas sem fim e idiotas. Afastei-
me de meus companheiros e, devagar, subi a trilha da
montanha para meu lar na lamaseria.
Sobre o telhado, em meu ponto favorito, tudo estava calmo.
O sol proporcionava um calor suave. Lá embaixo, agora fora
de minha visão, surgiu um murmúrio confuso, vindo da
multidão, murmúrio esse que em seu caráter indistinto
vinha tranqüilizar-me, tornar-me sonolento ao sol do meio-
dia. Uma figura de sombra materializou-se quase no limite
extremo de minha visão. Sonolento, sacudi a cabeça, pisquei
os olhos. Quando voltei a abri-los, a figura ainda estava lá,
agora mais clara, tornando-se mais densa. Meus cabelos
ficaram em pé, tamanho o susto.
Você não é um fantasma! — exclamei. — Quem é?
A Figura sorriu de leve, e respondeu:
Não, meu filho, não sou um fantasma. Também já es-
tudei aqui, em Chakpori, e estive neste telhado,
descansando, como você o faz agora. Depois, desejei, acima
de tudo, acelerar minha libertação quanto aos desejos
terrenos. Fiz-me fechar dentro das muralhas daquele
eremitério, — indicou, apontando para cima, e eu me voltei
para acompanhar a direção de seu braço estendido. — Agora
— prosseguiu ele, telepaticamente —, neste décimo
primeiro Logsar, desde aquela data, eu consegui o que
procurava; liberdade para vagar à vontade, enquanto deixo
meu corpo seguro, dentro da cela do eremitério. Minha pri-
meira jornada é para cá, para poder mais uma vez olhar a
multidão, para poder visitar de novo este lugar de que me
lembro tão bem. Liberdade, menino, eu atingi a liberdade.
Diante de meu olhar, ele desapareceu como uma nuvem de
incenso dispersa pelo vento noturno.
Os eremitérios! Nós, cheias, havíamos ouvido falar tanto
sobre eles... Como seriam, por dentro? Muitas vezes,
procurávamos imaginar. Por que motivo os homens se
encarceravam dentro daquelas câmaras de pedra,
precariamente suspensas à beira da montanha? Também
pensávamos sobre isso! Resolvi perguntar a meu amado guia.
Depois, recordei-me de que um velho monge chinês vivia a
pouca distância de onde eu estava. O velho Wu Hsi levava
uma vida interessante; durante alguns anos fora monge
adido ao Palácio dos Imperadores em Pequim. Cansado dessa
vida, viajou para o Tibete, à procura de esclarecimento. Com
o tempo, chegara ao Chakpori e fora aceito. Cansado disso,
após alguns anos, fora para um eremitério e por sete anos
levara a vida solitária. Agora, porém, encontrava-se de volta
em Chakpori, esperando a morte. Eu me voltei e segui
apressadamente para o corredor lá embaixo. Fui ter a uma
pequena cela, e chamei o velho.
Entre! Entre! — disse ele, em voz alta e fraquejante.
Entrei em sua cela, e pela primeira vez vi Wu Hsi, o monge
chinês. Estava sentado, as pernas cruzadas, e, a despeito dc
sua idade, as costas se mantinham tão eretas quanto um
bambu novo. Tinha malares salientes e pele muito amarela,
apergaminhada. Os olhos eram inteiramente negros e
enviesados. Alguns poucos fios de cabelo apresentavam-se
no queixo e do lábio superior pendia uma dúzia, mais ou
menos, de pelos de seu bigode comprido. As mãos eram
amarelo-castanhas, sarapintadas devido à idade avançada,
enquanto as veias se apresentavam como os ramos de uma
árvore. Ao seguir para ele, fitou cegamente em minha
direção, sentindo mais do que vendo.
Hmmn, hmmn — fez — um menino, um menino bem
novo, pelo modo de andar. O que quer, menino?
Senhor! — respondi. — Vivestes por muito tempo em um
eremitério. Tereis, Santo Senhor, a bondade de me falar
sobre isso?
Ele resmungou, mastigou as pontas do bigode, e depois
disse:
Sente-se, menino, faz muito tempo desde que falei so-
bre o passado, embora pense constantemente nele, agora.
Quando eu era menino — prosseguiu — viajei muito e fui
ter à Índia. Ali, vi os eremitas fechados dentro de suas
cavernas, e alguns deles pareciam ter atingido o
esclarecimento.
Dito isso, sacudiu a cabeça, e continuou:
As pessoas comuns eram muito preguiçosas, passavam
os dias sob as árvores. Ah! Era uma visão deplorável!
Santo Senhor! — interrompi. — Eu preferiria muitíssimo
ouvir falar dos eremitérios do Tibete.
Hem? O que foi isso? — perguntou ele, em tom débil. —
Oh, sim, os eremitérios do Tibete. Regressei da Índia, e fui
para minha Pequim natal. A vida ali me entediava, pois eu
não estava aprendendo. Tomei novamente o cajado, a tigela,
e rumei, durante muitos meses, para as fronteiras do Tibete.
Suspirei para mim mesmo, começando a ficar exasperado, e
o velho prosseguiu:
Com o correr do tempo, depois de ter permanecido
em uma lamaseria depois de outra, sempre à procura de
esclarecimento, cheguei a Chakpori. O Abade permitiu que
eu ficasse ali, uma vez que eu fora médico na China. Minha
especialidade era a acupuntura. Por alguns anos fiquei
contente e depois senti um grande desejo de entrar para um
eremitério.
A essa altura, eu estava quase saltitando de impaciência. Se o
velho levasse muito mais tempo, eu chegaria atrasado — e
não poderia perder o serviço religioso da noite! Já quando
pensava nisso, ouvia o primeiro toque dos gongos. Com
relutância, ergui-me e disse:
Respeitado Senhor, tenho de ir agora.
O velho deu uma risadinha.
Não, menino, — respondeu. — Pode ficar, pois você
não está aqui recebendo instrução de um Irmão Mais Velho.
Fique, e está dispensado do serviço noturno.
Voltei a sentar-me, sabendo que ele dissera a verdade:
embora ainda fosse um trapa, e não um lama, ainda assim era
considerado um Mais Velho, devido à idade, suas viagens, e
experiência.
Menino do chá, chá! — exclamou ele. — Vamos
tomar chá, pois a carne é frágil, e o peso dos anos é muito
em mim. Chá, para o jovem e para o velho.
Em resposta a seu chamamento, um Monge Auxiliar dos
Idosos trouxe-nos chá e cevada. Preparamos o nosso tsampa,
e nos acomodamos, ele para falar, eu para ouvir.
O Senhor Abade deu-me permissão para deixar
Chakpori e entrar em um eremitério. Com um monge-
ajudante, parti deste lugar, e subi para as montanhas. Após
cinco dias de viagem, chegamos a um lugar que pode ser
visto do telhado daqui.
Eu assenti, pois conhecia o lugar, um edifício solitário bem
alto nos Himalaias. O velho prosseguiu:
O lugar estava vazio, pois o ocupante anterior morrera
recentemente. O Ajudante e eu limpamos tudo, e depois eu
me pus a fitar o vale de Lhasa pela última vez. Olhei a Potala
e Chakpori, depois me voltei e segui para a câmara interna.
O Ajudante levantou uma parede na porta, fechando-a com
firmeza, e eu fiquei só.
Mas, Senhor! Como é o interior? — perguntei.
O velho Wu Hsi esfregou a cabeça, antes de responder.
É um edifício de pedra — respondeu, devagar. — Um
edifício com paredes muito grossas. Não há portas, pois uma
vez que se esteja lá dentro da câmara interna, a porta é
fechada, levantando-se outra parede firme. Nessa porta há
uma passagem, inteiramente à prova de luz, pela qual o
eremita recebe comida. Um túnel escuro liga a câmara
interna àquela onde vive o Ajudante. Eu fui emparedado. A
escuridão era tão espessa que eu quase a podia apalpar. Nem
um só vislumbre de luz entrava, nenhum som podia ser
ouvido. Sentei-me no soalho e comecei minha meditação.
De início, sofri com alucinações, imaginando ver faixas de
luz. Depois, senti que a escuridão me estrangulava, como se
eu estivesse coberto por lama macia e seca. O tempo deixou
de existir. Logo ouvi, com a imaginação, sinos e gongos e o
som de homens cantando. Mais tarde bati nas paredes de
minha cela, procurando em meu frenesi descobrir uma
saída. Não conhecia a diferença entre o dia e a noite, pois ali
tudo era tão negro e silencioso quanto o túmulo. Depois de
algum tempo, tornei-me calmo, meu pânico desapareceu.
Continuei sentado, visualizando a cena, o velho Wu Hsi —
o jovem Wu Hsi, então! — na escuridão quase viva, dentro
do silêncio total.
A cada dois dias — disse o ancião —, o ajudante vinha e
depositava um pouco de tsampa na parte externa da fresta.
Vinha tão silenciosamente que nunca o consegui ouvir. Da
primeira vez, apalpando cegamente minha comida na
escuridão, eu a derrubei, e não a consegui alcançar. Chamei
e gritei, mas nenhum som saía de minha cela; era preciso
esperar outros dois dias.
Senhor! — perguntei. — O que acontece, se um eremita
adoece ou morre?
Meu menino — disse o velho Wu Hsi —, se um eremita
adoecer... ele morre. O ajudante deposita comida, a cada
dois dias, por quatorze dias. Depois desse tempo, se a
comida continua intata, vêm os homens, derrubam a parede,
e tiram de lá o corpo do eremita.
O Velho Wu Hsi fora eremita por sete anos.
O que acontece em caso como o seu, quando permaneceu
lá o tempo escolhido?
Permaneci por dois anos, e depois por mais sete. Quando
já estava próximo o momento de sair, foi feito o menor
buraco possível no teto, de modo que por ali entrasse um
feixe diminutíssimo de luz. Após alguns dias, o buraco era
aumentado, permitindo que entrasse mais luz. Finalmente,
eu conseguia suportar toda a luz do dia. Se o eremita for
repentinamente trazido para a luz ficará no mesmo instante
cego, pois os olhos se dilataram por tanto tempo na
escuridão que já não mais conseguirão contrair-se. Quando
saí, estava branco, descorado, os cabelos tão brancos quanto
a neve das montanhas. Recebi massagens, fiz exercícios,
pois meus músculos estavam quase inutilizados, devido ao
desuso. Gradualmente, recuperei minhas forças até que,
afinal, consegui, com meu ajudante, descer a montanha para
residir novamente em Chakpori.
Sopesei suas palavras, pensando nos anos infinitos de
escuridão, silêncio absoluto, voltado a seus próprios
recursos, e ainda tinha perguntas.
O que aprendeu com isso, Senhor? — perguntei,
finalmente. — Valeu à pena?
Sim, menino, sim, valeu à pena! — disse o velho monge.
— Aprendi a natureza da vida. Aprendi qual o fito do
cérebro. Tornei-me livre do corpo, e podia mandar o
espírito a lugares distantes, exatamente como você o faz
agora, no plano astral.
Mas como sabe que não foi sua imaginação? Como sabe
que estava lúcido? Por que não viajava no astral, como eu
faço?
Wu Hsi riu até que lágrimas rolassem por suas faces
encarquilhadas.
Perguntas... perguntas... perguntas, menino, exata-
mente como eu costumava fazer! — respondeu.
"A princípio, fui tomado pelo pânico. Amaldiçoei o dia em
que me tornara monge, amaldiçoei o dia em que entrara
naquela cela. Gradualmente, consegui acompanhar os
modelos de respiração, e meditar. De início, tive
alucinações, imaginações vãs. Depois, certo dia, soltei-me de
meu corpo e a escuridão já não era mais escura para mim. Vi
meu corpo sentado, na atitude de meditação. Vi meus olhos
que não enxergavam, fitando a escuridão, arregalados. Vi a
palidez da minha pele, a magreza do meu corpo. Erguendo-
me, passei pelo teto da cela e vi, lá embaixo, o vale de Lhasa.
Notei certas alterações, vi pessoas que eu conhecia e,
passando pelo Templo, pude conversar com um lama
telepático que confirmou, para mim, minha libertação.
Vaguei por bem longe, além das fronteiras deste país. A cada
dois dias, regressava e entrava novamente no corpo,
reanimando-o para que pudesse comer e nutrir-se.
Mas por que não conseguia fazer a viagem astral sem
todos esses preparativos? — Voltei a perguntar.
Alguns de nós são mortais muito comuns. Poucos de nós
possuem a capacidade especial que a você é dada por causa
da tarefa que tem de empreender. Também você viajou
muito no astral. Outros, como eu, têm de suportar a solidão
e a vicissitude, antes que seu espírito possa libertar-se da
carne. Você, menino, é um dos afortunados, um dos muito
afortunados!
O ancião suspirou, e prosseguiu:
Vá-se embora! Preciso descansar, falei muito. Volte a,
verme, será um visitante bem-vindo, a despeito das
perguntas que faz.
Voltou-se para outro lado e, com um murmúrio de
agradecimento, eu me pus em pé, fiz reverência, e saí
silenciosamente do quarto. Estava tão ocupado, tomado por
pensamentos, que bati diretamente na muralha oposta, e
quase arranquei o espírito de meu corpo. Esfregando a
cabeça que doía, caminhei com calma pelo corredor, até
chegar à minha própria cela.
O serviço da meia-noite estava quase findo. Os monges se
remexiam de leve, prontos a partirem com pressa para
algumas horas mais de sono, antes de voltarem. O velho
Leitor, no pódio, Inseriu cuidadosamente u'a marca entre as
páginas do Livro e voltou-se, pronto a descer de lá.
Inspetores de olhar atento, sempre alerta à procura de
qualquer perturbação, ou querendo descobrir os meninos
desatentos, afrouxaram em sua vigilância. O serviço estava
quase encerrado. Pequenos chelas faziam oscilar os turíbulos
para o último passe, e se ouvia o murmúrio mal reprimido de
um grande número de pessoas que se preparam para mover-
se. De repente, houve um grito penetrante, e uma figura
selvagem saltou sobre as cabeças dos monges sentados,
procurando agarrar um jovem trapa que segurava dois
bastões de incenso. Nós nos pusemos em pé com um salto,
tomados de choque. Diante de nós, a figura selvagem
rodopiava e girava, a espuma escorrendo de seus lábios
enrugados, gritos, horríveis emitidos de sua garganta
torturada. Por alguns momentos, o mundo pareceu parar; os
monges-policiais ficaram imóveis de surpresa, os sacerdotes
oficiantes estavam de braços erguidos. E depois, com
violência, os inspetores entraram em ação. Convergindo
sobre a figura enlouquecida, logo a dominaram, passando o
manto ao redor de sua cabeça, para silenciar as pragas que
vinham em torrente de sua boca. Com eficiência e rapidez,
ele foi levantado e retirado do Templo. O serviço terminou.
Pusemo-nos em pé e nos apressamos a sair, ansiosos por
estarmos além das dependências do Templo, para que
pudéssemos falar sobre o que tínhamos acabado de ver.
Esse é Kenji Tekeuchi — disse um jovem trapa perto de
mim. — É um monge japonês que tem feito visitas a toda a
parte.
Procurando a Verdade, e esperando que lhe entreguem,
ao invés de trabalhar para consegui-la, — informou um
terceiro.
Eu me afastei, um tanto perturbado. Por que a Busca pela
Verdade faria um homem enlouquecer? O quarto estava frio,
e eu tiritei de leve, ao deitar-me para dormir. Parecia que
nenhum tempo decorrera, até que os gongos voltassem a
soar, para o serviço religioso seguinte. Olhando pela janela,
vi os primeiros raios do sol surgindo sobre as montanhas,
raios de luz que pareciam dedos gigantescos a apalpar o céu,
estendendo-se para as estrelas. Suspirei, e segui
apressadamente pelo corredor, aflito por não ser o último a
entrar no Templo, com o que viria a merecer a ira dos
Inspetores.
Está com aspecto pensativo, Lobsang, — observou
meu guia, o Lama Mingyar Doridup, quando o vi mais tarde,
após o serviço do meio-dia.
Fez-me sinal para que me sentasse.
Você viu o monge japonês, Kenji Tekeuchi, quando
ele entrou no Templo. Quero falar-lhe a respeito dele,
porque mais tarde o conhecerá.
Acomodei-me melhor, pois aquela não ia ser uma sessão
rápida. Eu fora "apanhado" pelo resto do dia! O Lama sorriu,
ao ver minha expressão fisionômica.
Talvez devamos tomar chá da Índia.. e bolinhos
indianos... para dourar a pílula, Lobsang, hem?
Fiquei um pouco mais satisfeito, e ele deu uma risadinha,
dizendo:
O ajudante já o está trazendo, porque eu esperava por
você!
"Sim", eu pensava, enquanto o monge-criado entrava, "onde
mais eu poderia ter um tal Mestre?"
Os bolinhos da Índia eram meus favoritos, e os olhos do
próprio lama às vezes se esbugalhavam de espanto, diante da
quantidade dos mesmos que eu conseguia "eliminar"!
Kenji Tekeuchi — disse meu guia — é... foi... um
homem muito versátil. Viajou muito, e por toda a vida (está
agora com mais de setenta anos) vagou pelo mundo, à
procura do que ele chama Verdade. A Verdade está dentro
dele, mas não sabe disso. Ao invés, andou por aí, voltou a
andar. Sempre estudou as crenças religiosas, sempre leu os
livros de muitas terras, prosseguindo nessa procura, nessa
obsessão. Agora, finalmente, foi-nos mandado. Leu tanta
coisa de natureza oposta, que ficou com a aura contaminada.
Leu tanto, e compreendeu tão pouco, que na maior parte do
tempo é demente. Transformou-se em verdadeira esponja
humana, absorvendo todos os conhecimentos e digerindo
pouquíssimo.
Então, Senhor! — exclamei. — O senhor se opõe ao
estudo pelos livros?
De modo nenhum, Lobsang! — respondeu o lama. — Eu
me oponho, como todos os homens que pensam, àqueles
que obtêm as brochuras, os panfletos e os livros escritos
acerca de cultos estranhos, tratando do chamado ocultismo.
Essa gente envenena a sua própria alma, torna impossível o
progresso maior para si mesma enquanto não tenham
deixado de lado todos os conhecimentos falsos e não se
tenham tornado igual a uma criança pequena.
Honrado Lama — perguntei —, como alguém fica
demente? Como a leitura errada leva à confusão, em alguns
casos?
Trata-se de urna história muito comprida, — respondeu o
Lama Mingyar Dondup. — Primeiramente, temos de
examinar alguns fundamentos. Tenha paciência, e escute! Na
Terra, somos como fantoches, fantoches feitos de moléculas
em vibração, cercadas por uma carga elétrica. Nosso Eu
Maior vibra em cadência muito mais elevada, e possui carga
elétrica muito mais alta. Existe uma relação definida entre
nossa cadência de vibrações e aquela de nosso Eu Maior.
Pode-se comparar o processo de comunicação entre cada
um de nós, nesta Terra, e nosso Eu Maior em outras partes, a
um processo que é novo neste mundo, um processo pelo
qual as ondas de rádio são enviadas através dos continentes e
mares, permitindo assim a uma pessoa, em um país,
comunicar-se com outra,, em terra bem distante. Nossos
cérebros são semelhantes à receptores de rádio, no sentido
de que recebam as mensagens de "alta freqüência", bem
como ordens e instruções, do Eu Maior e as transformam
em impulsos de baixa freqüência, que controlam nossas
ações. O cérebro é o dispositivo eletromecanicoquímico que
nos torna úteis na Terra. As reações químicas levam nosso
cérebro a funcionar de modo defeituoso, talvez bloqueando
parte da mensagem, porque raramente, na Terra, recebemos
a mensagem exata "irradiada" pelo Eu Maior. A Mente é
capaz de ação limitada, sem referência ao Eu Maior. A
Mente é capaz de aceitar certas responsabilidades, formar
certas opiniões, e procura preencher a lacuna entre as
condições "ideais" do Eu Maior e as condições difíceis sobre
a Terra.
Mas a gente ocidental aceita a teoria da eletricidade ao
cérebro? — perguntei.
Sim, — respondeu meu guia. — Em certos hospitais, as
ondas cerebrais dos pacientes são registradas, tendo sido
verificado que certas desordens mentais apresentam um
feitio característico de onda cerebral. Assim, com base nas
ondas cerebrais, podemos afirmar se uma pessoa sofre ou
não de alguma doença ou enfermidade mental. Muitas
vezes, uma doença do corpo mandará certas substâncias
químicas ao cérebro, contaminando sua forma de onda e
apresentando, desse modo, os sintomas de insanidade.
O japonês está muito doido? — perguntei.
Venha. Vamos vê-lo agora, pois está em um de seus
momentos lúcidos.
O Lama Mingyar Dondup pôs-se em pé e saiu apressada-
mente do quarto. Fiz o mesmo, correndo atrás dele. Ele
seguiu à frente pelo corredor, até outro nível, indo ter a uma
enfermaria distante, onde ficavam alojados os que recebiam
tratamento médico. Em pequena alcova, com visão para o
Khati Linga, o monge japonês estava sentado, olhando para
fora, com expressão carrancuda. À aproximação do Lama
Mingyar Dondup, apertou as próprias mãos e fez uma
mesura profunda.
Sente-se, — disse meu guia. — Trouxe um jovem para
ouvir suas próprias palavras. Ele está recebendo instrução
especial, por ordem de Sua Santidade.
O lama fez uma mesura, voltou-sé e deixou a alcova. Por
momentos, o japonês me fitou, e depois fez sinal para que
me sentasse. Obedeci, a uma distância conveniente, pois não
sabia se ele se tornaria violento!
Não encha a cabeça com tudo de ocultismo que lê,
menino! — disse o monge japonês. — É matéria indigerível,
que impedirá seu progresso espiritual. Estudei todas as reli-
giões. Estudei todos os cultos metafísicos que pude
encontrar. Isso me envenenou, escureceu-me a visão,
levou-me a crer que era um Escolhido Especial. Agora,
tenho o cérebro prejudicado, e às vezes perco o controle de
mim mesmo... fujo das ordens de meu Eu Maior...
Mas, Senhor! — exclamei. — Como se pode aprender,
sem ler? Que mal possível pode vir da palavra escrita?
Menino! — disse o monge japonês. — Certamente se
pode ler, mas é preciso escolher com cuidado o que se lê, e
ter a certeza de que se entende completamente o que está
escrito. Não há perigo na palavra escrita, mas há perigo nos
pensamentos que ela pode causar. Não se deve comer tudo,
misturando o compatível com o incompatível; tampouco
devemos ler coisas que se contradizem, que se opõem umas
às outras. Nem se devem ler coisas que prometem poderes
ocultos. É muito fácil criar uma Forma de Pensamento, que
não se pode controlar, como eu fiz, e em seguida a Forma
nos prejudica.
O senhor já esteve em todos os países do mundo? —
indaguei.
O japonês me fitou e um brilho leve surgiu em seus olhos.
Nasci em pequena aldeia japonesa — disse — e
quando tinha idade suficiente entrei para o Serviço Sagrado.
Durante anos seguidos, estudei religiões e práticas ocultas.
Depois, meu Superior me ordenou que partisse e viajasse
para países muito além dos oceanos. Há cinqüenta anos,
venho viajando de um a outro país, de um a outro
continente, sempre estudando. Com meus pensamentos,
criei Poderes que não sabia controlar. Poderes que vivem no
mundo astral e que, em alguns momentos, afetam meu
Cordão de Prata. Mais tarde, talvez, terei permissão para
contar-lhe mais. Por enquanto, ainda estou enfraquecido
pelo último ataque, e preciso descansar. Com permissão de
seu guia, pode visitar-me em outro dia.
Fiz minhas reverências e o deixei na alcova. Um monge
médico, vendo que eu partia, apressou-se a ir ter com ele.
Com curiosidade, olhei ao redor, espiei os velhos monges
deitados naquela parte do Chakpori. E depois, em resposta a
um chamamento telepático urgente, apressei-me a ir ao
encontro de meu guia, o Lama Mingyar Dondup.

5

Segui às pressas pelos corredores, fazendo as curvas a correr,
para perigo daqueles que se achassem à minha frente. Um
velho monge agarrou-me ao passar, sacudiu-me e disse:
Não é direito andar com tanta pressa, menino! Não é
assim que faz o verdadeiro budista!
Depois, fitou minha face e reconheceu-me como pupilo do
Lama Mingyar Dondup. Emitindo um som semi-engasgado,
que se assemelhava a um "Ulp!", deixou-me cair como se
fosse uma batata quente e saiu correndo, a seu turno. Segui
calmamente o meu próprio rumo. À entrada da sala de meu
guia, detive-me com tal solavanco que quase caí. Com ele,
encontravam-se dois Abades de alta graduação. Minha
consciência doía de modo horrível. O que eu fizera, dessa
vez? Pior ainda: qual de meus numerosos "pecados" fora
descoberto? Os Abades mais graduados não' esperavam pelos
meninos, a menos que se tratasse de notícias muito más para
os mesmos. As pernas se tornaram patente e
incomodamente fracas, e vasculhei a memória para ver se
fizera algo que pudesse causar minha expulsão de Chakpori.
Um dos Abades olhou para mim, e sorriu com tanto calor
quanto um velho iceberg. O outro me fitou com um
semblante que parecia esculpido em alguma rocha dos
Himalaias. Meu guia riu.
Você, por certo, tem uma consciência culpada,
Lobsang. Ah! Estes Reverendos Irmãos Abades também são
lamas telepáticos, — aduziu, com uma risadinha.
O mais patibular dos dois Abades fitou-me com dureza e, em
voz que fazia lembrar rochas rolando pelas montanhas,
disse:
Terça-Feira Lobsang Rampa, O Mais Precioso deter-
minou investigações pelos quais ficou decidido que você seja
Reconhecido como a Encarnação atual de...
Minha cabeça rodopiava, e eu mal conseguia acompanhar o
que ele dizia, e quase não ouvi suas observações finais.
... e o estilo, patente e título de Senhor Abade lhe
sejam conferidos, por esse motivo, em cerimônia cujo local
e hora serão determinados posteriormente.
Os dois Abades fizeram mesuras solenes para o Lama
Mingyar Dondup, e depois para mim, com o mesmo ar de
solenidade. Apanhando um livro, saíram, e gradualmente o
som de seus passos desapareceu. Permaneci ali, como
aturdido, olhando o corredor por onde tinham ido. Uma
gargalhada estrondosa e o aperto de uma mão em meu
ombro trouxeram-me de volta à realidade.
Agora, você sabe qual é o motivo de toda a correria.
As provas serviram apenas para confirmar o que sabíamos
por todo o tempo. É necessária uma comemoração especial
entre você e eu, e depois tenho algumas notícias
interessantes para lhe dar.
Levou-me a outra sala, e ali havia uma verdadeira refeição
indiana. É desnecessário dizer que não foi preciso encorajar-
me a fazê-la. "Ataquei-a" logo em seguida!
Mais tarde, quando já não mais podia comer coisa alguma,
quando a simples visão da comida restante fazia com que eu
passasse mal, meu guia ergueu-se e seguiu à frente para a
outra sala.
O Mais Precioso deu-me permissão para lhe falar sobre
a Caverna dos Antigos — disse, aduzindo imediatamente: —
Ou melhor, O Mais Precioso sugeriu que eu lhe fale sobre
isso.
Dedicou-me um olhar de esguelha e em seguida, quase em
sussurro, observou:
Vamos mandar uma expedição lá, dentro de poucos
dias.
Senti a animação irromper em mim e tive a impressão
impossível de que talvez estivesse indo "para casa", para um
lugar que conhecera antes. Meu guia me observava com
muita atenção, muitíssima mesmo. Quando o fitei, sob a
intensidade de seu olhar, ele assentiu.
Como você, Lobsang, eu recebi preparo especial,
oportunidades especiais. O meu Mestre foi um homem que
há muito passou desta vida, e cujo Invólucro vazio se acha,
neste momento, no Salão de Imagens Douradas. Com ele,
viajei muito por todo o mundo. Você, Lobsang, terá de
viajar sozinho.
Agora, fique quieto e sentado, pois vou falar sobre a
descoberta da Caverna dos Antigos.
Umedeci os lábios, pois era aquilo o que eu desejava ouvir,
havia já algum tempo. Na Lamaseria, como em qualquer
comunidade, espalhavam-se com freqüência boatos, em
recantos discretos. Alguns eram boatos mesmo, logo à
primeira vista, e nada mais do que isso. Aquilo, entretanto,
era diferente, e de algum modo eu acreditava no que ouvira.
— Eu era um lama muito jovem, Lobsang — principiou meu
guia. — Com o meu Mestre e três lamas jovens, estávamos
explorando algumas das cordilheiras mais distantes. Semanas
antes, tinha ocorrido um estrondo extraordinariamente alto,
acompanhado por grande queda de rochas. Partimos para
investigar o que ocorrera. Durante dias, rondamos ao redor
da base de enorme pináculo de rocha. Ao amanhecer do
quinto dia, meu Mestre acordou, mas não estava desperto;
parecia encontrar-se aturdido. Falamos com ele, sem
obtermos resposta. Fiquei preocupadíssimo, julgando que ele
adoecera, e imaginando como o levaríamos por aquele
caminho extensíssimo até um lugar seguro. Entorpecido,
como se tomado por algum poder estranho, ele se pôs em
pé, caiu e finalmente ficou em pé, ereto. Cambaleando,
sacudindo-se e movendo-se como um homem em transe,
seguiu à frente. Nós o acompanhamos, cheios de medo e
tremores. Subimos a superfície íngreme da rocha, com
chuveiros de pedras pequenas a tombarem sobre nós.
Finalmente, chegamos à beira aguçada do cimo da cordi-
lheira, e ali ficamos a olhar. Tive uma sensação de desapon-
tamento profundo. Diante de nós estava um pequeno vale, a
essa altura quase cheio de pedras enormes. Ali,
evidentemente, tivera origem a queda de rochas. Algum
defeito na rocha se apresentara, ou ocorrera algum tremor
da terra, deslocando parte da encosta da montanha. Grandes
falhas de rocha recém-exposta nos fitavam, à luz brilhante
do sol. O musgo e o líquen pendiam, desconsolados,
privados agora de qualquer apoio. Voltei-me para o outro
lado, cheio de desgosto. Nada havia ali para atrair-me a
atenção, nada, senão um grande desabamento de rochas.
Voltei-me, para começar a descer, mas fui imediatamente
detido por um "Mingyar!" murmurado. Um de meus
companheiros estava apontando. Meu Mestre, tomado ainda
por alguma estranha compulsão, descia pela encosta da
montanha.
Eu permanecia sentado e fascinado, meu guia parou de falar
por momentos, tomou um gole de água, após o que
prosseguiu:
Nós o observávamos, com algum desespero. Devagar,
ele desceu pelo lado da rocha, dirigindo-se ao chão coberto
de outras, no pequeno vale. Acompanhamo-lo com
relutância, contando que a qualquer momento íamos
escorregar naquele lugar perigoso. Chegado ao fundo, meu
Mestre não hesitou, e tomou cuidadosamente por um
caminho em meio às pedras imensas, até chegar ao outro
lado do vale. Para nosso horror, começou a subir com as
mãos e pés, que nos eram invisíveis, embora estivéssemos
poucos metros atrás. Nós o acompanhamos, relutando ainda.
Não podíamos tomar outro rumo, não podíamos regressar e
dizer que nosso superior se afastara de nós, subindo, e que
havíamos tido medo de acompanhá-lo... por mais perigosa
que fosse a escalada. Subi primeiro, escolhendo o caminho
com muito cuidado. Era rocha dura, o ar era rarefeito. Logo
a respiração arquejava-me na garganta e meus pulmões
estavam tomados por uma dor seca e aguda. Em um beiral
estreito, a uns cento e cinqüenta metros do vale, fiquei
estendido, resfolegando. Ao olhar para cima, antes de
retomar a escalada, vi o manto amarelo de meu Mestre
desaparecer sobre o outro beiral, lá em cima. Com decisão
implacável, prendi-me à face da montanha, arrastando-me
sempre para cima. Meus companheiros, tão relutantes
quanto eu, vinham atrás. A essa altura, estávamos fora do
abrigo proporcionado pelo pequeno vale e o vento forte
fazia nossos mantos esvoaçarem. Pequenas pedras choviam,
lá de cima, e a escalada era bem difícil.
Meu guia fez uma pausa momentânea, para tomar outro gole
de água e verificar se eu estava ouvindo. Estava,
naturalmente!
Afinal — prosseguiu ele — encontrei um beiral em
nível com os dedos. Firmando-me bem, e dizendo aos outros
que tínhamos chegado a um lugar onde se podia descansar,
eu me alcei para lá. Havia um socalco, em declive suave para
a parte ide trás, de modo que era inteiramente invisível do
outro lado da cordilheira. De início, aquele ressalto parecia
ter uns três metros de largura. Não parei para ver mais, mas
me ajoelhei, de modo à poder ajudar os outros a subir, um
por um. Logo estávamos juntos, tremendo no vento, após
todo aquele esforço. Era patente que o desabamento de
rochas descobrira aquele ressalto e... quando olhei melhor,
havia uma fenda estreita na muralha da montanha. Havia,
mesmo? De onde nos encontrávamos, podia ser uma sombra
ou a mancha de liquens escuros. Tomados pelo mesmo
impulso, seguimos à frente. Era realmente uma fenda, com
pouco mais de dois palmos de largura e uns cinco de altura.
Não havia qualquer sinal de meu Mestre.
Eu conseguia visualizar bem a cena, mas aquele não era o
momento adequado para introspecção. Não queria perder
uma só palavra!
Voltei atrás, para ver se meu Mestre subira mais alto —
prosseguiu meu guia —, mas não havia qualquer sinal dele.
Temeroso, espiei a fenda. Era tão escura quanto um túmulo.
Centímetro por centímetro, encurvado de modo doloroso,
eu entrei. A uns quinze palmos além, fiz uma volta bastante
aguda, outra, e depois outra. Se não estivesse paralisado de
medo, teria gritado de surpresa; ali havia luz, uma luz
prateada e macia, mais brilhante do que o luar que mais
brilhasse. Luz que eu nunca vira antes. A caverna em que
me encontrava era espaçosa, o teto invisível na escuridão lá
em cima. Um dos companheiros me empurrou, fazendo-me
sair da frente, e foi por sua vez empurrado por outro. E logo
nós quatro estávamos silenciosos e assustados, tendo diante
de nós aquela visão fantástica. Uma visão que teria feito
qualquer um de nós pensar que enlouquecera. A caverna era
como uma sala imensa, estendendo-se a distância, como se a
própria montanha fosse oca. A luz se achava por toda a
parte, iluminando-nos de um número de globos que
pareciam suspensos na escuridão do teto. Máquinas
estranhas estavam ali, em profusão, máquinas como jamais
poderíamos ter imaginado; Até mesmo do teto alto pendiam
aparelhos e mecanismos. Alguns, notei com grande espanto,
estavam cobertos com o que parecia ser o mais puro vidro.
Meus olhos deviam estar arregalados, pois o lama sorriu para
mim, antes de retomar a narrativa.
A essa altura, tínhamos esquecido inteiramente o meu
Mestre, quando ele apareceu de repente, e nós demos um
salto, de susto! Ele riu de nossos olhares e semblantes
assustados. Agora, como víamos, não mais estava tomado
por aquela compulsão estranha e irresistível. Juntos,
andamos por ali, examinando aquelas máquinas estranhas.
Para nós, não tinham qualquer significado, eram apenas
conjuntos de metal e estruturas de forma estranha e exótica.
Meu Mestre seguiu à frente, para um painel negro bastante
grande, aparentemente escavado em uma das paredes da
caverna. Quando estava a ponto de apalpar-lhe a superfície,
o mesmo se abriu. Já estávamos quase no ponto de acreditar
que todo o lugar era enfeitiçado, ou que tínhamos caído sob
o poder de alguma força alucinatória. Meu Mestre deu um
salto para trás, com algum alarme. O painel negro se fechou.
Com grande audácia, um de meus companheiros estendeu a
mão e o painel se abriu de novo. Uma força à qual não
podíamos resistir impelia-nos à frente. Lutando em vão
contra cada passo que dávamos, éramos... de algum
modo... obrigados a entrar pela porta do painel. Lá dentro
estava escuro, tanto quanto uma cela de eremita. Ainda
movidos pela mesma compulsão irresistível, seguimos por
boa distância e nos sentamos no chão. Minutos inteiros
ficamos ali sentados, tremendo de medo. Como nada
acontecesse, recuperamos certa calma, e ouvimos então uma
série de estalidos, como se houvesse metal batendo e
arranhando metal.
Involuntariamente, estremeci. Achava que eu, em lugar
deles, teria morrido de medo! Meu guia prosseguiu:
Devagar, de modo quase imperceptível, uma
incandescência embaciada se formou na escuridão à frente.
De início, era apenas uma leve indicação de luz azul-roxa,
quase como se um fantasma se estivesse materializando
diante de nossos olhos. A luz embaciada se estendeu,
fazendo-se mais brilhante, de modo que podíamos ver os
esboços de máquinas inacreditáveis que enchiam aquele
salão grande, a não ser o centro onde nos encontrávamos
sentados. A luz parecia fortalecer a si própria, girando,
esmaecendo, tornando-se mais brilhante, e depois adotou
uma forma esférica, que reteve. Tive a impressão estranha e
inexplicável de maquinaria antiquíssima, que começava
devagar a ranger, entrando em movimento, após milhões de
anos. Nós cinco estávamos juntos, no chão, literalmente
fascinados. E logo veio uma sondagem, dentro de meu
cérebro, como se lamas telepáticos dementes estivessem
brincando, mas essa impressão se tornou tão clara quanto a
fala.
Meu guia pigarreou e estendeu novamente a mão para beber
água, fazendo-a pairar em meio do caminho.
Vamos tomar chá, Lobsang, — disse, e tocou a sineta
de prata.
O monge-ajudante sabia, obviamente, o que queríamos, pois
entrou trazendo chá — e bolinhos!
— Dentro da esfera de luz víamos imagens, — disse o Lama
Mingyar Dondup. — Nebulosas de início, mas logo se
clareavam e deixavam de ser imagens. Ao invés disso,
estávamos realmente vendo os acontecimentos.
Eu já não me podia conter mais:
Mas, Honrado Lama, o que viram? — perguntei, em
impaciência febril.
O lama estendeu o braço e serviu-se de mais chá. Ocorreu-
me, então, que jamais o vira comendo aqueles bolinhos da
Índia. O chá, sim, ele tomava muito chá, mas jamais o vi
comer alguma coisa senão o alimento mais parcimonioso e
simples. Os gongos soaram para o serviço do templo, mas o
lama não se moveu. Quando o último dos monges já passara
por ali, apressadamente, ele suspirou fundo, e disse:
Agora, prosseguirei.
Foi isto o que vimos e ouvimos, e que você verá e
ouvirá, no futuro não muito distante. Muitos milhares de
anos antes, houve uma alta civilização neste mundo. Os
homens podiam voar no ar, com máquinas que desafiavam a
gravidade. Conseguiram fazer máquinas que imprimiam
pensamentos no espírito de outros... pensamentos que se
apresentariam como imagens... Dispunham da fissão
nuclear, e finalmente detonaram uma bomba que só faltou
arruinar o mundo, fazendo com que continentes
mergulhassem nos oceanos e outros surgissem à tona. O
mundo foi dizimado e assim, por meio das religiões desta
terra, temos a história do Dilúvio.
Essa última parte não me impressionou.
Senhor! — exclamei. — Podemos ver imagens assim, no
Registro Akáshico. Para que escalar montanhas perigosas, só
para ver o que podemos examinar com mais facilidade aqui?
Lobsang — disse meu guia, com ar grave-— podemos ver
tudo no astral e no Registro Akáshico, pois este último
contém o registro de tudo quanto aconteceu. Podemos ver,
mas não podemos tocar. Na viagem astral, podemos ir a
lugares diversos e regressar, mas não podemos tocar em
coisa alguma do mundo. Não podemos — disse ele, com um
largo sorriso — levar sequer um manto de reserva, nem
trazer de lá uma flor. O mesmo acontece com o Registro
Akáshico. Podemos ver tudo, mas não examinar
pormenorizadamente aquelas máquinas estranhas, guardadas
nos salões das montanhas. Vamos às montanhas, e vamos
examinar as máquinas.
Que estranho — observei — que essas máquinas viessem
a existir apenas em nosso país, havendo tantos outros lugares
no mundo!
— Oh! Mas você está errado! — explicou meu guia. — Há
uma câmara semelhante em certo lugar do Egito. Existe
outra câmara, com máquinas idênticas, num lugar chamado
América do Sul. Eu as vi, sei onde estão. Essas câmaras
secretas foram ocultas pelos povos antigos, de modo que
seus artefatos fossem encontrados por uma geração
posterior, quando chegasse o momento propicio. Esse
desabamento repentino de rochas barrou, por acidente, a
entrada da câmara no Tibete e, uma vez lá dentro, tomamos
conhecimento das demais câmaras. Mas o dia já vai longe.
Logo, sete de nós... e isso inclui você... partiremos em
jornada mais uma vez para a Caverna dos Antigos.
Durante dias seguidos, minha animação deixou-me febril.
Tinha de guardar tal conhecimento sem o transmitir aos
demais. Os outros saberiam que íamos partir para as
montanhas, em expedição destinada a colher ervas. Até
mesmo num lugar tão isolado quanto Lhasa havia quem se
mantivesse em vigia constante, procurando o ganho
financeiro. Os representantes de outros países, tais como a
China, a Rússia e a Inglaterra, alguns missionários, e os
comerciantes que vinham da índia, todos estavam prontos a
ouvir novidades sobre onde guardávamos nosso ouro e jóias,
sempre prontos a explorar qualquer coisa que lhes
prometesse lucro. Assim, mantivemos em grande segredo a
verdadeira natureza de nossa expedição.
Mais ou menos duas semanas depois dessa conversa covn o
Lama Mingyar Dondup, estávamos prontos para partir,
prontos para a escalada prolongada, muito prolongada das
montanhas, passando por ravinas pouco conhecidas e trilhas
escarpadas. Os comunistas estão hoje no Tibete, de modo
que a localização da Caverna dos Antigos é deliberadamente
oculta, pois se trata de um lugar verdadeiro, sem a menor
dúvida, e a posse dos artefatos ali existentes facultaria aos
comunistas a conquista do mundo. Tudo isto, tudo isto que
escrevo, é verdade, a não ser o modo exato de chegar àquela
Caverna. Em um lugar secreto, o ponto preciso, completo
com referências e desenhos, foi anotado em papel, de modo
que quando chegar o momento as forças da liberdade
possam encontrá-lo.
Devagar, escalamos a trilha da Lamaseria de Chakpori,
seguindo para o Kashya Linga, passando por aquele Parque
enquanto tomávamos a estrada que leva à barca, onde o
barqueiro se achava à nossa espera, com sua embarcação de
couro de iaque cheio de ar, à margem da corrente. Éramos
sete, eu incluído, e a travessia do rio, o Kyi Chu, levou
algum tempo. Finalmente, reunimo-nos outra vez na outra
margem. Pondo aos ombros nossas cargas, comida, cordas,
um manto de reserva para cada um e algumas ferramentas de
metal, partimos em direção ao sudoeste. Caminhamos até
que o sol poente e as sombras cada vez mais compridas
tornassem difícil a nós ver o caminho, em meio à trilha
pedregosa. Depois, na escuridão que se formava, fizemos
uma refeição modesta com tsampa, antes de nos deitarmos
para dormir, no lado abrigado do vento, em meio a grandes
pedras. Adormeci quase no mesmo instante em que apoiei a
cabeça no manto de reserva. Muitos monges tibetanos, com
o grau de lama, dormem sentados, como determinam os
regulamentos. Eu, como muitos outros mais, dormia deitado,
mas tinha de seguir a regra de que só poderíamos dormir
deitados sobre o lado direito. Minha última visão, antes de
adormecer, foi a do Lama Mingyar Dondup, sentado como
uma estátua esculpida, em silhueta contra o céu escuro da
noite.
À primeira luz do amanhecer, despertamos e fizemos uma
refeição muito frugal. Em seguida, retomando as cargas,
prosseguimos a marcha. Andamos por todo aquele dia, e
mais o seguinte. Passamos pelos contrafortes e chegamos às
cordilheiras realmente montanhosas. Logo éramos reduzidos
à necessidade de nos amarrarmos por cordas e mandar o
homem mais leve — era eu! — atravessar fendas perigosas
em primeiro lugar, para que as cordas pudessem ser
amarradas em pináculos de rocha e, assim, permitir
passagem segura aos mais pesados. Assim é que
prosseguimos, escalando as montanhas. Finalmente, quando
estávamos ao pé de uma enorme fachada rochosa, quase
destituída de lugares onde apoiar mãos e pés, meu guia, o
Lama Mingyar Dondup, disse:
— Passaremos por esta laje, desceremos pelo outro lado, e
depois de atravessarmos o vale pequenino que vamos
encontrar, estaremos ao pé da Cavirna.
Sondamos ao redor da base da laje, procurando onde segurar
com as mãos. Aparentemente, outros desabamentos ro-
chosos, ao correr dos anos, haviam obliterado as pequenas
reentrâncias e rachaduras. Depois de perdermos quase todo
um dia encontramos uma "chaminé" de rocha, pela qual
subimos, utilizando as mãos e pés, e apoiados com as costas
no outro lado da "chaminé". Ofegantes, resfolegando
naquele ar rarefeito, subimos ao alto, e dali espiamos. Estava
à nossa frente o vale, finalmente.
Fitando com atenção a muralha ao longe, não podíamos
perceber caverna alguma, nem qualquer rachadura na
superfície lisa da rocha. O vale, lá embaixo, estava coberto
de grandes pedras e — o que era pior — havia um córrego
volumoso, um desses cursos de água de montanha, passando
pelo centro.
Com cautela, descemos para o vale e seguimos até a margem
daquele riacho rápido, chegando a um ponto onde pedras
grandes propocionavam uma paisagem difícil àqueles que
tinham habilidade para saltar de uma pedra para outra. Eu,
que era o menor de todos, não tinha pernas suficientemente
compridas para os saltos, de modo que fui
ignominiosamente puxado em meio à corrente de água
gelada, atado a uma extremidade de corda. Outro infeliz,
lama pequeno e um tanto rotundo, errou um salto — e
também foi puxado na ponta de uma corda. Na margem
oposta, torcemos os mantos encharcados e voltamos a vesti-
los. A água em borrifo nos molhou até a pele. Seguido
cautelosamente sobre as pedras, atravessamos o vale e nos
aproximamos da barreira final, a laje de rocha. Meu guia, o
Lama Mingyar Dondup, apontou para uma cicatriz nova na
superfície da mesma.
— Olhei — disse. — Um outro desabamento de rochas
acabou com o primeiro degrau pelo qual nós subimos.
Recuamos bastante, procurando ter a visão completa da
ascensão a empreender. O primeiro degrau estava a uns doze
palmos acima do chão, e não havia outro caminho. O lama
mais alto e rijo ficou com os braços estendidos,
comprimindo-se à face da rocha, e depois o mais leve dos
lamas subiu em seus ombros e se colocou igualmente.
Finalmente, fui erguido, de •modo a poder subir aos ombros
do homem de cima. Tendo uma corda atada à cintura,
cheguei ao degrau.
Lá embaixo, os monges davam ordens enquanto, devagar,
quase morrendo de medo, eu subia mais, até poder atar a
extremidade da corda a um pináculo da pedra. Acocorei-me
ao lado da laje enquanto, um após outro, os seis lamas
subiram pela corda passada por mim e continuaram em sua
ascensão. O último desatou a corda, atou-a ao redor da
cintura e acompanhou os demais. Logo a extremidade
pendia diante de mini e um grito me dizia que fizesse um
laço ao redor de mim mesmo, para que eu pudesse ser
suspenso. Minha altura não bastava para alcançar todos os
degraus sem auxílio. Descansei de novo, em etapa bem mais
elevada, e a corda foi levada para cima.  Finalmente, vi-me
puxado até o degrau mais alto de todos, onde os demais
componentes da expedição me esperavam. Sendo homens
bondosos e dotados de consideração, haviam aguardado por
mim, de modo que pudéssemos entrar todos, juntos, na
Caverna, e confesso que meu coração se aqueceu, diante
dessa atitude.
Agora, que já suspendemos o Mascote, podemos con-
tinuar, — resmungou um deles.
Sim — repliquei —, mas o menor de todos teve de subir
primeiro, do contrário vocês não estariam aqui!
Eles riram e se voltaram para uma fenda bem oculta na
rocha.
Eu olhava, imensamente espantado. De início, não con-
seguia ver a entrada. Tudo que divisava era uma sombra
escura, que se assemelhava ao curso seco de um rio, à
mancha de liquens diminutos. E então, ao atravessarmos o
ressalto, vi que realmente havia uma fenda na superfície da
rocha. Um lama enorme agarrou-me pelos ombros e me
empurrou para a entrada, dizendo em tom bonachão:
Você, entre primeiro para espantar todos os demônios
da rocha, protegendo-nos.
Assim é que eu, o menor e menos importante da comitiva,
fui o primeiro a entrar na Caverna dos Antigos. Arrastei-me
para fazê-lo, esfregando-me nos cantos de pedra. Atrás de
mim, ouvia o arrastar de pés, enquanto os homens mais cor-
pulentos apalpavam o caminho. De repente, a luz explodiu
sobre mim, e por alguns momentos quase me paralisou de
pavor. Permaneci imóvel, agarrado à muralha de rocha,
fitando a cena fantástica no interior. A Caverna parecia mais
ou menos duas vezes o interior da Grande Catedral de Lhasa.
Diversamente daquela Catedral, sempre envolta no
crepúsculo que as lâmpadas de manteiga tentavam dissipar
sem o conseguir, ali havia claridade, muito mais intensa do
que a lua cheia em noite sem nuvens Não, era muito mais
brilhante do que isso; a qualidade da luz deve ter-me dado a
impressão de luar. Olhei para cima. para os globos dos quais
vinha a iluminação. Os lamas reuniam-se a meu lado e,
como eu, fitavam primeiramente a fonte de luz. Meu guia
disse:
Os registros antigos indicam que a iluminação aqui já
foi muito mais brilhante, que estas lâmpadas estão-se
gastando, com a passagem de centenas de séculos.
Por um espaço de tempo prolongado, permanecemos imó-
veis, silenciosos, como receando despertar aqueles que
dormiam há tantos e tantos anos. E então, movidos por
impulso comum, caminhamos pelo chão sólido de pedra até
a primeira máquina que se apresentava adormecida à nossa
frente. Rodeamo-la, temendo tocá-la, mas muito curiosos
quanto ao que podia ser. Estava embotada pela idade, mas
ainda assim parecia pronta para uso instantâneo — se alguém
soubesse o que era, e como pô-la em funcionamento. Outros
dispositivos também atraíram nossa atenção, sem resultado.
Aquelas máquinas eram demasiadamente avançadas para
nós. Segui até onde uma pequena plataforma quadrada, com
uns três palmos de largura e corrimões ao redor, se achava
no chão. O que parecia ser um tubo metálico dobrado e
comprido estendia-se de uma máquina próxima, e a
plataforma estava ligada à outra extremidade do tubo.
Ociosamente, pisei no quadrado de corrimões, imaginando o
que podia ser. No momento seguinte, quase morri de
choque. A plataforma teve um pequeno estremecimento e
começou a erguer-se no ar. Fiquei tão desesperado, que me
agarrei aos corrimões.
Lá embaixo, os seis lamas me olhavam, consternados. O
tubo se desdobrara, e fazia a plataforma oscilar, levando-a a
uma das esferas de luz. Em desespero, olhei para os lados. Já
estava a uns dez metros no ar, e continuava subindo. Meu
receio era que a fonte de luz me queimasse inteiramente,
como uma mariposa à chama de uma lâmpada de manteiga.
Houve um estalido e a plataforma se deteve. A poucos
centímetros de meu rosto, a luz brilhava. Timidamente,
estendi a mão — e toda a esfera, ao que notei, era fria como
gelo. A essa altura, já recuperara um pouco da compostura, e
olhei ao redor. Nisso, um pensamento assustador me
ocorreu: como ia descer dali? Saltei de um lado para outro,
procurando o modo de escapar, mas não parecia haver.
Tentei alcançar o tubo comprido, contando escorregar por
ele, mas estava longe demais. Exatamente quando começava
a desesperar, houve outro estremecimento e a plataforma
começou a descer. Quase sem esperar que ela tocasse o
chão, eu saltei! Não ia arriscar-me a subir novamente
naquela coisa.
Encostada a uma parede distante, achava-se uma grande
estátua, cuja visão me causou um calafrio. Era a de um gato
com cabeça e ombros de mulher. Os olhos pareciam estar
vivos; o rosto exibia uma expressão entre zombeteira e
intrigada, que me assustou bastante. Um dos lamas estava de
joelhos no chão, fitando com atenção certas marcas
estranhas.
— Olhem! — exclamou. — Esta escrita por imagens mostra
homens e gatos conversando, mostra o que é obviamente a
alma deixando o corpo e vagando pelos mundos inferiores.
Ele estava absorvido pelo zelo científico, examinando as
imagens no chão. "Hieróglifos", foi como os chamou, e
contava que todos os demais ficassem igualmente
entusiasmados. Aquele lama era um homem de alto preparo,
que aprendera as línguas antigas sem qualquer dificuldade.
Os demais examinavam as máquinas estranhas, procurando
descobrir para que serviam. Um grito repentino fez-nos
voltar, com algum alarma. O lama alto e magro estava na
parede distante, e parecia ter o rosto enfiado em uma caixa
metálica sem brilho. Ali estava ele, a cabeça inclinada, e
todo o semblante oculto. Dois homens foram ao seu
encontro e o arrastaram do perigo. Ele emitiu um rugido de
ira e recuou com pressa!
"É estranho!" eu estava pensando. "Até mesmo os lamas
calmos e sábios estão ficando loucos, neste lugar!" Em
seguida, o lama alto e magro se afastou para o lado, e outro
tomou seu lugar. Até onde eu podia perceber, estavam
vendo máquinas em movimento naquela caixa. Finalmente,
meu guia, o Lama Mingyar Dondup, apiedou-se de mim e
me suspendeu até o que, aparentemente, eram "oculares".
Quando fui suspenso, e pus as mãos em uma empunhadura,
como ele mandava, espiei dentro da caixa e vi homens e as
máquinas que se achavam naquele salão. Os homens faziam
as máquinas funcionar. Vi que a plataforma sobre a qual eu
subira até a esfera de luz podia ser controlada, e era um tipo
de "escada" móvel, ou melhor, um dispositivo que
dispensava as escadas. A maioria das máquinas ali, ao que
observei, eram modelos reais que funcionavam, tais como as
que, em anos posteriores, eu veria nos Museus Científicos
do mundo.
Passamos ao painel sobre o qual o Lama Mingyar Dondup
me falara anteriormente, e à nossa aproximação ele se abriu
com rangido, tão alto no silêncio do lugar que creio termos
todos dado um salto de susto. Lá dentro havia a escuridão,
profunda, quase como se tivéssemos nuvens de negrume
rodopiando em volta. Nossos pés eram guiados por sulcos
rasos no chão. Seguimos por ali, e quando os sulcos
terminaram, sentamo-nos. Ao fazê-lo, houve uma série de
estalidos, como o de metal raspando em metal, e de modo
quase imperceptível a luz surgia na escuridão, afastando-a.
Olhamos ao redor, e vimos mais máquinas, máquinas escas
estranhas. Ali havia estátuas e quadros esculpidos em metal.
Mas tínhamos tido tempo de relancear os olhos, e a luz
pareceu aumentar, formando um globo incandescente no
centro do salão. As cores tremulavam, e faixas de luz, sem
significado aparente, giravam ao redor do globo. Formaram-
se quadros, de início difusos e indistintos, depois tornando-
se vívidos e verdadeiros, com efeito tridimensional.
Observamos, com grande atenção...
Aquele era o mundo de Época Muito Remota. Quando o
mundo era muito novo. As montanhas se apresentavam
onde, agora, havia mares, e agradáveis balneários à beira-mar
são, hoje, cimos de montanhas. O clima era mais quente, e
criaturas estranhas corriam pelo chão. Tratava-se de um
mundo de progresso cientifico. Máquinas estranhas
passavam por ali, voando a alguma distância da superfície da
terra, ou a quilômetros de altura; grandes Templos erguiam
os pináculos para o céu, como em desafio às nuvens; os
animais e o Homem conversavam telepáticamente entre si.
Mas nem tudo era ventura. Políticos lutavam contra
políticos, e o mundo se tornou um campo dividido, no qual
cada lado cobiçava a terra do outro. A desconfiança e o
medo eram as nuvens sob as quais viviam os homens
comuns. Os sacerdotes da ambos os lados proclamavam que
somente eles eram os favoritos dos deuses. Nas imagens que
tínhamos à frente, víamos sacerdotes em arenga, — como
hoje — apresentando seu próprio caminho de salvação. Com
um preço, porém! Os sacerdotes de cada seita ensinavam
que era "dever sagrado" matar o inimigo. Quase ao mesmo
tempo, diziam que a Humanidade, em todo o mundo, era
composta de irmãos. O caráter ilógico do fratricídio não lhes
passava pela mente.
Vimos grandes guerras sendo travadas, com a maioria das
baixas entre os civis. As forças armadas, protegidas por sua
blindagem, desfrutavam segurança, em sua maior parte. Os
idosos, as mulheres e crianças, aqueles que não lutavam,
eram os que mais sofriam. Vimos, em relance, cientistas
trabalhando em laboratórios, trabalhando para produzirem
armas ainda mais mortíferas, trabalhando para produzirem
insetos nocivos, maiores e melhores, para jogarem sobre o
inimigo. Uma seqüência de quadros revelava um grupo de
homens meditativos, planejando o que chamavam uma
"Cápsula do Tempo" (o que nós chamávamos a Caverna dos
Antigos), onde pudessem preservar para as gerações
posteriores os modelos de suas máquinas e um registro
pictorial completo de sua cultura e falta de cultura. Máquinas
imensas escavaram a rocha viva. Hordas de homens
instalaram os modelos e as máquinas. Vimos as esferas de luz
fria sendo postas no lugar, substâncias radioativas inertes
emitindo luz por milhões de anos. Inertes, por não poderem
prejudicar os seres humanos, ativas no sentido de que a luz
continuaria, quase até o fim do próprio Tempo.
Verificamos que podíamos compreender a língua, e depois
foi dada a explicação de que estávamos obtendo
telepaticamente a "preleção". Câmaras como aquela, ou
"Cápsulas de Tempo", achavam-se ocultas sob as areias do
Egito, sob uma pirâmide na América do Sul, e em certo lugar
da Sibéria. Cada lugar era marcado pelo símbolo da época: a
Esfinge. Vimos as grandes estátuas da Esfinge, que não se
originaram no Egito, e recebemos a explicação de sua forma.
O Homem e os animais conversavam e trabalhavam juntos,
naqueles dias distantes. O gato era o animal mais perfeito, no
que tangia a poder e inteligência. O próprio Homem é um
animal, de modo que os Antigos haviam feito uma figura de
um grande gato, para indicar o poder e a resistência, e sobre
esse corpo tinham posto os seios e cabeça de uma mulher. A
cabeça servia para indicar a inteligência humana, enquanto
os seios indicavam que o Homem e o animal poderiam
extrair alimento espiritual e mental um do outro. Esse
símbolo fora tão comum, na época, quanto as Estátuas de
Buda, ou a Estrela de Davi, ou o Crucifixo de nossos dias.
Vimos oceanos com grandes cidades flutuantes, que se
moviam de uma terra a outra. No céu, pairavam aeronaves
igualmente grandes, que se moviam sem fazer ruído. Elas
podiam pairar, e quase no mesmo instante adquirir
velocidade estupenda. Sobre a superfície da terra, veículos
se moviam a alguns centímetros acima do chão, apoiados no
ar por algum método que não podíamos precisar. Pontes se
estendiam sobre as cidades, transportando em cabos finos o
que pareciam ser estradas. Enquanto observávamos, vimos
um clarão vívido no céu, e uma das maiores pontes caiu, em
emaranhado de cabos e vigas. Outro clarão, e a maior parte
da cidade desapareceu, transformada em gás incandescente.
Por cima das ruínas, pairava uma nuvem vermelha, de
aspecto estranho e mau, com a forma aproximada de um
cogumelo com quilômetros de altura.
Os quadros se desfizeram, e voltamos a ver o grupo de
homens que havia planejado as "Cápsulas". Haviam decidido
ter chegado o momento de fechá-las. Findas as cerimônias,
vimos que as "recordações armazenadas" estavam sendo
postas na máquina. Ouvimos o discurso de despedida, que
nos dizia: "Ao Povo do Futuro, se houver algum!" —
dizendo também que a humanidade estava a ponto de se
destruir, ou isso parecia provável, "e dentro desses cofres
estão guardados os registros de nossas realizações e loucuras,
para servirem de benefício àqueles de uma raça futura, que
tenham a inteligência de descobri-los e, tendo-os
descoberto, consigam compreendê-los". A voz telepática
terminou, a tela de imagens enegreceu-se. Ficamos sentados,
em silêncio, estupefatos pelo que havíamos visto. Mais
tarde, enquanto permanecíamos sentados, a luz voltou e
vimos que, na verdade, vinha das paredes daquele aposento.
Erguemo-nos e olhamos ao redor. Aquele Salão também
estava cheio de máquinas, havendo muitos modelos de
cidades e pontes, todos formados de algum tipo de pedra, ou
algum tipo de metal, cuja natureza não conseguimos
determinar. Alguns dos objetos expostos estavam protegidos
por certo material inteiramente transparente, que nos
causava perplexidade. Não era vidro; simplesmente não
sabíamos o que era, percebendo apenas que o mesmo nos
impedia, de modo eficaz, de tocar alguns dos modelos. De
repente, todos nós demos um salto; um olho vermelho e
maléfico nos observava, piscando para nós. Eu estava a
ponto de sair correndo dali, quando meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, encaminhou-se para a máquina que
ostentava aquele olho vermelho. Fitou-o, tocando os punhos
que ali havia. O olho vermelho desapareceu e, ao invés dele,
sobre tela pequena, vimos uma imagem de outra sala, mais
além do Salão Principal. Em nossos cérebros, chegou u'a
mensagem: "Ao saírem, vão à sala (???) onde encontrarão os
materiais com que fechar qualquer abertura pela qual
tenham entrado. Se não atingiram a etapa de evolução em
que saibam operar nossas máquinas, fechem este lugar e
deixem-no intacto para aqueles que vierem mais tarde".
Em silêncio, passamos para o terceiro aposento, cuja porta se
abriu à nossa aproximação. Continha muitos vasilhames, cui-
dadosamente fechados, e uma máquina de "pensamento por
imagem", que descreveu para nós como podíamos abrir os
vasilhames e fechar a entrada da caverna. Sentamo-nos no
chão, falando sobre o que tínhamos visto e assistido.
Maravilhoso! Maravilhoso! — disse um lama.
Não vejo coisa alguma maravilhosa nisso, — disse eu,
atrevidamente. — Todos nós podíamos ter visto tudo isto,
examinando o Registro Akáshico.  Por que não examinamos
aqueles quadros da corrente do tempo, para ver o que
aconteceu, depois de este lugar ser fechado?
Os demais se voltaram, com ar indagador, para o compo-
nente mais graduado da expedição, o Lama Mingyar
Dondup... e assentiu de leve e observou:
— Às vezes, o nosso Lobsang dá sinais de inteligência!
Vamos compor-nos e ver o que aconteceu, pois estou tão
curioso quanto vocês.
Sentamo-nos em posição aproximada à de um círculo, todos
de frente para o seu interior, tendo os dedos entrelaçados na
forma correta. Meu guia deu início ao ritmo respiratório
necessário, e todos acompanhamos sua direção. Devagar,
perdemos nossas identidades terrenas, tarnando-nos um só,
a flutuar no Mar do Tempo. Tudo quanto já aconteceu pode
ser visto por quem tenha a capacidade de entrar
conscientemente no plano astral, e regressar — consciente
— com o conhecimento assim obtido. Qualquer cena da
história, por mais tempo que tenha passado, pode ser vista
como se a pessoa realmente estivesse presente.
Lembro-me da primeira vez que experimentei o "Registro
Akáshico". Meu guia estivera falando comigo sobre essas
coisas, e eu respondera: "Sim, mas o que é ele? Como
funciona? Como se pode entrar em contato com coisas que
já passaram, que acabaram?" "Lobsang!" ele respondera,
"você concordará em que tem uma memória. Consegue
lembrar-se do que aconteceu ontem, e no dia anterior, e no
anterior àquele. Com algum preparo, poderá lembrar-se de
tudo que aconteceu em sua vida. Pode lembrar, com
preparo, até mesmo do processo de nascer. Pode ter o que
chamamos "recordação total" e isso levará sua memória mais
além, a um período anterior ao de seu nascimento. O
Registro Akáshico é apenas a "memória" do mundo inteiro.
Tudo quanto já aconteceu nesta terra pode ser
"rememorado" do mesmo modo como você pode lembrar-se
dos acontecimentos passados de sua vida. Não há mágica
nenhuma nisso, mas vamos examinar esse assunto, e o
hipnotismo... matéria muito relacionada a ele... em data
posterior".
Com nosso preparo, foi realmente fácil localizar o ponto em
que a Máquina deixou de apresentar imagens. Vimos a
procissão de homens e mulheres, notabilidades da época,
sem a menor dúvida, saírem em fila da Caverna. Máquinas
com braços enormes fizeram deslizar o que parecia ser
metade da montanha, cobrindo a entrada. As rachaduras e
fendas onde as superfícies se encontravam foram
cuidadosamente fechadas, e o grupo de pessoas e os
trabalhadores se retiraram. As máquinas rolaram para a
distância e, por algum tempo, alguns meses, o cenário foi
tranqüilo. Depois, vimos um sumo sacerdote de pé nos
degraus de uma Pirâmide imensa, exortando seus ouvintes à
guerra. As imagens impressas sobre os Pergaminhos do
Tempo prosseguiam, mudavam, e vimos o campo oposto.
Ali, os dirigentes faziam arengas, incitavam o povo. O
tempo avançava. Vimos faixas de vapor branco no azul do
céu, e logo elas se transformavam em vermelho. Todo o
mundo estremecia e se sacudia. Observávamos, sentindo
vertigem. A escuridão da noite tombou sobre o mundo.
Nuvens negras, permeadas de chamas vívidas, circulavam ao
redor de todo o globo. As cidades queimavam por instantes
e desapareciam.
Pela terra encapelavam-se os mares em fúria. Varrendo tudo
à frente, uma onda gigantesca, maior do que o mais alto
edifício que existira, estrugiu sobre a terra, sua crista
carregando os detritos e ruínas de uma civilização que
morria. A Terra sacudiu-se e trovejou em agonia, grandes
abismos surgiram e voltaram a fechar-se, como a goela
enorme de um gigante. As montanhas oscilavam, como os
ramos de salgueiro numa tempestade, e submergiam nas
águas. Massas de terra se erguiam das águas, tornando-se
montanhas. Toda a superfície do mundo se achava em
estado de transformação, de movimento contínuo. Alguns
sobreviventes dispersos, em meio a milhões, fugiam gri-
tando para as montanhas que se haviam erguido. Outros,
navegando em navios que de algum modo tinham
conseguido sobreviver à convulsão, chegavam a terras altas e
iam para qualquer abrigo que pudessem encontrar. A própria
Terra parou, deteve sua direção de rotação, e em seguida
passou a girar na oposta. Florestas ardiam, transformando-se
em cinzas no piscar de um olho. A superfície da Terra estava
desolada, arruinada, queimada, inteiramente. Bem no fundo
de buracos, ou nos túneis de lava de vulcões extintos, um
punhado disperso da população humana, enlouquecido pela
catástrofe, acocorava-se e manifestava numa algaravia o seu
terror. Dos céus negros caía uma substância esbranquiçada,
de gosto doce, e que sustinha a vida.
No decurso de séculos, a Terra voltou a modificar-se. Os
mares agora eram terras e as terras que tinham existido eram
agora mares. Uma planície baixa tivera suas paredes rochosas
rachadas e afundara, e as águas a haviam invadido, para
formar o mar hoje conhecido por Mediterrâneo. Outro mar
próximo afundou, por uma brecha no seu leito, e quando as
águas saíram e o deixaram seco, formou-se o Deserto de
Saara. Sobre a superfície da Terra, andavam tribos selvagens
que, à luz das fogueiras de seus acampamentos, contavam as
lendas antigas, falavam do Dilúvio da Lemúria, e da
Atlântida. Falavam, também, do dia em que o Sol Ficara
Parado.
A Caverna dos Antigos jazia sepulta, em meio aos detritos de
um mundo semi-afogado. A salvo de intrusos, repousava
muito abaixo da superfície da terra. Com o correr do tempo,
correntes rápidas removeram os detritos, a terra de aluvião,
permitindo que mais uma vez as rochas se apresentassem à
luz do sol. Finalmente, aquecida pelo sol e resfriada por uma
chuva repentina e gelada, a face da rocha se partiu, com
ruído estrondoso, e nós conseguimos entrar.
Sacudimo-nos, estendendo os membros entorpecidos, e nos
pusemos em pé, cansados. Havíamos passado por algo que
muito nos abalara. Agora, tínhamos de comer, dormir e na
manhã seguinte olharíamos outra vez por ali,, para talvez
aprendermos alguma coisa. E, então, nossa missão cumprida,
fecharíamos a entrada, como fora indicado. A Caverna
voltaria a dormir em paz, até que os homens de boa vontade
e alta inteligência regressassem. Segui para a boca da
Caverna e fitei a desolação, as rochas, e imaginei o que um
homem dos Velhos Tempos pensaria, se pudesse erguer-se
da sepultura e se pusesse a meu lado, naquele lugar.
Quando voltava para o interior, maravilhei-me com o
contraste; um lama acendia fogueira, com isca e madeira
seca, queimando excremento seco de iaque, que havíamos
trazido para esse fim. Ao redor, estavam os artefatos e
máquinas de uma era extinta. Nós, homens modernos,
aquecíamos água sobre um fogo de estrume, cercados por
máquinas tão maravilhosas que se achavam além de nossa
compreensão. Suspirei e dirigi meus pensamentos à tarefa de
misturar o chá com tsampa.
6

O culto matutino terminara e nós, os meninos, seguíamos as
pressas para nossa sala de aula, acotovelando-nos e
empurrando-nos, no esforço por não sermos o último. Não
devido a um grande interesse pela educação, de nossa parte,
mas porque o Mestre daquela matéria tinha o hábito horrível
de dar uma varada no último que se apresentasse! Eu, alegria
das alegrias, consegui ser o primeiro, refestelando-me no
brilho da aprovação do sorriso do Mestre. Com impaciência,
ele fez sinal aos demais para que se apressassem, de pé à
porta e dando pescoções nos que lhe pareciam lentos
demais. Finalmente, estávamos todos sentados, de pernas
cruzadas, sobre as esteiras estendidas no chão. Como é nosso
costume, ficávamos de costas para o Mestre, que
constantemente patrulhava por trás, de modo que nunca
sabíamos onde ele estava, e assim tínhamos de estudar com
afinco.
Hoje, vamos verificar como todas as religiões são
semelhantes, — entoou ele. — Já observamos como a
história do Dilúvio é comum a todas as crenças, em todo o
mundo. Agora, vamos dedicar atenção ao tema da Virgem
Mãe. Até a inteligência mais retardada — disse fitando-me
com expressão dura — sabe que nossa Virgem Mãe, a Bem-
aventurada Dolma, a Virgem Mãe de Misericórdia,
corresponde à Virgem Mãe de certas seitas da Fé Cristã.
Passos apressados se detiveram à entrada da sala. Um
monge-mensageiro entrou, fazendo profunda mesura para o
Mestre.
Saudações a ti, Homem Erudito, — murmurou. — O
Senhor Lama Mingyar Dondup apresenta seus
cumprimentos e pede que Terça-Feira Lobsang Rampa seja
dispensado da aula imediatamente... a questão é urgente.
O Mestre fez uma careta.
Menino! — trovejou. — Você é uma amolação, e per-
turba a turma. Dê o fora!
Mais do que depressa, fiquei em pé, fiz mesura para o
Mestre, e saí correndo atrás do Mensageiro, também
apressado.
O que é? — perguntei, em arquejo.
Não sei, — disse ele. — Também estou querendo saber. O
Lama Dondup preparou os objetos de cirurgia, e os cavalos
também.
Prosseguimos em carreira.
Ah! Lobsang! Você, então, sabe apressar-se! — disse
meu guia, rindo, quando chegamos a ele. — Nós vamos à
Aldeia de Shö, onde precisam de nossos serviços cirúrgicos.
Dito isso, montou em seu cavalo e fez-me sinal para que
montasse no meu. Isso era sempre uma operação difícil; os
cavalos e eu jamais parecíamos ter os mesmos projetos,
quando se tratava de montar. Segui em direção a ele, e a
criatura andou de lado, afastando-se de mim. Passei para o
outro lado, e dei um salto, depois de correr, antes que o
cavalo percebesse o que se passava. Em seguida, procurei
imitar os liquens das montanhas, na tenacidade de meu
apego à cela. Bufando com resignação exasperada, o animal
se voltou sem que fosse preciso comandá-lo, e acompanhou
o cavalo de meu guia, descendo a trilha. Aquele animal em
que eu estava tinha o hábito horrível de parar nos pontos
mais íngremes e olhar pela borda, baixando a cabeça e
fazendo uma espécie de bamboleio. Eu acredito firmemente
que esse animal fosse dotado de um senso de humor (muito
inoportuno!) e percebesse de modo completo o efeito que
causava em mim. Descemos pela trilha e logo passávamos
pelo Pargo Kaling, o Portão Ocidental, chegando assim à
Aldeia de Shö. Meu guia seguiu à frente pelas ruas, até
chegarmos a um edifício grande, que reconheci como sendo
a prisão. Guardas saíram de lá correndo, ficando com nossos
cavalos. Apanhei as duas bolsas de meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, e as levei, entrando naquele lugar
sombrio. Tratava-se de um lugar desagradável, horrível, eu
sentia o cheiro do medo, via as formas de pensamento más,
criadas pelos transgressores. Era, por certo, um lugar cuja
atmosfera fazia com que meus cabelos ficassem em pé.
Acompanhei meu guia, indo ter a uma sala bastante grande.
A luz do sol entrava pelas janelas. Bom número de guardas
ali se encontrava, e à espera para saudar o Lama Mingyar
Dondup estava um Magistrado de Shö. Enquanto
conversavam, olhei ao redor. Ali, ao que achei, era onde os
criminosos se viam julgados e condenados. Pelas paredes,
viam-se registros e livros. Sobre o chão, a um lado, um
amontoado que gemia. Olhei em sua direção, e ao mesmo
tempo ouvi o Magistrado conversando com meu guia:
Chinês, um espião, ao que julgamos, Honrado Lama.
Procurava subir a Montanha Sagrada, aparentemente
querendo infiltrar-se na Potala. Escorregou e caiu. De que
altura? Talvez uns trinta metros. Está em más condições.
Meu guia adiantou-se, e eu fui ter a seu lado. Um homem
retirou as cobertas, e diante de nós tínhamos um chinês de
meia idade. Era bem pequeno, parecendo criatura de
agilidade notável — algo assim como um acrobata —, eu
estava pensando. Agora, gemia de dor, o rosto molhado de
suor e a pele apresentando uma tonalidade de lama
esverdeada.
O homem se encontrava em mau estado, estremecendo e
comprimindo os dentes em agonia. O Lama Mingyar
Dondup olhou para ele, tomado de compaixão.
Espião, talvez assassino, seja lá o que for, temos de
fazer algo por ele, — afirmou.
Ato contínuo, ajoelhou-se ao lado do homem e pôs as mãos
nas têmporas do sofredor, fitando-lhe os olhos. Em questão
de segundos o acidentado descansava, olhos entreabertos,
um leve sorriso nos lábios. Meu guia afastou mais as cobertas
e inclinou-se sobre suas pernas. Senti-me enojado diante do
que via: os ossos da perna do homem apareciam,
trespassando-lhe as calças. As pernas pareciam
completamente estraçalhadas. Com uma faca aguda, meu
guia cortou a roupa do homem. Houve um arquejo por parte
dos observadores, ao verem as pernas com ossos intei-
ramente partidos, dos pés às coxas. O lama, com gestos
gentis, apalpou-as. O homem ferido não se moveu nem
contorceu, pois estava profundamente hipnotizado. Os ossos
da perna rangiam, como o som de sacos de areia cheios pela
metade.
Os ossos estão partidos demais para ajustar, disse meu
Guia. — As pernas parecem pulverizadas, teremos de ampu-
tá-las.
Honrado Lama — disse o Magistrado —, pode descobrir o
que ele estava fazendo? Receamos que fosse um assassino.
Antes disso, retirar-lhe-emos as pernas, — respondeu o
Lama. — Depois poderemos indagar a ele.
Inclinou-se novamente sobre o homem, e mais uma vez
fitou-lhe os olhos. O chinês pareceu descansar ainda mais,
entrando num sono profundo.
Eu abrira as bolsas, e pusera o fluido herbáceo esterilizante
na tigela. Meu guia mergulhou as mãos, para que se
encharcassem. Eu já preparara seus instrumentos, em outra
tigela. Sob a direção dele, lavei o corpo e as pernas do
homem. Quando toquei nas mesmas, tive uma sensação
singular; parecia que tudo fora estraçalhado. Agora, elas
apresentavam uma cor azul, sarapintada, com as veias a se
assemelharem a cordéis negros. Seguindo as instruções de
meu guia, que ainda empapava as mãos, coloquei faixas
esterilizadas tão altas quanto pude nas pernas do chinês,
onde elas reuniam ao corpo. Enfiando um bastão em um
laço, apertei até que a pressão fez parar a circulação. Com
grande rapidez, o Lama Mingyar Dondup apanhou uma faca
e cortou a carne, em forma de um "v". Na ponta desse "v",
serramos o osso — o que restava dele — e depois dobramos
as duas abas do "v", de modo que a extremidade do osso
ficasse protegida por uma capa dupla de carne. Entreguei-lhe
fio, feito das partes esterilizadas de um iaque, e com rapidez
ele costurou essas abas, bem apertadas. Devagar, com
cuidado, fui soltando a pressão na faixa que apertava a perna
do homem, pronto a apertá-la novamente se o coto
sangrasse. A costura se agüentou, nenhum sangue saiu. Por
trás de nós, um guarda vomitava com violência, tornando-se
branco como gesso, e caindo em desmaio!
Com cuidado, meu guia fez curativos no coto e mais uma
vez lavou as mãos na solução. Dediquei minha atenção à
outra perna, a esquerda, e passei o bastão pelo laço da
presilha. O lama assentiu, e eu fiz girar novamente o bastão,
para impedir que o sangue corresse para aquela perna. E logo
a mesma estava ao lado da outra, separada do corpo. Meu
guia voltou-se para um guarda que o observava, e lhe disse
que levasse as pernas, embrulhando-as em tecido.
— Devemos devolver essas pernas à Missão Chinesa, —
disse o lama. — Do contrário, eles dirão que ele foi
torturado. Pedirei a Sua Santidade que esse homem seja
devolvido à sua gente. A missão dele não importa; ela
fracassou, como todas as tentativas assim fracassarão.
- Mas, Honrado Lama! — disse o Magistrado. — O homem
devia ser forçado a nos contar o que estava fazendo, e o
motivo.
Meu guia não disse coisa alguma, mas voltou-se novamente
para o homem hipnotizado, fitando-lhe profundamente os
olhos agora abertos.
O que estavas fazendo? — perguntou.
O homem gemeu, e revirou os olhos. Meu guia perguntou-
lhe, de novo:
O que ias fazer? Ias assassinar uma Grande Pessoa,
dentro da Potala?
Espuma surgia ao redor da boca do chinês e então, com
relutância, ele assentiu, confirmando.
Fala! — ordenou o lama. — Um assentimento não
basta.
E assim, devagar, penosamente, a história se apresentou. Era
um assassino, pago para assassinar, pago para criar problemas
num país pacífico. Um assassino que fracassara, como todos
fracassariam, por não conhecerem nossos dispositivos de
segurança! Enquanto eu pensava nisso, o Lama Mingyar
Dondup se punha em pé.
Irei ver O Mais Precioso, Lobsang. Você fique aqui, e
guarde esse homem — ordenou.
O chinês gemeu.
Vão matar-me? — perguntou, com voz débil.
Não! — respondi. — Não matamos ninguém.
Umedeci-lhe os lábios, enxuguei-lhe a testa. Ele logo voltava
à tranqüilidade; creio que tenha dormido, após aqueles
momentos difíceis. O Magistrado o fitava com ar azedo,
achando que os sacerdotes eram loucos em querer salvar um
assassino frustrado. O dia se arrastava. Guardas vinham,
outros iam. Eu sentia o estômago doer de fome. Finalmente,
ouvi passos conhecidos, e o Lama Mingyar Dondup entrou
na sala. Primeiramente, veio e examinou o paciente,
verificando se o homem estava em conforto tão grande
quanto as circunstâncias permitiam, e que os cotos não
sangravam. Pondo-se em pé, olhou para o funcionário leigo
mais graduado e disse:
Em virtude da autoridade que me dá O Mais Precioso,
ordeno que providencie duas macas, imediatamente, e leve
este homem, com as pernas dele, para a Missão Chinesa.
Dito isso, voltou-se para mim:
Você acompanhará esses homens, e me informará, se
eles se mostrarem desnecessariamente brutos, ao transportá-
lo.
Eu me sentia claramente insatisfeito; ali estava aquele
assassino, com as pernas amputadas — e meu estômago
rugindo, tão sem comida quanto um tambor de templo.
Enquanto os homens se ausentavam, procurando macas, saí
correndo, para onde vira os funcionários tomando chá! Com
voz altaneira, exigi — e consegui — uma boa porção.
Enfiando tsampa afobadamente pela garganta abaixo,
regressei correndo.
Em silêncio, taciturnos, os homens entraram na sala, atrás de
mim, trazendo duas liteiras brutas, feitas de tecido estendido
entre as varas. Mal-humorados, recolheram as duas pernas e
as puseram em uma das macas. Com gentileza, sob os olhos
vigilantes do Lama Mingyar Dondup, colocaram o chinês
sobre a outra. Cobriram-lhe o corpo com um pano, e o
amarraram sob a maca para que ele não pudesse cair da
mesma. Meu guia voltou-se para o funcionário leigo mais
graduado e disse:
Tu acompanharás esses homens, e apresentarás meus
cumprimentos ao Embaixador Chinês, dizendo-lhe que
estamos devolvendo um de seus homens. Você, Lobsang —
disse, voltando-se para mim —, vai acompanhá-los e ao
regressar apresente-se a mim.
Dito isso, afastou-se, e os homens saíram da sala. O ar estava
frio, lá fora, e eu estremeci em meu manto fino. Seguimos
pelo Mani Lhakhang, indo à frente os homens que
carregavam as pernas, e depois os dois que carregavam a
maca com o chinês. Eu seguia a um lado, e o funcionário
leigo mais graduado ao outro. Entramos à direita, passamos
os dois Parques e prosseguimos rumo à Missão Chinesa.
Com o Rio Feliz rebrilhando à nossa frente, exibindo pontos
de luz em meio às árvores, chegamos à muralha externa da
Missão. Resmungando, os homens baixaram suas cargas por
algum tempo, enquanto descansavam os músculos doloridos,
olhando com curiosidade a muralha da Missão. Os chineses
se mostravam muito ofendidos com alguém que procurasse
entrar ali. Houvera casos de meninos que tinham levado
tiros "por acidente", ao traspassarem a muralha, como
crianças gostam de fazer. Agora, íamos entrar! Cuspindo nas
mãos, os homens se inclinaram e voltaram a apanhar as
macas. Prosseguindo, entramos à esquerda para a Estrada
Lingkor, chegando às dependências da Missão. Homens de
aspecto patibular vieram à porta, e o funcionário mais
graduado disse:
Tenho a honra de devolver-lhe um de seus homens,
que procurou entrar no Terreno Sagrado. Ele caiu, e foi
preciso amputar-lhe as pernas. Aqui estão elas, para que
vocês as examinem.
Guardas chineses, fazendo caretas de desagrado, apanharam
as macas e entraram com elas no edifício, levando o homem
e suas pernas. Outros, apontando-nos armas, fizeram-nos
gestos para que nos retirássemos. Voltamos pela trilha, e eu
me escondi atrás de uma árvore, sem ser visto. Os demais
prosseguiram. Gritos agitaram o ar. Olhando ao redor, vi que
não havia guardas ; todos tinham entrado na Missão.
Tomado por impulso tolo, deixei a segurança duvidosa da
árvore e corri silenciosamente para a janela. O homem
ferido estava estendido no chão, um dos guardas se sentara
sobre seu peito, enquanto dois outros estavam sentados
sobre seus braços. Um quarto guarda encostava cigarros
acesos aos cotos amputados. De repente, o quarto homem se
pos de pé, sacou o revólver e disparou no ferido, entre os
olhos.
Um graveto estalou atrás de mim. Imediatamente, pus-me
de joelhos e me voltei. Outro guarda chinês surgira, e apon-
tava para mim com um fuzil, visando o ponto onde minha
cabeça estivera. Mergulhei entre suas pernas, fazendo-o cair
e soltar o fuzil. Com pressa, corri de uma árvore para outra.
Tiros vinham pelos galhos baixos, e havia o ruído de pés em
carreira, atrás de mim. Ali, a vantagem era toda minha; eu
era ligeiro, e os chineses paravam muitas vezes para disparar.
Voltei correndo à parte traseira do jardim — o portão já
estava guardado — e subi numa árvore que servia para isso, e
me arrastei por um de seus galhos, de modo a poder cair
sobre a muralha. Segundos depois, estava de volta na estrada,
à frente de meus concidadãos, que haviam carregado o
ferido. Assim que ouviram o que eu tinha a narrar,
apressaram os passos. Já não retardavam mais o passo, na
esperança de ver alguma coisa animada; queriam, agora,
evitar tudo isso. Um guarda chinês saltou do alto da muralha
para a estrada, fitando-me com o ar mais desconfiado.
Retribuí-lhe o olhar, com uma expressão cândida. Fazendo
uma careta, murmurando uma praga que falava mal de meus
pais, ele se voltou para o outro lado. Nós passamos a andar
com mais velocidade!
De volta na Aldeia de Shó, separei-me dos homens. Olhan-
do um tanto apreensivamente sobre o ombro, apressei-me e
logo subia a trilha para Chakpori. Um velho monge,
descansando à beira do caminho, chamou:
— O que há com você, Lobsang? Está com aspecto de quem
se acha perseguido por todos os Demônios!
Prossegui correndo e, sem fôlego, entrei na sala de meu
guia, o Lama Mingyar Dondup. Par momentos, fiquei ali
resfolegando, procurando recuperar o fôlego.
Puxa! — arquejei, finalmente. — Os chineses mataram
aquele homem; mataram com tiro!
Em torrente de palavras, narrei-lhe o que acontecera. Meu
guia ficou silente, poi momentos. Depois disse:
Você vai ver muita violência em sua vida, Lobsang, e
por isso não fique demasiadamente agitado com este fato.
Trata-se do método comum da diplomacia: matar aqueles
que fracassam, e renegar os espiões que sejam apanhados.
Isso é feito em toda parte do mundo, em todos os países do
mundo.
Sentados à frente de meu guia, recuperando-me na sere-
nidade calma de sua presença, pensei em outro assunto que
me perturbava.
Senhor! — exclamei. — Como funciona o
hipnotismo?
Ele me fitou, tendo um sorriso nos lábios.
Quando foi que você comeu pela última vez? — con-
trapôs.
Em um só assomo, toda minha fome voltou.
Oh, há umas doze horas, — respondi, um tanto con-
trafeito.
Nesse caso, vamos comer agora, aqui, e depois, quando
estivermos um tanto mais fortes, poderemos falar sobre
hipnotismo.
Com um gesto de mão, fez-me calar, permanecendo na
atitude de meditação. Percebi a mensagem telepática que
mandava a seus criados — comida e chá. Percebi, também, a
mensagem telepática a alguém na Potala, alguém que tinha
de ir falar com O Mais Precioso, depressa, para fazer
relatório detalhado. Mas minha "interceptação" da
mensagem telepática foi interrompida pela entrada de um
criado trazendo comida e chá.
Voltei a sentar-me, cheio de comida, sentindo-me ainda
mais desagradavelmente repleto. O meu dia fora duro, eu
passara fome durante muitas horas, mas (o pensamento me
perturbava, intimamente) havia comido em demasia, e
imprudentemente, naquele momento? De repente, com ar
desconfiado, olhei para cima. Meu guia me fitava, e era
óbvio em seu semblante que ele havia achado graça em
minha atitude.
Sim, Lobsang, — observou. — Você comeu demais.
Espero que consiga acompanhar minha prekção sobre o
hipnotismo.
Examinou meu rosto enrubescido, e seu próprio olhar
abrandou-se.
Pobre Lobsang, você teve um dia difícil. Vá descansar
agora, e continuaremos com a nossa preleção amanhã.
Ergueu-se, deixando a sala. Consegui pôr-me em pé, com
esforço, e segui quase trôpego pelo corredor. Dormir! Era
tudo quanto queria. Comida? Ora, bolas! Tivera-a em
demasia. Cheguei a meu local de dormir, envolvendo-me
nos mantos. O sono foi agitado, não houve dúvida; tive
pesadelos, no qual chineses sem pernas corriam atrás de
mim, em meio a árvores, e outros chineses, com armas, não
paravam de saltar sobre meus ombros, na tentativa por
derrubar-me.
"Bumba!" fez minha cabeça, batendo no chão. Um dos
guardas chineses desferia-me pontapés. "Bumba!" e minha
cabeça bateu de novo. Sem ver direito, abri os olhos e lá
estava um acólito, batendo em minha cabeça com energia, e
dando-me pontapés, na tentativa desesperada por despertar-
me.
Lobsang! — exclamou, ao ver que eu abri os olhos. —
Lobsang, pensei que você estava morto. Você dormiu a
noite toda, faltou aos cultos; e somente a intervenção de seu
Mestre, o Lama Mingyar Dondup, o salvou dos Inspetores.
Acorde! — gritou, pois eu quase voltava a dormir.
A consciência veio inundar-me. Pelas janelas, vi os raios do
sol matutino, que parecia fitar-nos por cima dos altos
Himalaias, iluminando os edifícios mais altos no vale,
mostrando os tetos dourados do Sera distante, brilhando
sobre o cimo do Pargo Kaling. Ontem- eu fora à Aldeia de
Shö. Ah! Aquilo não fora sonho. Hoje, hoje eu contava
faltar a algumas aulas e aprender diretamente com meu
amigo Mingyar Dondup. Aprender coisas sobre o
hipnotismo, além disso! Logo terminava o desjejum e seguia
para a sala de aula, não para ali ficar e fazer récitas dos cento
e oito Livros Sagrados, mas a fim de explicar o motivo pelo
qual não o fazia!
Senhor! — disse, ao ver que o Mestre acabava de entrar
na sala. — Senhor! Tenho de estar com o Lama Mingyar
Dondup hoje. Suplico ser dispensado da aula.
Ah, sim! Sim, meu menino — disse o Mestre, em tom de
voz espantosamente cordial. — Estive conversando com o
Santo Lama, seu guia. Ele teve a bondade de fazer
comentários favoráveis, a seu respeito, quanto ao progresso
que tem efetuado sob meus cuidados; confesso estar
reconhecido, reconhecidíssimo.
Para meu espanto maior, ele estendeu a mão e bateu-me no
ombro, antes de entrar na sala de aula. Perplexo, e sem saber
que tipo de mágica haviam feito com ele, segui em direção
aos Alojamentos dos Lamas.
Eu seguia, sem qualquer preocupação, leve como uma plu-
ma. Ao passar por uma porta entreaberta... "Epa!" exclamei
de repente, fazendo uma parada repentina. "Nozes em con-
serva!" O odor delas era bem forte. Voltando atrás, em silên-
cio, espiei pela porta. Um velho monge, de cabeça baixa, pa-
recia estar olhando o chão, murmurando coisas que não
eram suas orações, deplorando o desaparecimento de toda
uma jarra de nozes em conserva, que de algum modo fora
trazida da Índia.
Posso ajudar, Reverendo Lama? — perguntei,
educadamente.
O velho voltou para mim o rosto feroz, e fez um comentário
de tal natureza que eu segui correndo pelo corredor,
enquanto o podia fazer.
Todas aquelas palavras, só por causa de umas
castanhazinhas! — comentava comigo mesmo, cheio de
desgosto.
Entre! — disse meu guia, quando me aproximava de sua
porta. — Pensei que você tinha voltado a dormir.
Senhor! — disse eu. — Vim ter aqui para receber sua
instrução. Estou ansioso por conhecer a natureza do
hipnotismo.
Lobsang — disse meu guia —, você tem muito mais a
aprender, além disso. Em primeiro lugar, tem de aprender a
base para o hipnotismo. De outra forma, não sabe
exatamente o que faz. Sente-se.
Eu me sentei, as pernas cruzadas, naturalmente, sobre o
chão. Meu guia estava sentado à minha frente. Por algum
tempo, pareceu imerso em pensamentos, e depois disse:
A esta altura, você deve ter compreendido que tudo é
vibração, eletricidade. O corpo tem muitas substâncias
químicas diferentes em sua composição. Algumas delas são
levadas ao cérebro, pela corrente sangüínea. O cérebro,
como você sabe, recebe o melhor suprimento de sangue e
das substâncias químicas que ele contém. Esses ingredientes,
potássio, manganês, carbono e muitos outros, formam o
tecido cerebral. A interação deles cria uma oscilação singular
de moléculas, a que chamamos uma "corrente elétrica".
Quando alguém pensa, põe em movimento uma cadeia de
circunstâncias que resultam na formação dessa corrente
elétrica, e daí as "ondas cerebrais"
Pus-me a pensar em tudo aquilo; mas não conseguia per-
ceber. Se havia "correntes elétricas" em meu cérebro, por
que motivo eu não sentia o choque das mesmas? Aquele
menino que estivera soltando papagaio, ao que me lembrava,
fazia isso durante uma tempestade elétrica. Eu me lembrei
do clarão azul e vívido, quando o relâmpago percorreu sua
linha úmida do papagaio; lembrei-me, com estremecimento,
como ele tombara ao chão, transformado num monte seco e
frito de carne. E, certa feita, também eu recebera um
choque da mesma fonte, um simples formigamento
comparado ao outro, mas "formigamento" suficiente para me
atirar a três metros de distância.
Honrado Lama! — protestei. — Como pode haver
eletricidade no cérebro? Isso poria o homem enlouquecido
de dor!
Meu guia riu de mim.
Lobsang! — disse, com uma risadinha. — O choque
que você levou uma vez proporcionou-lhe idéia
inteiramente incorreta sobre a eletricidade. A quantidade de
eletricidade no cérebro é muito pequena. Instrumentos
delicados podem medi-la, e traçar as variações, enquanto
alguém pensa ou empreende alguma ação física.
A idéia de um homem medindo a voltagem de outro era
quase demasiada para mim, e comecei a rir. Meu guia
simplesmente sorriu, dizendo:
Esta tarde; vamos andar até a Potala. O Mais Precioso
tem lá um dispositivo que nos permitirá conversar com mais
facilidade sobre essa questão de eletricidade. Vá divertir-se
agora... faça uma refeição, vista o melhor manto que tem, e
encontre-se comigo aqui, quando o sol estiver no meio-dia.
Ergui-me, fiz mesura e me retirei.
Por duas horas perambulei por ali, andando no teto e ati-
rando pedrinhas na cabeça dos monges que passavam lá
embaixo, e que de nada desconfiavam. Cansando-me desse
brinquedo, desci de cabeça para baixo por um alçapão, que
dava para um corredor escuro. Pendurado, de cabeça pára
baixo, pelos pés, cheguei exatamente a tempo de ouvir
passos que se aproximavam. Não podia ver, porque o alçapão
ficava a um canto. Pondo a língua para fora e fazendo uma
cara de ferocidade, fiquei à espera. Um velho fez a volta e,
não podendo ver, esbarrou em mim. Minha língua úmida
tocou-lhe a face. Ele deu um grito e deixou cair a bandeja
que carregava, com estrondo, desaparecendo com
velocidade surpreendente para um homem de tal idade.
Também eu recebi uma surpresa: quando o velho monge
esbarrara em mim, deslocara meus pés de seu sustentáculo
precário. Caí de costas no corredor. O alçapão se fechou,
com estrondo, e toda uma carga de poeira sufocante caiu
sobre mim! Pondo-me em pé, estonteado, saí correndo tão
depressa quanto pude, na direção oposta. Ainda aturdido
pelo choque, mudei de manto e fiz uma refeição. O choque
não fora bastante forte para me levar a esquecer isso!
Pontualmente, quando as sombras desapareciam e o dia
chegava à sua metade, apresentei-me a meu guia. Com
algum esforço, ele conseguiu apresentar-me um semblante
calmo, ao me ver.
— Um monge idoso, Lobsang, jura ter sido atacado por um
demônio, no corredor do Norte. Um grupo de três lamas foi
para lá, a fim de exorcizar o demônio. Não há dúvida de que
estarei fazendo minha parte, se o levar... e é você... à
Potala, como ficou combinado. Venha!
Voltou-se e saiu da sala. Eu o acompanhei, lançando olhares
apreensivos ao redor. Afinal de contas, nunca se sabia ao
certo o que aconteceria, se os lamas estivessem exorcizando.
Eu tinha visões vagas, nas quais me via flutuando no ar,
rumando para destino desconhecido e provavelmente
incômodo.
Saímos do edifício, indo ter ao ar livre. Dois pôneis estavam
prontos, seguros por cavalariços. O Lama Mingyar Dondup
montou, e desceu lentamente a montanha. Fui ajudado a
montar, e um dos palafreneiros desferiu uma palmada
brincalhona no meu pônei. Também o animal parecia estar
com vontade de brincar. Baixou a cabeça, ergueu o traseiro
e, descrevendo um arco no ar, fez-me escorregar de suas
costas. Um palafreneiro voltou a segurar o animal, enquanto
eu me levantava do chão e sacudia a poeira do manto. Voltei
a montar, atento, para evitar que os palafreneiros se saíssem
com outra.
O pônei sabia que estava com um pateta a bordo. O animal
estúpido continuava andando pelos lugares mais perigosos,
detendo-se à beira dos mesmos. Ali, baixava a cabeça e fitava
com ânsia o chão rochoso lá embaixo. Finalmente,
desmontei e puxei o pônei atrás de mim. Assim, andava mais
depressa. No sopé da Montanha de Ferro, montei
novamente e acompanhei o meu guia, entrando na Aldeia
de Shö. Ele tinha algo a fazer ali, o que nos deteve por algum
tempo. Foi o bastante para que eu me recuperasse, em
fôlego e na compostura, estraçalhada no tombo. Depois,
montando de novo, subimos a Estrada da Potala, larga e de
degraus. Com satisfação, entreguei meu pônei aos
palafreneiros que encontramos. Com satisfação ainda maior,
acompanhei o Lama Mingyar Dondup a seu próprio
apartamento. Meu prazer era tanto maior quanto eu sabia
que ficaria ali por um ou dois dias.
Não tardou o momento de comparecer ao culto no Templo
lá embaixo. Ali na Potala, os serviços religiosos eram —
como eu julgava — excessivamente formais, a disciplina
rigorosa demais. Tendo-me divertido mais do que cabia em
um dia, bem como sofrendo muitos pequenos ferimentos,
tratei de apresentar meu melhor comportamento, e o
serviço se concluiu sem incidentes. Era já coisa aceita que,
quando o meu guia se achasse na Potala, eu ocupasse um
pequeno quarto ao lado do dele. Fui para lá, sentando-me
para aguardar os acontecimentos, sabendo que o Lama
Mingyar Dondup estava dedicado a questões de estado, com
um funcionário de alta graduação, que regressara
recentemente da Índia. Era fascinante espiar pela janela e
ver a Cidade de Lhasa a distância. A visão apresentava beleza
insuperável: lagos orlados por salgueiros, fulgores dourados
vindos do Jo Kang, e a multidão fervilhante de peregrinos
que erguia seu clamor ao pé da Montanha Sagrada, na
esperança de ver O Mais Precioso (que se achava na resi-
dência) ou, ao menos, algum alto funcionário. Um cordão
interminável de comerciantes e seus animais seguia devagar
pelo Pargo Kaling. Fiquei pensando, por momentos, nas
cargas exóticas que traziam, mas fui interrompido por passos
leves atrás de mim.
— Vamos tomar chá, Lobsang, e depois prosseguiremos
com nossa palestra, — disse meu guia, que acabara de entrar.
Eu o acompanhei a seu quarto, onde encontramos alimentos
muito diferentes daqueles geralmente servidos a um monge
pobre. Chá, naturalmente, mas havia também coisas doces,
trazidas da Índia. Era tudo de meu agrado, muito de meu
agrado! De modo normal, os monges não falam, enquanto
comem; isso é considerado desrespeito ao alimento, mas
naquela ocasião o meu guia disse que os russos procuravam
criar problemas para o Tibete, e procuravam infiltrar espiões
em nosso país. Logo terminamos a refeição, e seguimos para
os aposentos onde o Dalai Lama guardava muitos
dispositivos estranhos, vindos de terras distantes. Por algum
tempo, ficamos a examiná-los, apenas, o Lama Mingyar
Dondup indicando objetos estranhos e explicando o uso que
tinham. Finalmente, ele se deteve a um canto da sala,
dizendo:
Olhe para isto, Lobsang!
Fui ter a seu lado, e não fiquei impressionado, em absoluto,
pelo que via.
Diante de mim, sobre uma mesinha, havia uma jarra de
vidro. Em seu interior, havia dois fios finos pendentes, cada
qual sustentando em sua extremidade uma pequena esfera de
algo que parecia ser medula de salgueiro.
É medula! — comentou meu guia, secamente, quando
manifestei minha opinião. — Você, Lobsang, pensa na
eletricidade como algo que dá choque. Existe outra espécie,
ou manifestação, a que chamamos eletricidade estática.
Agora, observe!
Da mesa, o Lama Mingyar Dondup retirou um bastão luzi-
dio, com mais ou menos um palmo de comprimento.
Esfregou-o com rapidez no manto, e depois o levou para
perto da jarra de vidro. Para minha enorme surpresa, as duas
esferas de medula se afastaram, com violência — e
permaneceram afastadas, mesmo quando o bastão foi
retirado.
Continue observando! — exortou meu guia.
Pois bem, era exatamente o que eu fazia. Após alguns
minutos, as bolas de medula desceram novamente, devagar,
sob o chamamento normal da gravidade. E logo estavam
pendentes, em vertical, como acontecera antes da
experiência.
Faça você, agora, — disse o lama, estendendo-me o bastão
negro.
Pela Bem-aventurada Dolma! — gritei. — Eu não vou
tocar nessa coisa!
Meu guia dava gargalhadas, ao ver o ar mais do que agitado
por mim exibido.
Tente, Lobsang — disse, com suavidade —, porque eu
nunca fiz uma brincadeira de mau gosto com você, até hoje.
Sim — resmunguei —, mas uma vez é sempre a primeira.
Ele me obrigou a segurar o bastão. Com cuidado, apanhei o
objeto horrível. Relutando, temeroso (esperando um choque
a qualquer momento), esfreguei o bastão em meu manto.
Não houve sensação alguma, nenhum choque ou
formigamento. Finalmente, eu o levei em direção à jarra de
vidro e — maravilha das maravilhas! — as bolas de medula
se afastaram outra vez!
Como vê, Lobsang — observou meu guia —, a eletri-
cidade está em ação, mas você não sente choque algum. É
essa a eletricidade do cérebro. Venha comigo.
Levou-me a outra mesa, sobre a qual se achava um dispo-
sitivo dos mais notáveis. Parecia ser uma roda, sobre cuja
superfície havia numerosas placas de metal. Dois bastões
eram fixos, de modo que um feixe de fios vindos de cada um
tocava de leve duas dessas placas. Dos bastões, fios iam ter a
duas esferas de metal, distantes uma da outra mais ou menos
um palmo. Aquilo tudo não fazia sentido algum para mim.
"Estátua de um demônio!" eu pensava. Meu guia confirmou
essa impressão, com o que fez em seguida. Apanhando uma
manivela que se projetava na parte traseira da roda, fê-la
girar com vigor. Com grunhido de raiva, a roda passou a
viver, emitindo clarões e cintilando. Das esferas de metal,
uma grande língua de relâmpago azul saltou, chiando e
estralejando. Surgiu um odor estranho, como se o próprio ar
estivesse queimando. Eu não ia esperar mais: aquele, do
modo mais claro possível, não era o lugar para mim. Atirei-
me debaixo da mesa maior e procurei sair para a porta
distante, arrastando-me pelo chão.
O chiado e o estralejar pararam, sendo substituídos por outro
som. Eu me detive, na fuga, pondo-me a ouvir com espanto.
Aquilo não era o som de gargalhadas? Nunca! Nervo-
samente, examinei a situação, do abrigo onde me achava. Lá
estava o Lama Mingyar Dondup, quase explodindo de riso.
Lágrimas de hilaridade escorriam de seus olhos, enquanto o
rosto se lhe tornara vermelho de divertimento. Parecia
arquejante.
Oh, Lobsang! — disse, finalmente. — É a primeira vez
que vejo alguém tão assustado por uma Máquina Winshurst.
Esses engenhos são utilizados em muitos países estrangeiros,
para demonstração das propriedades da eletricidade.
Eu rastejei, saindo de onde estava, sentindo-me bastante
imbecil, e espiei mais de perto aquela máquina estranha. O
lama disse:
Eu vou segurar estes dois fios, Lobsang, e você faça
girar a manivela com a maior velocidade possível. Vai ver o
relâmpago ao redor de mim, mas isso não me fará mal, nem
dor. Vamos tentar. Quem sabe? Talvez você tenha a
oportunidade de rir de mim!
Tomou dois fios, um em cada mão, acenando-me para que
começasse. De cara amarrada, empunhei a manivela e a fiz
girar com a maior velocidade que pude. Tive de gritar, com
espanto, quando faixas grandes, purpúreas e violetas, de
relâmpago, percorreram as mãos e o rosto de meu guia. Ele
se mostrava inteiramente imperturbável. Enquanto isso,
aquele odor voltara.
É ozônio, coisa inofensiva, — disse o meu guia. Eu,
finalmente, deixei-me persuadir a segurar os fios, enquanto
o lama empunhava a manivela. O chiado e estralejar se
mostravam inteiramente assustadores, mas quanto à
sensação — parecia mais uma brisa fresca do que qualquer
outra coisa! O lama tirou diversas coisas de vidro de uma
caixa e, uma por uma, ligou-as por fios à máquina. Quando
acionou a manivela, vi uma chama brilhante ardendo dentro
de uma garrafa de vidro e, nas demais, uma cruz e outras
formas de metal, delineadas por fogo vivo. Em parte alguma,
porém, senti choque elétrico. Com essa Máquina Winshurst,
meu guia demonstrou como uma pessoa que não fosse
clarividente podia ver a aura humana, mas falaremos sobre
isso depois.
Com o tempo, esmaecendo a luz do dia, desistimos de
nossas experiências e voltamos ao quarto do lama. Havia, em
primeiro lugar, o culto da tarde, pois nossa vida no Tibete
parecia inteiramente circunscrita pelas necessidades de
cerimônias religiosas. Tendo deixado o serviço religioso,
voltamos ao apartamento de meu guia, o Lama Mingyar
Dondup, onde nos sentamos na atitude costumeira, de
pernas cruzadas, no chão, tendo entre nós a mesinha com
mais ou menos palmo e meio de altura.
Bem, Lobsang — disse meu guia —, temos de tratar
dessa questão do hipnotismo, mas antes disso é preciso
esclarecer o funcionamento do cérebro humano. Eu lhe
mostrarei... ao que espero!... que pode haver a passagem de
uma corrente elétrica sem que se sinta dor ou desconforto.
Agora, você deve levar em conta que, quando uma pessoa
pensa, era uma corrente elétrica. Não precisamos entrar na
questão de como uma corrente elétrica estimula uma fibra
muscular e causa reação, pois todo o nosso interesse, no
momento, é a corrente elétrica — as ondas cerebrais que já
foram tão claramente medidas e registradas pela ciência
médica ocidental.
Reconheço que achei algum interesse nisso, porque a meu
modo humilde sempre julgara que o pensamento tinha uma
força, porque me lembrava o cilindro de pergaminho, com
perfurações, que utilizara às vezes na Lamaseria, e que eu
fizera girar, usando unicamente a força do pensamento.
Sua atenção está devaneando, Lobsang! — disse meu guia.
Desculpe, Honrado Mestre — respondi. — Estava apenas
refletindo sobre a natureza indubitável das ondas do
pensamento, e pensando na distração que tirei daquele
cilindro, que o senhor me apresentou há alguns meses.
Meu guia olhou para mim, dizendo:
Você é uma entidade, um indivíduo, e tem seus
próprios pensamentos. Pode achar que vai adotar algum
rumo de ação, como suspender aquele rosário. Já ao pensar
na ação, seu cérebro faz com que a eletricidade circule de
seus componentes químicos, e a onda da eletricidade
prepara seus músculos para a ação iminente. Se uma força
elétrica maior ocorresse em seu cérebro, nesse caso sua
intenção inicial de erguer o rosário seria contrariada. É fácil
ver que, se eu puder persuadi-lo de que não consegue erguer
o rosário, nesse caso seu cérebro... estando fora de seu
controle, você não conseguirá erguer o rosário, ou executar
a ação que planejava.
Eu o fitei, e pensei no caso, que realmente não fazia muito
sentido para mim, pois como poderia ele influenciar a
quantidade de eletricidade que meu cérebro estivesse
criando? Pensei sobre isso, olhei para ele e fiquei
imaginando se devia dar expressão à minha dúvida. Não
houve necessidade, porém, pois ele a adivinhara e se
apressou a me esclarecer.
Posso garantir-lhe, Lobsang, que o que digo é fato
demonstrável, e num país ocidental poderíamos provar tudo
isto, mediante um aparelho que traçaria as três ondas
cerebrais básicas. Aqui, entretanto, não dispomos de tal
equipamento, e somente podemos falar sobre a questão. O
cérebro gera eletricidade, gera ondas, e se você resolver
erguer o braço, nesse caso o seu cérebro gera ondas de
acordo com a intenção de sua decisão. Se eu puder... falando
de modo teórico... aplicar uma carga negativa em seu
cérebro, nesse caso sua intenção inicial será frustrada. Em
outras palavras, você pode ser hipnotizado.
Aquilo começava a fazer sentido. Eu vira a Máquina de
Winshurst e assistira a diversas demonstrações efetuadas
com sua ajuda, e vira como era possível alterar a polaridade
de uma corrente, fazendo assim com que ela seguisse em
direção oposta.
Honrado Lama — exclamei —, como é possível ao
senhor levar uma corrente a meu cérebro? O senhor não
pode tirar a tampa de minha cabeça e pôr alguma
eletricidade lá dentro. Nesse caso, como pode fazer isso?
Meu caro Lobsang — disse meu guia —, não é necessário
entrar em sua cabeça, porque eu não preciso criar qualquer
eletricidade e pô-la em você, mas posso fazer sugestões
apropriadas, pelas quais você se convencerá da precisão de
minhas afirmações ou sugestões, e em seguida você... sem
qualquer controle voluntário de sua parte... criará sozinho
essa corrente negativa.
Olhou para mim, acrescentando:
Não desejo, de modo algum, hipnotizar pessoa alguma,
contra a vontade dela, a não ser em caso de necessidade
médica ou cirúrgica, mas creio que com sua colaboração
seria bom demonstrar uma questão simples de hipnotismo.
Eu exclamei, mais do que depressa:
Oh, sim, eu adoraria experimentar o hipnotismo!
Ele sorriu largamente diante de minha impetuosidade, e
perguntou:
Pois bem, Lobsang, o que, em condições normais,
você não gosta de fazer? Pergunto isso, porque quero
hipnotizá-lo e levá-lo a fazer algo que você, por gosto, não
faria, de modo a ficar pessoalmente convencido de que, ao
fazer essa coisa, está agindo sob influência involuntária.
Pensei por momentos, e não sabia o que dizer, pois eram
tantas as coisas que não gostava de fazer! Fui salvo dessa
dificuldade por meu guia, que exclamou:
Eu sei! Você não tem desejo algum de ler aquele tre-
cho bastante complexo, no quinto volume do Kangyur.
Acredito que se estivesse com bastante medo de que alguns
dos termos ali usados o traíssem, e traíssem o fato de que
naquela determinada questão você não estudou tão
assiduamente quanto é desejado por seu professor!
Fiquei bastante abatido com isso e reconheço que também
senti as faces corarem, com algum embaraço. Era
inteiramente verdade, pois havia uma passagem bastante
difícil no Livro, que me levava a apuros sérios. Entretanto,
no interesse da ciência, estava pronto a ser persuadido a lê-
la. Na verdade, tinha quase uma fobia quanto a ler aquele
trecho! Meu guia sorriu e disse:
O Livro está ali, ao lado da janela. Traga-o aqui,
procure esse trecho e leia em voz alta, e se você não tentar
lê-lo, se quiser embaralhar a coisa toda... teremos uma prova
muito melhor.
Com relutância, fui apanhar o Livro e, com má vontade
extrema, revirei-lhe as folhas. Nossas páginas tibetanas são
muito maiores — muito mais pesadas — do que as dos livros
ocidentais. Procurei de um para outro lado, tornei as coisas
tão arrastadas quanto possível. Ao fim, cheguei à passagem
apropriada e confesso que a mesma, devido a algum
incidente anterior com um professor, vinha trazer-me uma
sensação de enjôo quase físico.
Eu ali estava, com O Livro à frente, e por mais que me
esforçasse não conseguia pronunciar aquelas palavras. Isso
pode parecer estranho, mas era um fato, porque eu fora tão
maltratado por um professor incompreensivo que adquirira
um verdadeiro ódio por aquelas frases sagradas. Meu guia
olhou para mim — só isso. Olhou para mim, e logo algo
pareceu estalar dentro de minha cabeça e eu descobri, com
surpresa considerável, que estava lendo, não apenas "lendo",
mas fazendo-o de modo fluente, com facilidade, sem
qualquer hesitação. Chegando ao fim do parágrafo, estava
com a sensação mais inexplicável possível. Baixei O Livro e
fui até o meio da sala, onde plantei uma bananeira, isto é,
fiquei de cabeça para baixo! "Estou ficando louco!" pensava.
"O que meu guia vai pensar de mim, se me comporto deste
modo inteiramente idiota?" Mas logo me ocorreu que meu
guia me levava — influenciava-me — a comportar-me
assim. Com rapidez, pus-me em pé e descobri que ele sorria
para mim, com uma expressão da maior benevolência.
É, realmente, uma questão das mais simples, Lobsang, a
de influenciar uma pessoa. Não há dificuldade alguma, para
quem tenha aprendido a questão básica. Eu apenas pensei
em algumas coisas, e você recolheu meus pensamentos
telepáticamente, e isso levou seu cérebro a reagir do modo
como eu antevira. Assim, certas flutuações em seu padrão
cerebral normal foram causadas, produzindo esse resultado
muito interessante!
Honrado Lama! — disse eu. — Quer dizer que, se
pudermos pôr uma corrente elétrica no cérebro de alguém,
podemos levá-lo a fazer tudo que quisermos?
Não, não quer dizer isso, em absoluto, — respondeu
meu guia. — Quer dizer que, se podemos persuadir alguém a
uma certa ação, e a ação que desejamos não for contrária à
crença dessa pessoa, nesse caso ela certamente a executará,
apenas porque suas ondas cerebrais foram alteradas, e
qualquer que tenha sido sua intenção inicial, ela reagirá
como foi sugerido pelo hipnotizador. Na maioria dos casos, a
pessoa recebe sugestões de um hipnotizador, e não há
influência verdadeira exercida pelo mesmo, senão a
influência da sugestão. O hipnotizador, mediante alguns
truques, consegue induzir um rumo de ação na vítima,
contrário àquele que a mesma planejava.
Fitou-me a sério, por momentos, e depois aduziu:
Está claro que você e eu temos outros poderes, além
desse. Você conseguirá hipnotizar uma pessoa
instantaneamente, até mesmo contra a vontade dela, e esse
dom está sendo dado a você, devido à natureza singular de
sua vida, devido às vicissitudes muito grandes, devido ao
trabalho excepcional que terá de realizar.
Sentado, fitava-me para poder avaliar se eu assimilara a
informação que me dera e, satisfeito ao ver que isso
acontecia, prosseguiu:
Mais tarde... ainda não... você aprenderá muito mais
acerca do hipnotismo e como hipnotizar com rapidez.
Quero dizer que também terá seus poderes telepáticos
aumentados, porque, quando viajar do Tibete para outros
países distantes, precisará estar em contato conosco todo o
tempo, e o meio mais rápido e eficiente é por telepatia.
Tudo aquilo me deixava inteiramente taciturno. Por todo o
tempo eu parecia estar aprendendo coisas novas e, quanto
mais aprendia, menos tempo tinha para mim mesmo,
parecendo-me que uma quantidade cada vez maior de
trabalho estava sendo aduzida, sem que retirassem
nenhuma!
Mas, Honrado Lama! — disse. — Como a telepatia
funciona? Não parece acontecer coisa alguma entre nós, mas
ainda assim o senhor sabe quase tudo que penso, ainda mais
quando não quero que saiba!
Meu guia fitou-me, riu e disse:
É uma questão realmente muito simples, a telepatia.
Basta controlar as ondas cerebrais. Veja a coisa do seguinte
modo: você pensa, seu cérebro gera correntes elétricas que
flutuam, de acordo com as variações de seu pensamento. De
modo normal, seus pensamentos vão ativar um músculo, de
maneira que um membro se erga ou baixe, ou você pode
estar pensando em certo assunto, a distância, seja ele qual
for, e sua energia mental é irradiada... isto é, a força-energia
de seu cérebro é emitida indiscriminadamente em todas as
direções. Se houvesse um meio pelo qual você pudesse
focalizar seu pensamento, nesse caso o mesmo seria de
intensidade bem maior na direção para a qual foi focalizado.
Olhei para ele, lembrando-me de pequena experiência que
me revelara, algum tempo antes; tínhamos estado em
posição bastante parecida àquela, isto é, bem alto, sobre O
Pico (como nós, tibetanos, chamamos A Pótala). O lama,
meu guia, na escuridão da noite, acendera pequena vela e a
luz tremeluzia com debilidade. Ele, porém, pusera uma lente
de aumento diante da vela e, ajustando a distância da mesma
em relação à chama, conseguira projetar sobre a parede u'a
imagem muito mais brilhante da chama. Para fortalecer a
lição, pusera uma superfície brilhante por trás da vela e isso,
a seu turno, concentrara a luz ainda mais, de modo que a
imagem sobre a parede se tornara maior. Falei-lhe disso, e
ele respondeu:
Sim! É inteiramente correto, por diversos truques é
possível focalizar o pensamento, enviá-lo em certa direção
predeterminada. Na verdade, cada pessoa tem o que
podemos chamar de um comprimento de onda individual,
isto é, a quantidade de energia na onda básica emitida pelo
cérebro de qualquer pessoa segue uma ordem precisa de
oscilação, e se pudermos determinar a cadência de oscilação
da onda cerebral básica de outra pessoa, e sintonizarmos
com essa oscilação básica, não haverá dificuldade alguma em
trasmitir nossa mensagem, pela chamada telepatia, qualquer
que seja a distância.
Fitava-me com firmeza, agora, e acrescentou:
Você deve tornar bem claro em seu espírito, Lobsang,
que a distância nada significa, quando se trata de telepatia. A
telepatia pode ultrapassar os oceanos, pode ultrapassar até
mesmo os mundos!
Confesso que estava ansiosíssimo por poder fazer mais no
reino da telepatia. Visualizava a mim próprio, conversando
com aqueles companheiros que se achavam em outras
lamaserias, tais como o Sera, ou mesmo em regiões distantes.
Pareceu-me, entretanto, que todos os meus esforços haviam
sido dedicados a coisas que me auxiliariam no futuro, futuro
esse que, de acordo com todas as profecias, seria sem a
menor dúvida uma coisa das mais tenebrosas.
Meu guia voltou a interromper-me os pensamentos:
Voltaremos mais tarde a essa questão de telepatia.
Examinaremos também a questão de clarividência, porque
você disporá de poderes anormais de clarividência, o que lhe
facilitará as coisas, se souber como funciona esse processo.
Tudo gira ao redor das ondas cerebrais e da interrupção do
Registro Akáshico, mas a noite chegou, devemos encerrar
nossa palestra por enquanto, preparar-nos para dormir, para
estarmos descansados a tempo para o primeiro serviço.
Pôs-se em pé e eu o imitei. Fiz-lhe uma mesura, em atitude
de respeito, e desejei poder demonstrar de modo mais
adequado o respeito profundo que sentia por aquele grande
homem, que se tornara tão meu amigo.
Por instantes, um rápido sorriso nos lábios, ele se adiantou, e
senti-lhe a mão quente no ombro. Um gesto gentil, e ele
disse:
Boa noite, Lobsang, não devemos demorar mais, ou
voltaremos a ser dorminhocos... incapazes de acordar...
quando chegar o momento de estarmos presentes às nossas
devoções.
Em meu quarto, fiquei por uns momentos em pé à janela,
por onde entrava o ar frio da noite. Olhei para as luzes de
Lhasa, refletindo em tudo o que me fora dito e em tudo que
tinha ainda por aprender. Pareceu-me óbvio que quanto
mais aprendia tanto mais havia a aprender, e fiquei pensando
onde tudo aquilo acabaria. Com um suspiro, talvez de
desesperança, envolvi-me melhor no manto e me deitei no
chão frio, para dormir.
7

Um vento gélido, frigidíssimo, soprava, vindo das mon-
tanhas. Poeira e pedrinhas esvoaçavam no ar, parecendo
visar aos nossos corpos encolhidos. Animais que a idade
tornara prudentes apresentavam-se de cabeça baixa para o
vento, para que os pelos não fossem levantados, fazendo-os
perder calor. Demos a volta ao Kundu Ling e entramos no
Mani Lhakhang. Uma lufada repentina de ar, ainda mais
feroz do que as outras, irrompeu sob o manto de um de
meus companheiros, e com um berro de pavor ele foi
atirado ao ar, como se fosse um papagaio. Nós olhamos para
cima, apavorados, as bocas abertas. Ele parecia estar voando
para a Cidade, os braços abertos, o manto enfunado, tendo
adquirido dimensões gigantescas. Veio uma pausa ao vento e
ele caiu como uma pedra, no Kaling Chu! Corremos aflitos
para lá, receando que ele se afogasse. Chegados à margem,
ele — Yulgye — parecia de pé na água, até a altura dos
joelhos. A ventania gemeu com força renovada, fazendo
com que Yulgye virasse e trazendo-o de volta a nossos
braços. Maravilha das maravilhas, ele quase não se molhara,
a não ser dos joelhos para baixo. Saímos dali
apressadamente, apertando os mantos nos corpos, para
também não sermos atirados ao ar.
Marchávamos pela Mani Lhakhang, e que marcha fácil era
aquela! A ventania uivante nos empurrava, e nosso esforço
único era manter a posição vertical! Na Aldeia de Shö, uma
comitiva de damas de alta patente procurava abrigo. Eu
sempre gostava de adivinhar qual poderia ser a identidade da
pessoa par trás da máscara de couro. Quanto mais "jovem"
fossem as faces pintadas sobre o couro, tanto mais velhas as
mulheres que as usavam. O Tibete é país cruel e duro, com
ventos uivantes a derrubar torrentes de pedras e areia das
montanhas. Homens e mulheres muitas vezes usavam
máscaras de couro, como proteção contra as tempestades.
Essas máscaras, com frestas para os olhos e outra pela qual se
respirava, eram invariavelmente pintadas com uma
representação que o portador fazia de si mesmo!
Vamos passar pela Rua das Lojas! — gritou Timon,
lutando por fazer-se ouvir acima da ventania.
Pura perda de tempo, — gritou Yulgye. — Eles fecham as
persianas quando sopra ventania assim. De outro modo, as
mercadorias seriam arrastadas pelo vento.
Prosseguimos com pressa, em velocidade duas vezes maior
do que a normal. Passando pela Ponte de Turquesa, tivemos
de segurar-nos uns aos outros, tamanha a força do vento.
Olhando para trás, vimos que a Pótala e a Montanha de
Ferro estavam cingidas por uma nuvem negra. Era uma
nuvem composta de partículas de poeira e pedrinhas, que
tinham rolado dos Himalaias Eternos. Seguindo à frente com
pressa, temendo que a nuvem negra nos apanhasse se nos
retardássemos pela Casa de Doring, pouco além do Círculo
Interno, ao redor do imenso Jo Kang. Estrugindo, a
tempestade desabou sobre nós, batendo em nossas cabeças e
rostos desprotegidos. Timon ergueu instintivamente as
mãos, a fim de proteger os olhos. O vento enfunou-lhe o
manto e o ergueu bem por cima da cabeça, deixando-o tão
nu quanto uma banana descascada, bem diante da Catedral
de Lhasa.
Pedras e gravetos esvoaçavam pela rua, em nossa direção,
machucando-nos as pernas e, às vezes, tirando-nos sangue.
O céu enegreceu-se mais, tornando-se escuro como a noite.
Empurrando Timon à frente, lutando com o manto
esvoaçante que se lhe esbatia ao redor da cabeça entramos
cambaleando no Santuário do Lugar Sagrado. Lá dentro
havia paz, paz profunda, paz tranqüilizante. Há uns mil e
trezentos anos que ali vinham as pessoas piedosas fazer as
suas devoções. Até mesmo o material com que o Santuário
fora construído tresandava santidade. O chão de pedras fora
marcado e alisado por gerações sucessivas de peregrinos. O
ar dava a impressão de coisa viva, tanto incenso fora
queimado ali, no decorrer dos tempos, que parecia ter
deixado o lugar com uma vida senciente.
Colunas enegrecidas pela idade, vigas nas mesmas con-
dições, apresentavam-se em meio ao crepúsculo perpétuo. O
fulgor opaco do ouro, refletindo a luz de lâmpadas de man-
teiga e velas, de pouco adiantava para diminuir a penumbra.
As chamas pequeninas a tremeluzir transformavam as
sombras das Figuras Sagradas, fazendo-as empreender uma
dança grotesca nas paredes do Templo. Ali, o deus fazia
pirueta com a deusa num jogo incessante de luz e sombra,
enquanto a procissão infinda de peregrinos piedosos passava
pelas lâmpadas.
Pontos minúsculos de luz, de todas as cores, vinham de
grandes montes de jóias. Diamantes, topázios, berilos, rubis
e jade emitiam a luz de sua natureza, formando um padrão
sempre mutável, um calidoscópio de cor. Grandes redes
abertas, de ferro, com espaços pequenos demais para
permitirem a passagem de uma mão, guardavam as jóias e
ouro contra aqueles cuja cupidez sobrepujava a correção. Ali
e acolá, no crepúsculo brilhante por trás da cortina de ferro,
havia pares de olhos vermelhos luzindo, prova de que os
gatos do Templo estavam sempre alertas. Incorruptíveis,
insubornáveis, sem temerem homem ou fera, andavam em
silêncio, sobre patas de veludo. Mas aqueles pés macios
ocultavam garras afiadas como navalhas, caso sua ira fosse
despertada. Animais de inteligência insuperável, bastava-
lhes olhar a pessoa para conhecer-lhe a intenção. Um gesto
suspeito em direção às jóias que guardavam, e eles se
tornariam demônios encarnados; trabalhando em grupos de
dois, um deles saltava à garganta do candidato a ladrão,
enquanto o outro se penduraria ao braço direito do mesmo.
Apenas a morte os faria soltar a presa, a menos que os
monges auxiliares chegassem depressa...! Para mim, ou
outros como eu, que os amavam, os gatos ronronavam e se
rolavam no chão, permitindo-nos brincar com as jóias de
valor inestimável. Brincar, mas não levar. Todos negros,
com olhos azuis vívidos e que brilhavam com a cor de
sangue à luz refletida, eram conhecidos em outros países
como gatos "siameses". Ali, no Tibete gelado, eram todos
negros. Nos países tropicais, ao que eu fora informado, eram
todos brancos.
Andamos por ali, apresentando nossos respeitos às Imagens
Douradas. Lá fora, a tempestade rugia e esbravejava, fazendo
voar todos os objetos que se achassem soltos e tornando
perigosa a passagem de viajantes incautos, forçados por
assuntos urgentes a estarem nas estradas varridas pelo vento.
Ali, onde nos encontrávamos, no Templo, tudo era
tranqüilidade, a não ser pelo arrastar semi-silencioso de pés,
enquanto os numerosos peregrinos faziam seus circuitos, e
pela "clack-chack" das Rodas de Oração, sempre a girar. Nós,
porém, não as ouvíamos. Dia após dia, noite após noite, as
Rodas giravam e com seu "clack-chack, clack-chack, clack-
chack" até se tornarem parte de nossa existência. Não as
ouvíamos, assim como não ouvíamos as batidas de nosso
próprio coração ou nossa própria respiração. Havia,
entretanto, outro som. Um "purr-purr" áspero e arquejante,
bem como o tilintar da cortina de metal, enquanto um velho
gato enfiava a cabeça na mesma, para fazer-me lembrar que
éramos velhos amigos. Sem maior atenção, enfiei os dedos
por ali, afagando-lhe a cabeça. Com gentileza, ele "mordeu"
meus dedos em saudação e depois, com a língua velha e
áspera, quase me arrancou a pele, com o fervor de suas
lambidas! Houve algum movimento suspeito mais além do
Templo, e ele — como um relâmpago — partiu para
proteger "sua" propriedade.
Que bom, se tivéssemos olhado as lojas! — insistiu
Timon.
Seu estúpido! — sussurrou Yulgye. — Você sabe que elas
estão fechadas durante as tempestades.
Silêncio, meninos! — disse um Inspetor de ar feroz,
saindo das sombras e dirigindo-se a nós, desferindo um
golpe que pos o pobre Timon fora de equilíbrio, fazendo-o
espraiar-se no chão. Um monge próximo fitou a cena, com
ar de desaprovação, fazendo sua Roda de Orações girar
furiosamente. O grande Inspetor, criatura com mais de dois
metros de altura, aproximara-se de nós, parecendo uma
montanha humana, e chiou, entre os dentes:
Se vocês, meninos, fizerem um só barulhinho... eu os
estraçalharei com as mãos e jogarei os pedaços para os
cachorros, lá fora. Agora, silêncio!
Com uma última careta de raiva em nossa direção, voltou-se
e desapareceu nas sombras. Com cuidado, receando até o
farfalhar de seu manto, Timon se pos em pé. Descalçando as
sandálias, seguimos nas pontas dos pés para a parta. Lá fora, a
tempestade continuava rugindo; dos pináculos das
montanhas, pendões de neve estonteantemente branca se
desprendiam. Dos pontos inferiores, da Pótala e de
Chakpori, faixas negras de poeira e pedras esvoaçavam. Pelo
Caminho Sagrado, grandes colunas de poeira se dirigiam para
a Cidade. O vento uivava, gemia, como se os próprios
demônios houvessem enlouquecido e estivessem
executando uma cacofonia demente, sem motivo ou razão.
Segurando-nos uns aos outros, arrastamo-nos para o sul,
dando a volta ao Jo Kang, procurando o abrigo de um vão de
parede, parte traseira do edifício do Conselho. A torrente de
ar turbulento ameaçava erguer-nos do chão, atirando-nos
contra a parede do Convento Tsang Kung. Estremecíamos
diante dessa possibilidade, e continuamos em busca de
abrigo. Atingindo nosso objetivo, apoiamo-nos, a respiração
voltando em grandes soluços devido aos esforços que
havíamos feito.
Xxxxx! — disse Timon. — Eu bem queria pôr um
feitiço contra aquele Inspetor xxxxx! O teu Honrado Guia
podia fazer isso, Lobsang. Talvez tu o convenças a
transformar aquele xxxxx em um porco, — aduziu, cheio de
esperança.
Em resposta, sacudi a cabeça e disse:
Tenho a certeza de que ele não o faria, pois o Lama
Mingyar Dondup jamais faz mal a qualquer criatura, homem
ou animal. Ainda assim, seria mesmo bom transformar o
Inspetor em alguma outra coisa. Ele foi um abusado!
A tempestade amainava. O uivo do vento ao redor dos
beirais tornava-se menos agudo, as pedras antes carregadas
pelo vento caíam pelas estradas, estralejavam nos telhados.
Tampouco a poeira penetrava em nossos mantos como
antes. O Tibete é um país alto e exposto ao tempo. Os
ventos se formavam por três das cordilheiras e seguiam em
fúria pelos passos montanhosos, sendo freqüente atirarem os
viajantes à morte, nos fundos das ravinas. Lufadas violentas
estrugiam nos corredores de lamaserias, limpando-os
completamente, arredando toda a poeira e lixo, antes de
entrarem em uivo pelo vale, indo ter às faixas abertas mais
além.
O clamor e tumulto haviam cessado. A última das nuvens de
tempestade voava no céu, deixando a vasta abóbada celeste
purpúrea e límpida. O brilho forte do sol nos iluminava,
estonteando-nos após a penumbra e escuridão da
tempestade. Com rangidos, portas se abriam cautelosamente,
surgiam cabeças, avaliava-se o estrago ocorrido no dia. A
pobre e velha Sra. Raks, perto de cuja casa nos
encontrávamos, tivera as janelas dianteiras empurradas para
dentro, pelo vento, e as traseiras empurradas para fora. No
Tibete, as janelas são feitas de papel oleado e grosso; oleado
para que se possa, forçando um pouco a vista, olhar para
fora. O vidro é muito raro em Lhasa, e o papel, feito dos
abundantes salgueiros e juncos, é barato. Partimos para casa
— Chakpori — parando sempre que alguma coisa
interessante nos atraía a atenção.
Lobsang! — disse Timon. — Olhe, as lojas vão abrir
agora! Vamos, não vai levar muito tempo!
Assim dizendo, voltou-se para a direita, em passos muito
mais rápidos. Yulgye e eu o acompanhamos, com a menor
das relutâncias. Chegados à Rua das Lojas, olhamos ao redor.
Que maravilhas havia ali! O cheiro onipresente do chá,
muitos tipos de incenso vindos da Índia e da China.
Joalheria, coisas que haviam vindo da Alemanha distante, e
que para nós eram tão estranhas que nem sequer tinham
significado. Mais adiante, chegamos a uma loja onde
vendiam doces, coisas pegajosas sobre pauzinhos, bolos
cobertos de açúcar branco e colorido. Olhávamos, e
ansiávamos; como pobres cheias, não tínhamos dinheiro
com que comprar coisa alguma, mas podíamos olhar de
graça.
Yulgye cutucou meu braço e cochichou:
Lobsang, aquele camarada grandão não é o tal Tzu, que
já tomou conta de ti?
Voltei-me, olhando na direção que ele apontava. Sim! Era
Tzu, não havia dúvida. Tzu que me ensinara tanto, que fora
tão duro comigo. Instintivamente, dei um passo à frente,
sorrindo para ele.
Tzu! — disse eu. — Eu sou...
Ele fez uma careta para mim, e rosnou:
Afastem-se, meninos, não atrapalhem um cidadão ho-
nesto que está trabalhando para seu senhor. De mim não
conseguem dinheiro algum.
Dito isso, voltou-se abruptamente, afastando-se dali.
Senti que meus olhos ficavam quentes, e tive o receio de
que ia cobrir-me de ridículo, diante de meus amigos. Não,
eu não podia dar-me ao luxo das lágrimas, mas Tzu me
ignorara, fingira não me conhecer. Tzu, que me ensinara
desde o nascimento! Eu pensava como ele procurara
ensinar-me a montar em meu pônei Nakkim, como me
ensinara a lutar. Agora, ele me repudiara — ele me
desdenhara. Baixei a cabeça, desconsolado, arrastei o pé na
poeira. Perto de mim, meus dois companheiros se
mantinham silenciosos, embaraçados, sentindo-se como eu,
achando que também tinham sido menosprezados. Um
movimento repentino atraiu-me a atenção e um indiano
idoso e barbudo, usando turbante, veio devagar em minha
direção.
Jovem senhor! — disse, em seu tibetano de sotaque
singular. — Eu vi tudo, mas não pense mal daquele homem.
Alguns de nós esqueceram a infância. Eu não esqueci.
Venha comigo.
Seguiu à frente para a loja, que havíamos admirado.
Estes jovens podem apanhar o que quiserem, — disse
ao lojista.
Timidamente, cada um de nós apanhou uma daquelas coisas
pegajosas e lindas, fazendo mesura de reconhecimento do
indiano.
Não! Não\ — exclamou ele. — Um não basta, tirem
outro, vocês todos.
Nós o fizemos, e ele pagou ao lojista sorridente.
Senhor! — disse eu, em tom fervoroso. — Que a
Bênção de Budha esteja convosco, e vos proteja; que vossas
alegrias sejam muitas!
Ele sorriu para nós, com expressão benigna, inclinou-se
ligeiramente e se voltou, para dar prosseguimento ao que
fazia.
Devagar, voltamos para casa, comendo lentamente os doces,
para que durassem o mais possível. Tínhamos quase
esquecida o sabor daquelas coisas. Aqueles eram mais
saborosos do que a maioria, porque haviam sido dados com
tão bons sentimentos. Eu refletia, enquanto andávamos, que
fora primeiramente o meu Pai que me ignorara, na escadaria
da Potala, e agora Tzu o fizera. Yulgye quebrou o silêncio:
É um mundo engraçado, Lobsang, agora que somos
meninos, eles nos ignoram e desdenham. Quando formos
lamas, os Cabeças-Negras virão correndo, procurando nossos
favores!
No Tibete, os leigos são designados como "Cabeças-Negras",
porque têm cabelos sobre as mesmas; os monges,
naturalmente, as têm raspadas.
Aquela noite, no culto, mostrei-me muito atento; decidi
trabalhar com tal afinco que me tornaria um lama o mais
cedo possível, e depois andaria em meio àqueles "Cabeças-
Negras" desdenhando-os quando procurassem meus
serviços. Estava tão atento, na verdade, que atraí a atenção
de um Inspetor. Ele me fitou, repleto de desconfiança,
achando que tal devoção em mim era coisa inteiramente
inatural! Assim que o culto terminou, fui apressadamente
para meu alojamento, pois sabia que teria um dia ocupado
com o Lama Mingyar Dondup, a partir do amanhecer. Por
algum tempo, não consegui dormir. Revirei-me, pensando
no passado e nas agruras que atravessara.
De manhã, levantei-me, fiz o desjejum e estava a ponto de
seguir para os Alojamentos dos Lamas. Ia saindo do quarto,
quando um monge corpulento, com um manto esfarrapado,
segurou-me .
Ei, você! — disse. — Você vai trabalhar na cozinha, esta
manhã... e limpar as mós, também!
Mas, Senhor! — repliquei. — Meu guia, o Lama Mingyar
Dondup, quer minha presença.
Procurei passar por ele.
Não, você vem comigo. Não importa quem deseja sua
companhia, eu estou dizendo que você vai trabalhar na
cozinha.
Agarrou-me o braço e o torceu, de modo que não pudesse
fugir. Com relutância, fui com ele, pois não havia
alternativa.
No Tibete, todos nós trabalhamos periodicamente em ser-
viço braçal, realmente braçal. "Ensina humildade!" dizem
uns. "Impede que um menino se ache importante demais!"
dizem outros. "Elimina as distinções de classe!" — afirmam
ainda outros. Meninos — e monges — trabalham em
qualquer tarefa que lhes seja destinada, puramente como
medida disciplinar. Havia, naturalmente, um quadro
doméstico de monges de grau inferior, mas os meninos e
monges de todos os graus tinham de comparecer às tarefas
mais baixas e desagradáveis, como preparo. Nós odiávamos
isso, pois os "titulares" — todos eles homens inferiores —
tratavam-nos como escravos, sabendo muito bem que não
nos podíamos queixar. Queixar-nos? A coisa visava a ser
bem dura!
Seguimos pelo corredor de pedra, descendo os degraus feitos
de duas pranchas de madeira, com barras cruzadas,
chegando às grandes cozinhas,onde eu sofrera uma
queimadura tão séria na perna.
Pronto! — disse o monge, que me segurava. — Le-
vante-se e limpe os sulcos nas pedras.
Apanhando uma ponteira aguda de metal, subi em uma das
grandes rodas de moagem de cevada, e me pus
industriosamente a cavar os detritos aninhados naquelas
ranhuras. Aquela pedra fora negligenciada e agora, ao invés
de moer, servia apenas para estragar a cevada. Minha tarefa
era a de "preparar" a superfície, de modo que ficasse
novamente aguda e limpa. O monge permanecia por ali,
limpando ociosamente os dentes.
Ei! — gritou uma voz, vinda da entrada. — Terça-Feira
Lobsang Rampa! O Terça-Feira Lobsang Rampa está aqui? O
Honrado Lama Mingyar Dondup quer vê-io imediatamente.
Instintivamente, fiquei em pé e saltei da pedra.
Aqui estou! — gritei.
O monge cerrou o punho, desferindo um murro em cima da
cabeça e derrubando-me ao chão.
Eu digo que você fica aqui, e fará o seu trabalho, —
resmungou. — Se alguém quiser vê-lo, que venha buscá-lo
pessoalmente.
Apanhando-me pelo pescoço, ergueu-me e me atirou sobre
a pedra. Bati com a cabeça em um canto e todas as estrelas
do céu eclodiram em minha consciência, antes de
esmaecerem e deixarem o mundo vazio e escuro.
Foi estranho, mas tive a sensação de que era erguido —
erguido horizontalmente — e depois me punha em pé. Em
algum lugar, um gongo enorme, de som profundo, marcava
os segundos da vida, fazendo "bong-bong-bong" e com uma
batida final achei que tinha sido atingido por um relâmpago
azul. Naquele instante o mundo se tornou muito claro,
brilhante, com uma espécie de luz amarelada, na qual eu
podia ver com mais clareza do que o normal. "Oh" disse a
mim mesmo, "estou, então, fora de meu corpo! Oh! Que
aspecto estranho eu tenho!" Tinha eu muita experiência em
matéria de viagem no astral, e eu já fora muito além dos
confins deste velho planeta nosso, viajando também a
muitas das maiores cidades deste globo. Agora, porém,
ocorria minha primeira experiência de ser "arrancado do
corpo". Estava em pé, diante da grande mó, fitando com
desagrado considerável a figurinha de manto rasgado, caída
na pedra. Eu a fitava, sentindo apenas interesse efêmero ao
observar como meu corpo astral se prendia àquela figura
surrada por um cordão branco-azulado, que ondulava e
pulsava, brilhando com intensidade e esmaecendo,
brilhando e esmaecendo sem cessar. Depois fitei mais de
perto meu corpo, sobre aquela laje, ficando assustado com o
grande ferimento na têmpora esquerda, da qual jorrava
sangue vermelho-escuro, sangue que se entranhava nas
ranhuras da pedra, misturando-se de modo inextricável com
os detritos até então não retirados.
Uma agitação repentina chamou-me a atenção e, ao me
voltar, vi meu guia, o Lama Mingyar Dondup, entrando na
cozinha, o rosto pálido de raiva. Adiantou-se e parou bem
diante do monge-chefe da cozinha — o monge que me
tratara tão mal. Nenhuma palavra foi dita, palavra alguma, na
verdade, houve um silêncio abafado e mortal. Os olhos
penetrantes de meu guia pareceram relampejar para o
monge-cozinheiro e, com um suspiro idêntico ao de um
balão perfurado, ele caiu, tornando-se uma massa inerte no
chão de pedra. Sem lhe dedicar um segundo olhar, meu guia
afastou-se, voltou-se para minha figura terrena ali estendida,
respirando de modo estertorante sobre aquela roda de pedra.
Olhei ao redor, verdadeiramente fascinado em pensar que
conseguiria, agora, sair de meu corpo para distâncias curtas.
Efetuar "viagens distantes" no plano astral não era nada, eu
sempre o soubera fazer, mas aquela sensação de sair de mim
mesmo e fitar minha casca terrena de argila era uma
experiência nova e empolgante. Desligando a atenção dos
acontecimentos a meu redor, por momentos, deixei-me
flutuar — flutuar, passando pelo teto da cozinha. "Puxa!"
disse, involuntariamente, ao passar pelo teto de pedra, indo
ter à câmara acima. Ali estavam sentados diversos lamas, em
contemplação profunda. Notei, com algum interesse, que
tinham uma espécie de modelo do mundo à frente, uma
bola sobre a qual se achavam indicados os continentes, as
terras, oceanos e mares, e que a bola se achava fixa com
certa inclinação, inclinação correspondente à da própria
Terra no espaço. Não me demorei ali, pois aquilo se
assemelhava demasiadamente a trabalho escolar, e prossegui
em viagem para cima. Passando por outro teto, e depois
outro, depois outro, cheguei à Sala dos Túmulos!
Ao redor, estavam as paredes grandes e douradas que
sustentavam os túmulos das Encarnações do Dalai Lama, nos
séculos anteriores. Ali fiquei, em contemplação reverente,
por alguns momentos, deixando-me depois flutuar para
cima, mais para cima, de modo que finalmente, lá embaixo,
vi aquela Potala gloriosa, com todo o seu ouro refulgente,
todo o seu escarlate e carmesim e com as paredes brancas e
formidandas que pareciam fundir-se com a rocha viva da
própria montanha.
Voltando o olhar de leve para a direita notei a Aldeia de Shö
e mais além a cidade de Lhasa, com as montanhas azuis ao
fundo. Ao erguer-me mais, no espaço, podia divisar as
imensidões de nossa terra bela e agradável, terra que podia
mostrar-se dura e cruel devido aos caprichos do tempo
imprevisível mas que, para mim, era a pátria!
Um puxão de vigor notável chamou-se a atenção, e veri-
fiquei que estava sendo puxado, assim como eu puxara,
muitas vezes, de volta, algum papagaio esvoaçando no céu.
Eu descia sempre e sempre, chegava à Potala, atravessava
soalhos que se tornavam tetos, até alcançar finalmente meu
destino, pondo-me de novo ao lado de meu próprio corpo
na cozinha.
O Lama Mingyar Dondup estava banhando com gentileza
minha têmpora esquerda — tirando pedaços da mesma.
"Ora, essa!" — disse eu para mim mesmo, em espanto
profundo. "Minha cabeça é tão grossa que se rachou, ou
rachou a pedra?" Em seguida, vi que estava com uma
pequena fratura, e notei também que boa parte do material
retirado de minha cabeça eram detritos — fragmentos —,
pedaços de pedra e resíduos de cevada moída. Observava
aquilo com interesse e, devo confessar, certo divertimento,
pois em pé ali, ao lado do corpo carnal, em meu corpo astral,
não sentia dor, nem incômodo algum, apenas paz.
O Lama Mingyar Dondup terminou finalmente seu trabalho
e pôs uma tira de substância herbácea comprimida em
minha cabeça, atando-a com fitas de seda. Depois, fazendo
sinal a dois monges que esperavam, com uma maca, disse-
lhes que me erguessem com cuidado.
Os homens — monges de minha própria Ordem —
ergueram-me com suavidade, depositando-me na maca e,
com o Lama Mingyar Dondup andando ao lado, fui levado
dali.
Olhei ao redor com espanto considerável, pois a luz esmae-
cia. Eu estivera assim por tanto tempo que o dia já
terminava? Antes que pudesse responder, verifiquei que eu
também esmaecia, o amarelo e o azul da luz espiritual
diminuíam em intensidade, eu era tomado por um desejo
completamente esmagador e imperioso de descansar —
dormir, sem me preocupar mais com coisa alguma.
Por algum tempo, não tive consciência e, depois, pela minha
cabeça passaram dores horríveis, dores que me faziam ver
vermelhos e azuis e verdes e amarelos, dores que me
levavam a pensar que eu ia enlouquecer com um sofrimento
tão intenso. Senti uma mão fresca em minha cabeça, e uma
voz suave disse:
— Tudo está bem, Lobsang. Tudo está bem, descanse,
descanse, durma!
O mundo pareceu tornar-se um travesseiro escuro e fofo,
tão macio quanto a penugem de cisnes, e nele mergulhei
satisfeito, em paz; o travesseiro pareceu envolver-me, de
modo que eu não tomava mais conhecimento de coisa
alguma, não existia, e mais uma vez minha alma vagou pelo
espaço, enquanto na terra o corpo surrado continuava
descansando.
Devem ter transcorrido muitas horas, quando voltei à
consciência. Despertei e encontrei o meu guia sentado ao
lado, tendo minhas mãos nas suas. Quando minhas pálpebras
se abriram e a luz do anoitecer entrou, sorri debilmente, e
ele sorriu em resposta, retirando as mãos. De uma mesinha
ao lado, trouxe uma chávena com alguma bebida de cheiro
doce. Levando-a a meus lábios com suavidade, ordenou:
Beba isto, que lhe fará bem!
Bebi, e a vida irrompeu outra vez em meu corpo, a tal ponto
que procurei sentar-me. O esforço foi demasiado, e caí
como se fora atingido mais uma vez na cabeça, com força, vi
luzes vívidas, constelações de luzes, e logo desisti de tais es-
forços.
As sombras da noite se alongavam, de baixo veio o som
emudecido das conchas, e eu sabia que o culto estava a
ponto de começar. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup,
disse:
Tenho de ir por meia hora, Lobsang, porque O Mais
Precioso quer minha presença, mas seus amigos Timon e
Yulgye estão aqui, para cuidar de você em minha ausência, e
chamar-me, se for preciso.
Dito isso, apertou-me as mãos, pôs-se em pé e deixou o
quarto.
Dois rostos conhecidos apareceram, entre assustados e
inteiramente animados. Eles se acocoraram à meu lado, e
Timon disse:
Oh, Lobsang! O Chefe da Cozinha pagou por tudo isso!
Sim — disse o outro —, ele está sendo expulso da
Lamaseria, por brutalidade extrema e desnecessária. Está
saindo agora, e saindo escoltado!
Eles borbulhavam de animação, e Timon disse outra vez:
Pensei que tinhas morrido, Lobsang, tu realmente san-
graste como um iaque recheado!
Fui forçado a sorrir, enquanto os olhava, e as vozes dos
amigos mostravam como ficavam emocionados diante, de
qualquer acontecimento animado que viesse contrastar com
a monotonia da vida em uma lamaseria. Não sentia rancor
por eles, devido à animação que demonstravam, sabendo
que também eu ficaria animado se a vítima fosse outro. Sorri
para eles, e fui tomado por um cansaço opressivo. Fechei os
olhos, pretendendo descansá-los por momentos, e mais uma
vez perdi noção de tudo.
Por diversos dias, talvez sete ou oito ao todo, descansei
deitado de costas e o meu guia, o Lama Mingyar Dondup, foi
meu enfermeiro. Não fosse por ele, eu não teria sobrevivido,
pois a vida em uma lamaseria não é obrigatoriamente gentil
ou bondosa, é realmente a sobrevivência dos mais aptos. O
lama era um homem bondoso, um homem amoroso, mas
ainda que ele não o fosse, existiria o maior dos motivos para
que eu continuasse vivo. Eu, como disse antes, tinha uma
tarefa especial a executar na vida, e supunha que as agruras
pelas quais passava, como menino, destinavam-se de algum
modo a me fortalecer, tornar-me imune às vicissitudes e ao
sofrimento, pois todas as profecias que eu ouvira — e foram
em bom número! — tinham indicado que minha vida seria
uma vida de pesar, uma vida de sofrimento.
Não era apenas sofrimento, porém, à medida que meu es-
tado melhorava, surgiam mais oportunidades de conversar
com meu guia. Falamos de muitas coisas, tratamos de
assuntos comuns e também de assuntos que eram dos mais
incomuns. Examinamos extensamente diversos temas
ocultos, e eu me lembro de ter dito, em certa ocasião:
Deve ser uma coisa maravilhosa, Honrado Lama, ser
bibliotecário e possuir todo o conhecimento do mundo. Eu
seria um bibliotecário, se não fossem essas profecias terríveis
quanto ao meu futuro.
O meu guia sorria para mim.
Os chineses têm um dito: "Um quadro vale mil pala-
vras", Lobsang, mas eu digo que não há quantidade por
maior que seja de leitura nem de contemplação de quadros
que possa substituir a experiência, a prática e o
conhecimento.
Olhei para ele, para ver se falava sério, e depois pensei no
monge japonês, Kenji Tekeuchi, que durante quase setenta
anos estudara a palavra impressa e deixara de praticar ou
absorver qualquer coisa do que lera.
Meu guia lia meus pensamentos.
Sim! — disse. — O velho não é um ser mental. Con-
seguiu uma indigestão mental, lendo tudo, tudo, e o fez sem
absorver coisa alguma. Julga ser um grande homem, um
homem de espiritualidade inexcedível. Ao invés disso, é um
pobre velho pateta, que não engana pessoa alguma, tanto
quanto a si próprio.
O lama suspirou, com tristeza, e acrescentou:
Ele está espiritualmente falido, sabendo tudo, mas sem
saber coisa alguma. A leitura insensata, indiscriminada e mal
orientada de tudo quanto nos vem às mãos é perigosa. Esse
homem seguiu todas as grandes religiões e, embora sem
compreender nenhuma delas acreditou ser o maior homem
espiritual de todas.
Honrado Lama! — disse eu. — Se é tão pernicioso ter
livros, para que existem livros?
Meu guia fitou-me por momentos, com semblante
inexpressivo. ("Ha!" Pensei, "A resposta para essa, ele não
conhece!") E ele voltou a sorrir, dizendo:
Mas, meu caro Lobsang, a resposta é tão clara! Leia,
leia e continue lendo, mas jamais permita que qualquer livro
se sobreponha ao seu discernimento. Um livro se destina a
ensinar, instruir ou mesmo divertir. Um livro não é um
mestre a ser seguido cegamente e sem razão. Nenhuma
pessoa dotada de inteligência deve deixar-se escravizar por
um livro, ou pelas palavras de outra.
Eu me reclinei, assentindo. Sim, isso fazia sentido. Mas,
então, para que preocupar-se com livros?
Livros, Lobsang? — disse meu guia, em resposta à
indagação. — É claro que deve haver livros! As bibliotecas
do mundo contêm a maior parte do conhecimento, mas
somente um idiota diria que a humanidade seja escrava dos
livros. Eles existem apenas como guia para a humanidade,
para consulta, para uso. É um fato fora de dúvida que os
livros mal utilizados podem ser uma maldição, pois levam
um homem a julgar ser superior ao que é, e assim o levam a
caminhos tortuosos na vida sem que ele tenha o
conhecimento ou a lucidez para seguir esses caminhos até o
fim.
Bem, Honrado Lama — voltei a perguntar —, quais são as
utilizações dos livros?
Meu guia fitou-me com dureza e respondeu:,
Você não pode ir a todos os lugares do mundo e
estudar com os maiores Mestres do mundo, mas a palavra
escrita... livros... podem trazer-lhe os ensinamentos deles.
Você não precisa acreditar em tudo que lê, nem os grandes
escritores dizem que você o deva fazer, pois você deve
utilizar seu próprio raciocínio, e utilizar as palavras de
sabedoria deles como indicadoras do que devam ser as suas
palavras de sabedoria. Posso assegurar-lhe que uma pessoa
ainda não capaz de estudar um assunto pode prejudicar-se
imensamente, apanhando um livro e... por assim dizer...
procurando erguer-se acima de sua posição cármica,
estudando as palavras e obras dos outros. Pode ocorrer que o
leitor seja homem de desenvolvimento evolucionário baixo
e, nesse caso, ao estudar as coisas que na atualidade não
sejam para ele, venha a embotar, ao invés de favorecer, seu
desenvolvimento espiritual. Conheci muitos casos assim, e
nosso amigo japonês é apenas um deles.
Meu guia tocou a sineta pedindo chá, suplemento dos mais
necessários a todas as nossas conversas! Quando o chá foi
trazido pelo monge-ajudante, retomamos a palestra, e meu
guia disse:
Lobsang! Você vai levar uma vida das mais incomuns,
e para esse fim o seu desenvolvimento está sendo forçado,
seus poderes telepáticos aumentados por todos os métodos
de que disponhamos. Vou dizer-lhe, agora, que em questão
de poucos meses você vai estudar por telepatia ligada à
clarividência, alguns dos maiores livros do mundo... algumas
das obras-primas literárias do mundo, e vai estudá-las a
despeito da falta de conhecimento da língua em que foram
escritas.
Receio ter ficado boquiaberto de espanto, pois como poderia
estudar um livro escrito em língua que não compreendia?
Tratava-se de coisa que me intrigava, mas logo recebi uma
resposta:
Quando seus poderes de telepatia e clarividência
forem um pouco mais aguçados... como serão... você poderá
recolher todos os pensamentos de um livro, através de
pessoas que recentemente; leram o mesmo ou se acham
empenhadas nessa leitura. Esta é uma das utilizações menos
conhecida da telepatia que, naturalmente, tem em tais casos
de estar aliada à clarividência. As pessoas em outras partes
do mundo nem sempre têm acesso a uma biblioteca pública,
ou a uma das bibliotecas principais de um país; elas podem
passar pela porta, mas a menos que provem ser estudantes
genuínos à procura do conhecimento, não as deixam entrar.
Esse impedimento não será imposto a você, que poderá
viajar no astral e estudar, e isso o ajudará durante todos os
dias de sua vida, e na época em que passar para além dela.
Falou-me, então, das utilizações do ocultismo. O mau
emprego do poder oculto, ou o domínio de outra pessoa por
meios ocultos, provocava um castigo realmente terrível. Os
poderes esotéricos, os poderes metafísicos e as percepções
extra-sensoriais deveriam ser utilizados apenas para o bem,
apenas a serviço dos outros, apenas para aumentar a soma
total de conhecimento contida no mundo.
Mas, Honrado Lama! — disse eu, aflito. — Que me diz
das pessoas que saem de seus corpos, com animação ou
interesse, o que me diz quando elas saem dos corpos e quase
morrem de susto? Não se pode fazer algo para preveni-las?
Meu guia sorriu com bastante tristeza, ao dizer:
É verdade, Lobsang, que muitas, muitas pessoas lêem
livros e fazem experiências, sem disporem de um mestre
adequado. Muitas pessoas saem de si, quer mediante a bebida
ou superexcitação, ou entregando-se demasiadamente a algo
que não serve para o espírito, e depois entram em pânico.
Há um modo pelo qual você pode ajudar, e está em, por toda
Sua vida, advertir aqueles que indagam, dizendo-lhes que a
única coisa a recear, nas questões ocultas, é o medo. O medo
permite que pensamentos indesejáveis, entidades
indesejáveis, entren! e se apoderem do controle da pessoa,
assenhoreiem-se da pessoa e você, Lobsang, deve repetir
sempre que nada há a recear, senão o próprio medo. Ao
expulsar o medo, você fortalece a humanidade e torna mais
pura essa humanidade. É o medo que causa as guerras, é o
medo que cria a dissensão no mundo, é o medo que joga o
homem contra outro. O medo, e apenas o medo, é o
inimigo, e se o expulsarmos de uma vez por todas, nesse
caso... creia em mim... não há mais coisa alguma que precise
ser temida.
Medo? Que queriam dizer todas aquelas palavras sobre o
medo? Fitei meu guia e creio que ele tenha notado a per-
gunta impronunciada em meus olhos. Talvez lesse meus
pensamentos, telepáticamente, mas o fato é que disse, de
repente:
Você, então, está pensando sobre o medo? Bem, você
é jovem e inocente!
Eu pensava: "Oh! Não tão inocente quanto ele pensa!"
O lama sorriu, como a saborear essa piada — embora,
naturalmente, eu não houvesse pronunciado uma só palavra
— e afirmou:
O medo é uma coisa muito verdadeira, uma coisa tan-
gível, e você terá ouvido falar daqueles que estão viciados
com o espírito... que se tornam embriagados. São homens
que vêem criaturas notáveis. Alguns desses beberrões
afirmam ver grandes elefantes com listras roxas, ou criaturas
ainda mais bizarras. Posso dizer-lhe, Lobsang, que as
criaturas vistas por eles... e a que chamam invenções de sua
imaginação... são criaturas verdadeiras, sem dúvida.
Eu ainda não estava muito claro quanto a essa questão do
medo. Sabia, naturalmente, o que era o medo, no sentido
físico. Pensava no dia em que tivera de ficar imóvel, do lado
de fora da Lamaseria de Chakpori, para submeter-me à prova
de resistência, antes de me permitirem entrar e ser aceito
como o mais humilde, dos humildes cheias. Voltei-me para
meu guia dizendo:
Honrado Lama, o que é todo esse medo?
Conversando, ouvi falar das criaturas do astral mais baixo,
mas eu mesmo, em todas minhas viagens no astral, nunca
encontrei coisa alguma que me causasse medo algum. O que
é esse medo?
Meu guia permaneceu imóvel por momentos e depois,
como se chegasse a uma decisão repentina, ficou
rapidamente em pé e disse:
Venha!
Eu também me levantei, e seguimos por um corredor de
pedras, entrando à direita, depois à esquerda, e novamente à
direita. Prosseguindo em nossa jornada, chegamos
finalmente a uma sala onde não havia luz. Era como entrar
em uma poça de negrume, e meu guia seguiu primeiro,
acendendo uma lâmpada de manteiga já pronta ao lado da
porta e depois, fazendo-me um gesto para que me deitasse,
disse:
Você tem idade suficiente para conhecer as entidades
do astral inferior. Estou preparado para ajudá-lo a ver essas
criaturas, e providenciar para que nenhum mal lhe aconteça,
pois elas não devem ser conhecidas, a menos que a pessoa
esteja adequadamente preparada e protegida. Vou apagar esta
luz, e você descanse em paz, deixando-se flutuar, sair do
corpo... deixe-se flutuar para onde quiser, sem destino,
sem intenção... apenas flutuar e vagar, como a brisa.
Dito isso, apagou a lâmpada e não havia qualquer vislumbre
de luz naquele lugar, quando fechou a porta. Eu nem sequer
conseguia perceber-lhe a respiração, mas sentia sua presença
cálida e reconfortante perto de mim.
A viagem astral não era experiência nova, pois eu nascera
com a capacidade de efetuá-la e de lembrar-me sempre de
tudo. Agora, estendido no chão, tendo a cabeça apoiada em
parte de meu manto que enrolara, entrelacei os dedos e pus
os pés juntos, pensando no processo de deixar o corpo, o
processo que é tão simples para quem o conhece. Logo senti
a sacudidela suave que indica a separação do veículo astral
do físico, e com esse solavanco veio uma torrente de luz. Eu
parecia estar flutuando na extremidade de meu Cordão de
Prata. Lá embaixo, imperava a escuridão mais completa; a
escuridão da sala que acabara de deixar, e na qual não havia
um só vislumbre de luz.
Olhei ao redor, mas aquilo não era diferente em coisa
alguma das viagens normais que eu empreendera antes.
Pensei em erguer-se acima da Montanha de Ferro, e bastou
o pensamento para não mais estar naquela sala, mas pairando
sobre a Montanha, a uns cem metros de altura, mais ou
menos. De repente, eu já não percebia a Potala, não percebia
a Montanha de Ferro, não percebia mais a terra do Tibete,
ou o Vale de Lhasa. Senti-me cheio de apreensão, meu
Cordão de Prata tremeu com violência, e fiquei apavorado
ao ver que parte da nebulosidade "azul-prateada" que sempre
emanava do Cordão se transformara em um verde-
amarelado doentio.
Sem qualquer aviso, houve um retorcimento horrível,
puxadas terríveis, uma sensação de inimigos enlouquecidos
que procuravam puxar-me para baixo. Instintivamente, olhei
para lá, e quase desmaiei com o que vi.
Ao redor de mim, ou melhor, por baixo, estavam as criaturas
mais estranhas e odiosas, tais como as vistas pelos bêbados.
A coisa mais horrível que já vi em minha vida surgiu,
ondulante, em minha direção, semelhante a uma lesma
imensa, com face humana horrível, mas de cores tais como
nenhum ser humano jamais teve. Esse rosto era vermelho,
mas o nariz e orelhas verdes, e os olhos pareciam girar
dentro de suas órbitas. Havia outras criaturas, também, cada
qual parecendo mais horrível e nauseante do que a anterior.
Vi criaturas que nenhuma palavra poderia descrever, mas
ainda assim elas pareciam ter um traço humano comum de
crueldade. Estendiam-se, procuravam apanhar-me —
procuravam desligar-me de meu Cordão. Outras estendiam-
se para baixo, procurando romper o Cordão, puxando-o. Eu
olhava, estremecia e pensei: "Medo! Então, isto é o medo!
Bem, estas coisas não me podem ferir, estou imune às suas
manifestações, imune à seus ataques!" E ao pensar assim, as
entidades desapareceram, não existiam mais. O Cordão
etéreo que me ligava ao corpo físico clareou e os reverteu às
suas cores normais; senti-me alegre, livre, e sabia que ao
fazer e vencer aquela prova, não voltaria mais a ter medo de
coisa alguma que pudesse acontecer, no plano astral. Aquilo
servira para me ensinar, de modo conclusivo, que as coisas
que tememos não podem ferir-nos, a menos que o
permitamos, mediante nosso medo.
Um puxão repentino em meu Cordão de Prata atraiu-me a
atenção mais uma vez, e eu olhei para baixo sem a menor
hesitação, sem a menor sensação ou sentimento de medo.
Vi um pequeno brilho de luz, vi que meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, acendera aquela pequenina e tremulante
lâmpada de manteiga, e meu corpo puxava para si o corpo
astral. Com suavidade, flutuei e passei pelo telhado do
Chakpori, indo até onde me achava em posição horizontal
sobre o corpo físico e depois, com imensa suavidade, desci e
o astral e o físico se combinaram em um só. O corpo que
agora era "eu" contorceu-se de leve, e em me sentei. Meu
guia me fitava com um sorriso afetuoso no rosto.
Andou bem, Lobsang! — disse. — Eu o levei a um
grande segredo, um dos maiores, e você se saiu melhor, em
sua primeira tentativa, do que eu na minha. Sinto-me
orgulhoso de você.
Eu ainda estava bastante intrigado quanto àquela coisa de
medo, de modo que disse:
Honrado Lama, o que realmente existe a temer?
Meu guia adotou uma expressão séria — até mesmo sombria
— enquanto dizia:
Você tem levado uma vida boa, Lobsang, e nada deve
recear. Assim sendo, não sente medo. Mas existem aqueles
que cometeram crimes, que fizeram coisas erradas contra
outros. Quando se acham a sós, a consciência os perturba
muito. As criaturas do astral inferior nutrem-se do medo,
alimentam-se daqueles que têm a consciência perturbada. As
pessoas criam formas de pensamento más. Talvez, em algum
dia no futuro, você consiga ir a uma catedral muito velha, ou
templo, que exista há inúmeros anos. Das paredes desse
edifício (como o nosso próprio Jo Kang) você perceberá o
bem que ocorreu dentro do mesmo. Depois disso,
entretanto, poderá ir repentinamente a uma prisão muito
antiga, onde muito sofrimento e muita perseguição ocorreu,
e nesse caso será o efeito oposto. Daí segue que os
habitantes dos edifícios criam formas de pensamentos que
habitam as paredes dos mesmos, tornando-se assim visível
que um bom edifício tem boas formas de pensamento que
apresentam boas emanações, e lugares maus apresentam
maus pensamentos dentro de si, ficando mais uma vez claro
que apenas pensamentos maus podem vir de um edifício
mau, e esses pensamentos e formas de pensamentos podem
ser vistos e tocados por quem seja clarividente enquanto
estiver no estado astral.
Meu guia pensou por momentos, e depois acrescentou:
Existem casos, como você perceberá, nos quais os
monges e outros imaginam serem maiores do que sua
própria realidade, e com isso criam uma forma de
pensamento, e com o tempo a mesma vem colorir toda a sua
visão. Há um caso do qual me lembro neste instante, em que
um velho monge birmanês... criatura notavelmente
ignorante, é preciso dizer... era monge de categoria inferior,
sem compreensão, mas ainda assim nosso irmão, e de nossa
Ordem, pelo que tínhamos de usar de toda a tolerância. Esse
monge levava uma vida solitária, como muitos de nós o
fazemos, mas ao invés de dedicar o tempo à meditação e
contemplação, e às demais coisas do bem, imaginou que era
um homem poderoso, na terra da Birmânia. Imaginou não
ser um monge inferior, e que mal pusera o pé na Trilha do
Esclarecimento. Ao invés disso, na solidão de sua cela,
imaginou-se um grande Príncipe, um Príncipe de estados
poderosos e grande fortuna. De início, isso foi inofensivo,
tratava-se de diversão inofensiva, ainda que inútil. Por certo
ninguém o teria condenado por algumas imaginações ociosas
de anseio, pois, como digo, ele não tinha o espírito ou o
conhecimento para dedicar-se realmente às tarefas
espirituais a serem empreendidas. Esse homem, com o
correr dos anos, sempre que se achava a sós, tornava-se o
grandíssimo Príncipe. Isso veio colorir sua visão, afetar-lhe
os modos, e com a passagem do tempo o monge humilde
pareceu desaparecer, vindo o Príncipe arrogante a tomar seu
lugar. Afinal o pobre desgraçado realmente acreditava, com
a maior firmeza, ser um Príncipe da Birmânia. Falou com
um Abade, um dia, como se o Abade fosse um servo em sua
propriedade principesca. O Abade não era criatura tão
pacífica quanto alguns de nós, e lamento dizer que o choque
de ver o pobre monge transformado em príncipe o
desequilibrou, reduzindo-o a um estado de instabilidade
mental. Mas você, Lobsang, não precisa preocupar-se com
tais coisas; você é estável, bem equilibrado, sem medo.
Lembre-se apenas dessas palavras, como advertência: o
medo corrói a alma. A imaginação vã e inútil leva a pessoa
para a trilha errada, de modo que, com a passagem dos anos,
essas imaginações se tornam realidade, e as realidades
desaparecem da vista, não voltando mais à luz por diversas
encarnações. Mantenha-se na Trilha, não permita que
anseios ou imaginações aloucadas venham colorir ou
destorcer sua visão. Este é o Mundo de Ilusão, mas para
aqueles que possam enfrentar tal conhecimento, a ilusão
pode ser transformada em realidade, quando estivermos fora
deste mundo.
Pensei em tudo isso, e devo confessar que já o vira falar
sobre aquele monge transformado em príncipe mental,
porque lera a esse respeito em algum livro na Biblioteca dos
Lamas.
Honrado Guia! — disse eu. — Quais são as utilizações
do poder oculto, então?
O lama entrelaçou os dedos e fitou-me diretamente.
As utilizações do conhecimento oculto? Bem, isto é
muito fácil, Lobsang! Temos o direito de ajudar aqueles que
mereçam ajuda. Não temos o direito de ajudar aqueles que
não querem nossa ajuda, e que ainda não estão prontos para
recebê-la. Não utilizamos o poder oculto ou a capacidade
oculta para nosso próprio ganho, nem os alugamos, nem
aceitamos recompensas. Todo o intuito do poder oculto é
acelerar o desenvolvimento da pessoa, acelerar a evolução
da pessoa, e ajudar o mundo como um todo, não apenas o
mundo dos humanos, mas o mundo da natureza, dos
animais... tudo.
Fomos mais uma vez interrompidos pelo culto, que tinha
início no edifício do Templo perto de nós, e como teria sido
desrespeitoso aos Deuses prosseguir uma conversa enquanto
os mesmos eram adorados, encerramos a palestra e
permanecemos em silêncio, sentados, perto da chama fraca
da lâmpada de manteiga, que já se extinguia.

8

Era agradável, sem a menor dúvida, estar deitado na relva
fresca e alta, na base do Pargo Kaling. Por cima, às minhas
costas, as velhas pedras se erguiam para o céu e, de onde me
encontrava, estendido no chão, a ponta mais alta delas
parecia arranhar as nuvens. De modo assaz apropriado, o
"Botão do Lótus" formando a ponta simbolizava o Espírito,
enquanto as "folhas" que sustentavam o "Botão"
representavam o Ar. Eu, na base, me apoiava
confortavelmente na representação da Vida sobre a Terra.
Pouco além de meu alcance — a menos ,que me erguesse —
estavam os "Degraus de Alcance". Pois bem, eu procurava
"alcançar", agora!
Era agradável estar deitado ali a observar os negociantes
vindos da Índia, China e Birmânia, que chegavam à nossa
cidade. Alguns vinham a pé, enquanto puxavam longas filas
de animais carregando mercadorias exóticas, vindas de
lugares muito distantes. Outros, mais imponentes ou talvez
simplesmente cansados, estavam montados nos animais e
olhavam ao redor. Fiquei pensando ociosamente no que suas
bolsas continham e logo voltei a mim, com um sobressalto:
era por esse motivo que estava ali! Estava ali para observar a
aura de tantas pessoas quanto pudesse. Estava ali para
"adivinhar", com base na aura e na telepatia, o que aqueles
homens faziam, o que pensavam, e quais eram suas
intenções.
No lado oposto da estrada um esmoler cego se achava sen-
tado, coberto de sujeira. Esfarrapado e de aspecto comum,
choramingava para os viajantes que passavam. Um número
surpreendente destes lhe atirava moedas, deliciando-se a
observar o cego procurando as moedas que caíam e
finalmente localizando-as pelo som que faziam, ao baterem
na terra e, às vezes, tilintarem contra uma pedra. De vez em
quando, e não era comum, ele deixava de encontrar uma
pequena moeda, e o viajante a erguia, deixando-a cair de
novo. Pensando nele, voltei minha cabeça preguiçosa em
sua direção, sentando-me de modo ereto, dominado pelo
espanto. A aura do homem!
Eu jamais me dera ao trabalho de observá-la antes. Agora,
observando com cuidado, vi que ele não era cego, vi que era
rico, tinha dinheiro e bens guardados, e que fingia ser um
cego pobre, pois era o meio mais fácil de ganhar a vida que
ele conhecia. Não! Não podia ser, eu estava enganado,
consciente demais, ou coisa parecida. Talvez meus poderes
estivessem fraquejando. Perturbado com tal pensamento,
pus-me sobre os pés relutantes, e fui procurar
esclarecimento com meu guia, o Lama Mingyar Dondup,
que se achava do lado oposto, no Kundu Ling.
Algumas semanas antes, eu sofrera uma operação, para que
minha "Terceira Visão" pudesse ser mais ampla. Desde o
nascimento eu possuía poderes incomuns de clarividência,
com a capacidade de ver a "aura" ao redor dos corpos de
seres humanos, animais e plantas. A operação dolorosa
obtivera êxito, aumentando meus poderes muito mais do
que se esperava, até mesmo mais do que o Lama Mingyar
Dondup esperava. Agora, meu desenvolvimento estava
sendo apressado; o preparo que recebia em todas as matérias
ocultas ocupava o dia todo. Sentia-me apertado por forças
poderosas, enquanto este lama e aquele lama "metiam à
força" conhecimento no cérebro, mediante a telepatia ou
outras forças estranhas, cujo mecanismo eu estava estudando
de modo tão intenso. Para que a sala de aula ou o trabalho
escolar, quando se pode aprender pela telepatia? Para que
ficar imaginando acerca das intenções de um homem,
quando se pode ver isso, em sua aura? Mas eu estava a fazer
exatamente a mesma coisa, com aquele cego!
Puxa! Honrado Lama! Onde está? — gritei, correndo e
atravessando a estrada, à busca de meu guia.
No pequeno parque, tropecei em meus próprios pés, aflito,
quase caindo.
Então! — disse meu guia, sorrindo, sentado pacifica-
mente em um tronco caído. — Então! Você está indignado!
Acabou de descobrir que o homem "cego" vê tão bem
quanto nós.
Eu me detivera, resfolegando, arquejando tanto pela falta de
ar quanto pela indignação.
Sim! — exclamei. — O homem é um impostor, um
ladrão, porque está roubando de quem tem bom coração.
Devia ser metido na prisão!
O lama explodiu em gargalhadas, diante de meu rosto ver-
melho e indignado.
Mas, Lobsang, — disse, com suavidade —, para que tanta
agitação! Aquele homem está vendendo serviços, tanto
quanto outro que vende Rodas de Orações. As pessoas lhe
dão esmolas insignificantes, para serem consideradas
generosas; isso faz com que se sintam bem. Por algum
tempo, isso lhes aumenta a cadência de vibração
molecular... eleva-lhes a espiritualidade ... leva-os para
mais perto dos Deuses. Faz-lhes bem! As moedas que dão?
Não são nada! Não lhes farão falta!
Mas ele não é cego! — disse eu, exasperado. — É um
ladrão!
Lobsang, — disse meu guia —, ele é inofensivo, está
vendendo serviços. Mais tarde, no mundo ocidental, você
verificará que os homens que trabalham em publicidade
fazem afirmações cuja falsidade prejudica a saúde das
pessoas, deforma crianças que ainda vão nascer, transforma
os razoavelmente lúcidos em maníacos alucinados.
Bateu com a mão na árvore caída, fazendo-me um gesto para
que me sentasse a seu lado. Eu atendi, batendo com os
calcanhares na casca do tronco.
Você deve exercitar o uso da aura e da telepatia juntas, —
disse meu guia. — Usando uma, mas não a outra, suas
conclusões podem ser deformadas, como aconteceu neste
caso. É essencial usar todas as faculdades que se tenha,
empregar todos os poderes que se possua, em todos os
problemas. Pois bem, esta tarde terei de ir-me embora, e o
Grande Lama Médico, o Reverendo Chinrobnobo, do
Hospital Manzekang, conversará com você e você com ele.
Puxa! — disse eu, com pesar. — Mas ele nunca fala
comigo! Nem sequer me dá atenção.
Tudo isso mudará... de um ou de outro modo, esta tarde,
— disse meu guia.
"De um ou de outro modo", eu pensava, achando aquilo
muito agourento.
Juntos, meu guia e eu voltamos para a Montanha de Ferro,
pausando momentaneamente para olhar de novo as antigas
esculturas em rocha colorida, que ainda pareciam novas.
Depois, subimos a trilha íngreme e pedregosa.
Como a vida, esta trilha, Lobsang, — disse o lama. —
A vida segue uma trilha dura e pedregosa, com muitas
armadilhas e buracos, mas quem perseverar alcançará o
cimo.
Quando chegamos ao cimo da trilha, estavam fazendo a
chamada para o Serviço do Templo. Calamo-nos e cada um
de nós seguiu seu caminho, ele indo ter com seus
companheiros, e eu com os outros de minha classe. Assim
que o culto terminara e eu comera, um chela menor do que
eu aproximou-se, um tanto nervoso.
Terça-Feira Lobsang Rampa, — disse, com certa hesi-
tação —, o Santo Lama Médico Chinrobnobo quer vê-lo
imediatamente, na Escola Médica.
Endireitei o manto, inalei profundamente algumas vezes,
para que meus nervos se acalmassem e caminhei com
segurança que não sentia para a Escola.
Ah! — trovejou uma voz sonora, uma voz que me
fazia lembrar o som de uma trombeta do Templo.
Permaneci de pé em frente dele e apresentei-lhe meus
respeitos, do modo consagrado e tradicional. O lama era
homem grande, alto, corpulento, de ombros largos, figura
inteiramente assustadora para um menino pequeno. Eu
achava que um peteleco que ele me desse arrancaria minha
cabeça do tronco e a mandaria rolando pela encosta da
montanha. Ele, entretanto, fez sinal para que me sentasse à
sua frente, e o fez de modo tão cordial, que quase caí
sentado!
Agora, menino — disse, com sua voz forte e
profunda, semelhante ao trovão nas montanhas distantes —,
ouvi falar muito a seu respeito. O seu Ilustre Guia, o Lama
Mingyar Dondup, afirma que você é um prodígio, que tem
poderes paranormais imensos. Vamos ver!
Eu continuava sentado, estremecendo.
Está-me vendo? E o que vê? — perguntou ele.
Estremeci ainda mais, ao dizer a primeira coisa que me
ocorria:
Vejo um homem tão grande, Santo Lama Médico, que
julguei ser uma montanha, quando entrei.
A gargalhada ruidosa em que ele prorrompeu causou tal
lufada de vento que receei ser capaz de arrebatar-me o
manto.
Olhe para mim, menino, olhe para minha aura e diga o
que vê! — ordenou, e depois aduziu: — Diga-me o que vê
na aura, e o que significa para você.
Olhei para ele, não diretamente, não de frente, pois muitas
vezes isso obscurece a aura de uma figura vestida. Olhei na
direção dele, mas não exatamente para ele.
Senhor! — disse, então. — Vejo, em primeiro lugar, o
esboço físico de seu corpo, fracamente, como estaria, sem o
manto. E depois, bem perto do senhor, vejo uma luz azulada
leve, na cor de fumaça de madeira nova. Ela me diz que o
senhor tem trabalhado demais, que tem passado noites sem
dormir ultimamente, e que sua energia etérica está baixa.
Ele me fitava, agora, com olhos um tanto maiores do que o
normal, e assentiu, com satisfação.
Prossiga! — ordenou.
Senhor! — continuei. — Sua aura se estende a uma
distância de uns nove palmos, em ambos os lados. As cores
estão em camadas tanto verticais quanto horizontais. O
senhor tem o amarelo da espiritualidade elevada. Neste
instante, está pasmo porque alguém de minha idade lhe
pode dizer tanta coisa, e pensa que meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, tem algum conhecimento, afinal de
contas. Está pensando que terá de pedir desculpas a ele, por
ter manifestado dúvidas quanto à minha capacidade.
Fui interrompido por imensa gargalhada.
Você está certo, menino! Está certo! — disse ele. —
Prossiga!
Senhor! — (e aquilo era brincadeira de criança para mim!)
— Recentemente, teve algum infortúnio, e levou um golpe
sobre o fígado. Dói, quando ri demais, e o senhor está
pensando que deve tomar alguma erva de tatura, e fazer
massagem forte, enquanto se achar sob sua ação anestésica.
Está pensando que foi o Destino quem decidiu que, de mais
de seis mil ervas, a tatura tinha de estar escassa, neste
momento.
Ele já não ria. Fitava-me com respeito indisfarçado. Eu
aduzi:
Está também indicado em sua aura, Senhor, que em
pouco tempo será o mais importante Abade Médico do
Tibete.
Ele me fitava, agora, com alguma apreensão.
Meu menino, — disse —, você tem grande poder. Irá
longe. Nunca, nunca abuse do poder que tem. Pode ser
perigoso. Agora, vamos falar sobre a aura como iguais. Mas
façamo-lo enquanto tomamos chá.
Ergueu uma sineta de prata e a sacudiu com vigor tal que
receei vê-la voar de sua mão. Em questão de segundos, um
jovem monge entrava apressadamente, trazendo chá e —
oh, alegria das alegrias! — algumas guloseimas da Mãe Índia!
Enquanto ali estávamos sentados, refleti que todos aqueles
Altos Lamas tinham alojamentos confortáveis. Lá embaixo,
via os grandes jardins de Lhasa, o Dodpal e o Khati, que —
assim parecia — se achavam ao alcance de meu braço, se o
estendesse. Mais à esquerda, o Chorten de nossa região, o
Kesar Lhakhang, parecia um sentinela, um tanto do outro
lado da estrada, mas honesto, e podia ver também meu
ponto favorito, o Pargo Kaling (Portão Ocidental).
O que causa a aura, Senhor? — perguntei.
Como o seu respeitado guia, o Lama Mingyar Dondup, já
lhe disse, — principiou ele —, o cérebro recebe mensagens
do Eu Maior. Correntes elétricas são geradas no cérebro.
Toda a Vida é elétrica. A aura constitui uma manifestação de
força elétrica. Ao redor da cabeça da pessoa, como você sabe
muito bem, existe o nimbo. As pinturas antigas sempre
mostram um Santo ou Deus com essa "tigela dourada" ao
redor da parte traseira da cabeça.
Por que tão poucas pessoas vêem a Aura e o Halo? —
perguntei.
Algumas não acreditam na existência da aura, porque elas
não a conseguem ver. Esquecem que também não podem
ver o ar, e sem ar ninguém consegue viver! Algumas...
pouquíssimas... pessoas vêem a aura. Outras, não. Há quem
possa ouvir freqüências mais altas e freqüências mais baixas
do que outros. Isso tem tanto a ver com o grau de
espiritualidade do observador, quanto a capacidade de
caminhar sobre ondas indica uma pessoa necessariamente
espiritual. Dito isso, sorriu para mim e aduziu:
Eu caminhava sobre andas, quase tão bem quanto
você. Agora, meu corpo já não se presta a isso.
Também sorri, pensando que ele precisaria de um tronco de
árvores, aliás, um par, para servir-lhe de andas.
Quando operamos você, para a Abertura do Terceiro
Olho — disse o Grande Lama Médico — pudemos observar
que partes de sua formação lobo frontal eram muito
diferentes das da pessoa comum e, por isso, supusemos que,
fisicamente, você nasceu para ser clarividente e telepata. É
esse um dos motivos pelos quais você recebeu e continuará
a receber este preparo intenso e adiantado.
Fitou-me, com satisfação imensa, e prosseguiu:
Vai ter de ficar aqui, na Escola Médica, por alguns dias.
Temos de examiná-lo completamente para ver como é
possível aumentar sua capacidade, e ensinar-lhe muita coisa.
Houve uma tosse discreta à porta e meu guia, o Lama
Mingyar Dondup, entrou na sala.
Dei um pulo, pondo-me em pé e fazendo uma mesura para
ele — o que também foi feito pelo Grande Chinrobnobo.
Meu guia sorria.
Recebi sua mensagem telepática — disse —, Grande
Lama Médico, de modo que vim com tanta rapidez quanto
pude, pois talvez me desse o prazer de ouvir a confirmação
de minha descoberta, no caso de nosso jovem amigo.
Dito isso, sorriu para mim e sentou-se.
O Grande Lama Chinrobnobo também sorriu e disse:
Respeitado Colega! Prazerosamente me inclino ao seu
conhecimento superior, aceitando este jovem para
investigações. Respeitado Colega, vossos próprios talentos
são numerosos, sois surpreendentemente versátil, mas
nunca encontramos um menino como este.
E então, para meu espanto, eles prorromperam em risada, e
o Lama Chinrobnobo estendeu o braço para alguma parte
atrás de si, dali retirando três jarras de nozes em conserva!
Devo ter ficado com uma cara estúpida, pois ambos se
voltaram para mim e prorromperam em risadas ainda mais
altas.
Lobsang, você não está usando sua capacidade telepá-
tica. Se o fizesse, perceberia que o Reverendo Lama e eu
chegamos, ao pecado de fazer uma aposta. Ficou assentado
entre nós que, se você correspondesse às minhas
afirmações, nesse caso o Reverendo Lama Médico lhe daria
três vidros de nozes em conserva, e se você não
correspondesse ao padrão que eu declarei, eu teria de fazer
uma longa viagem e empreender certos trabalhos médicos
para meu amigo.
Meu guia sorriu novamente para mim e disse:
Naturalmente, vou fazer a viagem para ele, de
qualquer modo, e você irá comigo, mas temos de acertar as
coisas e, agora, a honra ficou satisfeita.
Apontou para as três jarras e disse:
Ponha-as a seu lado, Lobsang. Quando você sair daqui,
quando deixar esta sala, leve-as consigo, pois são o botim do
vencedor e neste caso o vencedor é você.
Eu me sentia realmente aparvalhado. Era claro que não
podia usar os poderes telepáticos naqueles dois Altos Lamas.
O simples pensar em fazer coisas assim causava-me calafrios.
Eu amava meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e respeitava
enormemente o conhecimento e sabedoria do Grande Lama
Médico, Chinrobnobo. Teria sido um insulto, teria sido
muito má educação, na verdade, ouvir o que dissessem,
mesmo telepáticamente. O Lama Chinrobnobo voltou-se
para mim e disse:
Sim, meu menino, seus sentimentos merecem louvor.
Estou realmente satisfeito em cumprimentá-lo, e tê-lo entre
nós. Vamos ajudá-lo com seu desenvolvimento.
Meu guia disse:
Agora, Lobsang, vai ter de ficar neste edifício por uma
semana, talvez, e vai aprender muita coisa sobre a aura. Ah,
sim! — disse, interpretando o olhar que lhe dediquei. — Sei
que você julga saber tudo acerca da aura. Pode vê-la, lê-la,
mas agora tem de aprender as explicações da mesma, tem de
aprender o quanto os demais não vêem. Vou deixá-lo agora,
mas o verei amanhã.
Ergueu-se e, naturalmente, nós fizemos o mesmo. Meu guia
apresentou suas despedidas e depois se retirou daquela
câmara bastante confortável. O Lama Chinrobnobo voltou-
se para mim e disse:
Não fique tão nervoso, Lobsang. Nada vai acontecer a
você. Vamos, apenas, tentar ajudá-lo e acelerar o seu próprio
desenvolvimento. Antes do mais, vamos falar sobre a aura
humana. Você, naturalmente, a vê com clareza, e pode
compreender a aura, mas imagine se não fosse assim
dotado... ponha-se na posição de noventa e nove e nove
décimos, ou mais, da população do mundo.
Voltou a sacudir com violência aquela sineta de prata e mais
uma vez o criado entrou com pressa, trazendo chá e,
naturalmente, as "outras coisas necessárias", que me
agradavam mais quando tomava chá! Pode ser de interesse
mencionar aqui que no Tibete às vezes bebíamos mais de
sessenta chávenas de chá em um dia. O Tibete,
naturalmente, é um país frio, e o chá quente nos aquecia,
não podíamos sair .e comprar bebidas, como os povos do
Ocidente faziam. Éramos limitados ao chá e tsampa, a menos
que alguma pessoa realmente bondosa trouxesse, de país
como a Índia, aquelas coisas das quais não dispúnhamos no
Tibete.
Acomodamo-nos, e o Lama Chinrobnobo disse:
Já falamos sobre a origem da aura. B a força, vital de
um corpo humano. Vamos supor, por momentos, Lobsang,
que você não consegue ver a aura e nada sabe a respeito
dela, porque apenas pensando assim é que lhe posso contar
o que a pessoa comum vê e o que não vê.
Assenti, para indicar que compreendera. Naturalmente,
nascera com capacidade de ver a aura e coisas assim, e tais
poderes tinham sido aumentados pela operação da "Terceira
Visão", e em muitas ocasiões no passado eu fora quase
arrastado a dizer o que via, sem perceber que as demais
pessoas não viam o mesmo. Lembrei-me de ocasião anterior,
quando dissera que uma pessoa ainda estava viva — pessoa
essa que o Velho Tzu e eu tínhamos visto caída, ao lado da
estrada, e Tzu dissera que eu estava inteiramente errado, que
o homem se achava morto. Eu dissera: "Mas, Tzu, o homem
ainda está com as luzes acesas!" Por sorte, como compreendi
mais tarde, a ventania que soprava truncara minhas palavras,
de modo que Tzu não compreendera o significado das
mesmas. Movido por algum impulso, entretanto, ele
examinara o homem caído à beira da estrada, descobrindo
que ainda estava vivo! Mas isto é uma digressão.
O homem ou mulher comum, Lobsang, não pode ver
a aura humana. Alguns, na verdade, sustentam a crença de
que não existe coisa tal como a aura humana. Podiam dizer,
com a mesma facilidade, que não existe coisa tal como o ar,
porque não o podem ver!
O Lama Médico olhou para mim, para ver se eu o
acompanhava, ou se meus pensamentos tomavam o rumo
das nozes em conserva. Satisfeito com meu aspecto de
atenção, assentiu com um movimento da cabeça e
prosseguiu:
Enquanto houver vida em um corpo, haverá também
uma aura que pode ser vista por quem possua o poder, dom
ou capacidade... qualquer que seja o nome. Deixe explicar a
você, Lobsang, que, para a percepção mais clara da aura, a
criatura que esteja sendo vista deve estar inteiramente nua.
Falaremos sobre isso mais tarde. Basta, para as leituras co-
muns, olhar uma pessoa que tenha alguma roupa no corpo,
mas se vai procurar algo relacionado a um motivo médico,
nesse caso a pessoa deve estar completa e inteiramente nua.
Bem, envolvendo inteiramente o corpo e estendendo-se do
mesmo por uma distância de um oitavo de polegada a três ou
quatro polegadas, existe o escudo etérico. É uma bruma azul-
cinzenta, e quase não se pode chamá-la de bruma, pois,
embora pareça assim, dá para ver claramente por ela. Essa
cobertura elétrica é a emanação puramente animal, e
provém de modo particular da vitalidade animal do corpo,
de modo que uma pessoa muito sadia terá um etérico
bastante largo, até mesmo com três ou quatro polegadas de
distância quanto ao corpo. Somente os mais dotados,
Lobsang, percebem a camada seguinte, pois entre o etérico e
a aura propriamente dita existe uma outra faixa, talvez com
três polegadas de espessura, e é preciso ser realmente dotado
e talentoso para ver cores nessa faixa. Confesso que não
consigo ver coisa alguma senão o espaço vazio, nesse ponto.
Eu fiquei .realmente satisfeito com isso, porque podia ver
todas as cores no espaço, e me apressei a dizê-lo.
Sim, sim, Lobsang! Sei que você vê nesse espaço, pois
você é um dos mais talentosos nesse sentido, mas eu estava
fazendo de conta que você não podia ver a aura, de modo
nenhum, porque tenho de lhe explicar tudo isso.
O Lama Médico olhou para mim com ar de reprovação —
reprovação, sem dúvida, por haver eu interrompido o fio de
seus pensamentos. Quando julgou que eu estava
suficientemente submisso para não apresentar outras
interrupções, ele prosseguiu :
Em primeiro lugar, então, existe a calmada etérica.
Após a camada etérica, vem essa zona que tão poucos de nós
conseguem distinguir, a não ser como espaço vazio. Por fora
dela, temos a aura. A aura não depende tanto da vitalidade
•animal quanto da vitalidade espiritual. A aura se compõe de
faixas em rodopio, e estrias de todas as cores do espectro
visível, e isso significa mais cores do que podemos ver com
os olhos físicos, pois a aura é vista por sentidos outros que
não a visão física. Todo órgão no corpo humano emite seu
próprio feixe de luz, seu feixe de raios, que se alteram e
flutuam, conforme a flutuação dos pensamentos da pessoa.
Muitas dessas indicações se acham presentes em grau
acentuado no etérico e no espaço além, e quando o carpo nu
é visto a aura parece ampliar as indicações de saúde ou
doença, sendo claro que os suficientemente clarividentes
podem perceber a saúde ou a doença de uma pessoa.
Eu sabia de tudo a esse respeito, para mim isso era como
brincadeira de criança, e eu estivera praticando coisas assim
desde a operação da Terceira Visão. Tinha conhecimento
dos grupos de Lamas Médicos que se sentavam ao lado de
pessoas doentes e examinavam o corpo nu, para ver como
podiam ajudá-las. Eu julgara que talvez, estivesse sendo
preparado para trabalhar desse modo.
E então! — disse o Lama Médico. — Você está sendo
preparado especialmente, em alto grau, e quando for àquele
grande mundo ocidental, além de nossas fronteiras, julgamos
e esperamos que você consiga conceber um instrumento
pelo qual até mesmo aqueles destituídos de poder oculto
conseguirão ver a aura humana. Os médicos, vendo a aura
humana, e vendo realmente o que está errado em alguma
pessoa, poderão curar-lhe a doença. Como, falaremos mais
tarde. Sei que tudo isto é bastante fatigante, grande parte do
que estou dizendo já é há muito do seu conhecimento, mas
pode ser fatigante porque você é um clarividente nato, e
talvez jamais tenha pensado sobre o mecanismo de
funcionamento de seu dom; isso é uma questão que deve ser
remediada, porque um homem que conheça apenas metade
de um assunto estará preparado pela metade, e será útil
também pela metade. Você, meu amigo, vai ser muito útil,
não resta dúvida! Mas vamos encerrar esta sessão, agora,
Lobsang, e voltar a nossos próprios apartamentos... pois um
deles foi destinado a você... e poderemos descansar e
pensar nessas questões que apenas esboçamos aqui. Nesta
semana, você não precisará freqüentar qualquer culto e isso
por ordem pessoal de Sua Santidade. Toda a sua energia e
devotamento devem ser dirigidos unicamente à
compreensão das matérias que eu e meus colegas vamos
apresentar.
Pos-se em pé, e eu o imitei. Mais uma vez aquela sineta de
prata foi empunhada pela mão poderosa, e sacudida com
tanto vigor que realmente receei que o pobre objeto se
rompesse em pedaços. O monge-criado entrou correndo, e
o Lama Médico Chinrobnobo disse:
Você tratará de Terça-Feira Lobsang Rampa, que é um
hóspede de honra aqui, como sabe. Trate-o como trataria
um monge visitante de alto grau.
Voltou-se para mim, fez uma mesura, eu me apressei a fazer
o mesmo, naturalmente, e logo o criado fez sinal para que eu
o acompanhasse.
Pare! — berrou o Lama Chinrobnobo. — Você esque-
ceu as nozes!
Voltei com pressa, apanhando minhas três preciosas jarras,
sorrindo um tanto embaraçado enquanto o fazia, e logo
segui sem perda de tempo para ir ter com o criado que
esperava.
Passamos por um corredor curto e o criado me levou a um
quarto muito bom, que tinha janelas dando para a barca que
cruzava o Rio Feliz.
Devo cuidar do senhor, Mestre — disse o criado. — A
sineta está aqui, para chamar-me quando quiser.
Voltou-se e saiu. Eu fui para a janela. A vista do Vale
Sagrado me fascinava, pois a barca feita com couros inflados
de iaque acabava de sair da margem e o barqueiro a impelia
com uma vara, pelo rio veloz. Na outra margem, ao que vi,
estavam três ou quatro homens que, por sua indumentária,
deviam ser de alguma importância — impressão que logo se
confirmou, pelos modos obsequiosos do barqueiro. Eu os
observei por alguns minutos e depois, de repente, senti-me
mais cansado do que poderia achar possível. Sentei-me no
chão, sem ao menos me dar ao trabalho de apanhar uma
almofada, e antes de percebê-lo já havia caído de costas,
dormindo.
As horas se arrastaram, ao acompanhamento de estrale-
jantes Rodas de Orações. De repente, sentei-me, ereto,
estremecendo de medo. O Culto! Estava atrasado para o
Culto. Com a cabeça inclinada para um lado, pus-me à
escuta. Em algum lugar, uma voz entoava alguma Litania.
Era o suficiente — dei um salto, pondo-me em pé e corri
para a porta minha conhecida. Não estava lá! Com um baque
que me sacudiu os ossos, colidi com a parede de pedra e caí
de costas. Por momentos, houve um clarão azul-branco
dentro de minha cabeça, que também bateu na pedra, e logo
me recobrei, pondo-me em pé mais uma vez. Em pânico,
por estar atrasado, corri pelo quarto e pareceu-me não
encontrar porta alguma. Pior ainda, não havia qualquer
janela!
Lobsang — disse uma voz, vinda da escuridão —, você
está doente?
A voz do criado me trouxe de volta aos sentidos, como um
balde de água gelada.
Oh — disse eu, timidamente. — Esqueci, julguei estar
atrasado para o Serviço. Esqueci que tinha sido dispensado.
Houve uma risadinha abafada e a voz disse:
Vou acender a lâmpada, pois a noite está muito escura.
Um pequeno brilho veio da porta — que se achava em lugar
dos mais inesperados! — e o criado se adiantou para mim.
Um interlúdio dos mais divertidos, — asseverou. —
Pensei, de início, que um bando de iaques disparara e
entrara aqui.
O sorriso que ostentava retirou toda a ofensa das palavras
que pronunciara. Acomodei-me outra vez, e o criado se
retirou, levando consigo a luz. Na escuridão menor que era a
janela, uma estrela cadente passou, incendiando-se,
incandescente, e sua jornada por aquela distância imensa
chegara ao fim. Eu me voltei para o outro lado e adormeci.
O desjejum foi da mesma tsampa antiga e enfadonha, com
chá. Coisa nutritiva, alimentícia, mas sem proporcionar
qualquer inspiração. Depois, o criado veio e disse:
Se estiver pronto, devo levá-lo a outro lugar.
Pus-me em pé e caminhei com ele, saindo do quarto.
Seguimos por caminho diferente, dessa feita, indo ter a uma
parte do Chakpori que eu não sabia existir. Descendo,
descendo muito, até que eu julgasse estarmos chegando às
entranhas da própria Montanha de Ferro. Já não havia
qualquer lampejo de luz, a não ser das lâmpadas que
carregávamos. Finalmente, o criado parou, apontando para a
frente:
Prossiga... em frente, e entre na sala à esquerda.
Com uma inclinação, voltou-se e regressou por onde
tínhamos vindo. Eu prossegui, imaginando: "O que vem,
agora?" A sala à esquerda estava diante de mim. Entrei e
parei, espantado. A primeira coisa a chamar minha atenção
era uma Roda de Orações, no meio do aposento. Tive
tempo, apenas para vê-la de relance, mas ainda assim
pareceu-me uma Roda de Orações muito estranha, e logo
meu nome foi pronunciado:
Bem, Lobsang! Folgamos em vê-lo aqui.
Olhei, e lá estava o meu guia, o Lama Mingyar Dondup,
tendo sentado a seu lado o Grande Lama Médico
Chinrobnobo, e no outro lado um Lama indiano de aspecto
muito distinto, chamado Marfata. Ele já estudara medicina
ocidental, e na verdade estudara em alguma Universidade
alemã, que creio chamar-se Heidelberg. Era, agora, um
monge budista, um lama, naturalmente, mas "monge" na
acepção genérica.
O indiano me fitou de modo tão inquiridor, tão penetrante,
que julguei estar ele examinando o tecido na parte traseira
de meu manto — pois ele parecia olhar através de meu
corpo.
No entanto, naquela determinada ocasião eu nada tinha de
ruim na consciência, e retribuí esse olhar. Afinal de contas,
por que não olharia para ele? Eu era tão bom quanto ele, pois
estava sendo preparado pelo Lama Mingyar Dondup e pelo
Grande Lama Médico Chinrobnobo. Um sorriso se forçou
em seus lábios rígidos, como se lhe causasse dor intensa. Ele
assentiu, voltando-se para meu guia.
Sim, estou satisfeito em ver que o menino é como
dizem.
Meu guia sorriu — mas não havia coisa alguma forçada nesse
sorriso, que era natural, espontâneo e realmente consolava o
coração..
O Grande Lama Médico disse:
Lobsang, nós o trouxemos aqui, a esta sala secreta,
porque queremos mostrar-lhe coisas, e falar de coisas com
você. O seu guia e eu o examinamos, e estamos realmente
satisfeitos com os seus poderes, poderes esses que vamos
aumentar em intensidade. Nosso colega indiano, Marfata,
não acreditava que tal prodígio existisse no Tibete.
Esperamos que você venha comprovar todas as nossas
afirmações.
Olhei para o indiano, e pensei: "Bem, aí temos um homem
com opinião bastante exaltada, sobre si próprio". Voltei-me
para o Lama Chinrobnobo e disse:
Respeitável Senhor, O Mais Precioso, que teve a bon-
dade de me conceder audiência em uma série de ocasiões,
advertiu-me expressamente contra proporcionar provas,
dizendo que a prova era um simples paliativo para a mente
ociosa. Aqueles que queriam provas não eram capazes de
aceitar a verdade de uma prova, par mais que ficasse
esclarecida.
O Lama Médico Chinrobnobo riu para mim, de modo que
quase receei ser arrastado pela ventania por ele criada, e meu
guia também riu, e ambos fitaram o indiano Marfata, que
continuava sentado, olhando para mim com ar azedo.
Menino! — disse o indiano. — Você fala bem, mas a
fala não prova coisa alguma, como você próprio diz. Agora,
diga-me uma coisa, menino, o que vê em mim?
Senti-me bastante apreensivo, parque grande parte do que
eu via não me agradava.
Ilustre Senhor! — disse eu. — Receio que se disser o
que vejo, vós venhais a interpretá-lo mal e achar que estou
apenas sendo insolente, ao invés de responder à vossa
pergunta.
Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, assentiu em concor-
dância, e pelo rosto do Grande Lama Médico Chinrobnobo
um sorriso enorme e radioso se apresentou, como o
aparecimento da lua cheia.
Diga o que quiser, menino, pois não temos tempo para
conversa fantasiosa aqui, — disse o indiano.
Por alguns momentos, fiquei a olhar o Grande Lama In-
diano, e assim foi até que ele próprio se mexesse um pouco,
diante da intensidade com que eu o fitava, e então declarei:
— Ilustre Senhor! Ordenaste-me que falasse como vejo, e eu
sei que meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e o Grande
Lama Médico Chinrobnobo também querem que eu fale
francamente. Pois bem, isto é o que vejo, e nunca o vi antes,
mas com base em vossa aura e vossos pensamentos, percebo
o seguinte: Sois um homem que viajou muito, e viajou pelos
grandes oceanos do mundo. Fostes àquela pequena ilha cujo
nome não conheço, mas onde todas as pessoas são brancas,
e onde existe uma outra ilha pequena, próxima, como se
fosse um poldro da grande ilha, que seria a égua. Vós vos
antagonizastes muito com essa gente, e eles estavam
realmente ansiosos por adotar alguma medida contra vós,
com relação a algo ligado a...
Hesitei nesse ponto, pois o quadro se mostrava bastante
obscuro, referia-se a coisas sobre as quais eu não tinha o
menor conhecimento. Entretanto, prossegui:
Houve algo ligado a uma cidade indiana, que em vossa
mente presumo ter sido Calcutá, e alguma coisa ligada a um
buraco negro, onde as pessoas daquela ilha foram submetidas
a grandes inconveniências ou embaraços. De algum modo,
julgaram que vós poderíeis ter evitado problemas, ao invés
de causá-los.
O Grande Lama Chinrobnobo riu outra vez, e isso fez bem a
mim, ouvir essa risada, porque indicava que eu estava na
pista certa. Meu guia não deu qualquer indicação, mas o
indiano rosnou.
Eu prossegui:
Depois, fostes para outra terra, e posso ver o nome
"Heidelberg" claramente escrito em vossa mente. Nessa
terra, estudastes medicina de acordo com muitos ritos
bárbaros, de acordo com os quais efetuastes muitos cortes,
cortastes muitas coisas e serrastes outras, e não usastes os
sistemas que temos aqui no Tibete. Com o tempo, recebestes
um pedaço de papel grande, com muitos carimbos e selos.
Também noto, em vossa aura, que sois um homem com
enfermidade.
Respirei fundo, nessa altura, porque não sabia como minhas
palavras seguintes seriam recebidas.
A doença de que sofreis é uma para a qual não existe
cura, em que as células do corpo se tornam selvagens e
crescem como ervas daninhas, mas não de acordo com um
padrão, não de um modo ordenado, mas se espalham,
obstruem e se agarram em órgãos vitais. Senhor! Estais
encerrando vossa própria vida nesta terra, pela natureza de
vossos pensamentos, que não reconhecem qualquer
bondade nas mentes alheias!
Por diversos momentos — a mim pareceram anos! — não
houve som algum, e depois o Grande Lama Médico
Chinrobnobo disse:
Isso é inteiramente correto, Lobsang, inteiramente
correto!
O indiano disse:
O menino provavelmente foi informado de tudo,
antes de vir aqui.
Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, disse:
Ninguém falou a seu respeito. Ao contrário, grande
parte do que ele disse é novidade para nós, pois não investi-
gamos a sua aura, nem sua mente, porque o senhor não nos
convidou a isso. Mas a questão principal que examinamos é
que o menino Terça-Feira Lobsang Rampa possui esses
poderes, e os mesmos vão ser desenvolvidos ainda mais. Não
temos tempo para disputas, nem lugar para elas. Ao invés
disso, há trabalho sério a fazer. Venha! — ordenou, pondo-
se em pé, e levando-me para aquela grande Roda de
Orações.
Examinei o objeto estranho, e vi que não era uma Roda de
Orações, afinal de contas, mas ao invés disso um dispositivo
com cerca de quatro palmos de altura, a quatro palmos do
chão, e uns cinco de largura. Havia duas pequenas janelas de
um lado, e pude notar o que me pareceu ser vidro nas
mesmas. No outro lado da máquina, e fora do centro,
apresentavam-se duas janelas bem maiores. Do lado oposto,
existia uma manivela comprida, mas toda a coisa era um
mistério para mim. Não fazia a menor idéia do que se
tratava. O Grande Lama Médico disse:
Este é um dispositivo, Lobsang, com o qual aqueles
que não são clarividentes podem ver a aura humana. O
Grande Lama Indiano Marfata veio aqui consultar-nos, não
disse qual a natureza de seu mal, afirmando que se
soubéssemos tanto sobre a medicina esotérica, tomaríamos
conhecimento de sua enfermidade, sem que fosse preciso
ele dizer. Trouxemo-lo aqui, para que pudesse ser
examinado com esta máquina. Ele concordou em retirar o
manto, e você o examinará primeiro e depois dirá qual é o
mal de que ele sofre. Depois, utilizaremos esta máquina e
veremos até onde suas descobertas e as da máquina podem
coincidir.
Meu guia indicou um ponto em uma parede escura, e o
indiano seguiu até lá, retirando o manto e demais peças de
roupa, de modo que se apresentou na pele castanha e nua
contra a parede.
Lobsang! Olhe bem para ele, e diga-nos o que vê, —
ordenou meu guia.
Eu não olhei para o indiano, mas um tanto para um dos
lados. Pus os olhos fora de foco, por ser esse o meio mais
fácil de ver a aura. Isto é, não usei a visão binocular normal,
mas ao invés disso, via com cada um dos olhos, em
separado. É realmente difícil explicar, mas consistia em
olhar com um dos olhos para a esquerda e com o outro para
a direita, e isso é simplesmente uma habilidade — um truque
— que pode ser aprendido, a bem dizer, por qualquer
pessoa.
Olhei o indiano, e sua aura brilhava e flutuava. Vi que era
realmente um grande homem, de grande poder intelectual,
mas que, infelizmente, toda sua visão fora amargurada pela
doença misteriosa que tinha. Enquanto o fitava, enunciei
meus pensamentos, falei à medida que vinham a meu
espírito. Não percebia, de modo algum, a atenção com que
meu guia e o Grande Lama Médico ouviam minhas palavras.
Está claro que a doença foi causada por muitas tensões
dentro do corpo. O Grande Lama Indiano esteve insatisfeito
e frustrado, e isso agiu contra a saúde dele, fazendo com que
as células de seu corpo disparassem, fugindo da direção do
Eu Maior. Assim, ele tem essa enfermidade aqui — (eu
apontei para o fígado) — e, por ser homem de
temperamento muito áspero, a doença se agrava a cada vez
que é contrariado. Torna-se claro, pela aura, que se ele se
pusesse mais tranqüilo, mais plácido, como o meu guia, o
Lama Mingyar Dondup, permaneceria mais tempo nesta
terra, e assim conseguiria realizar uma parte maior de sua
tarefa, sem necessidade de ter de voltar.
Mais uma vez reinou o silêncio, e fiquei satisfeito em ver
que o lama indiano assentia, como em acordo completo com
meu diagnóstico. O Lama Médico Chinrobnobo voltou-se
para aquela máquina estranha, e espiou pelas janelinhas.
Meu guia foi ter à manivela, fazendo-a girar com força cada
vez maior, até que uma palavra do Lama Médico
Chinrobnobo o levasse a manter a rotação em velocidade
constante. Por algum tempo, o Lama Chinrobnobo espiou
por aquele dispositivo, depois empertigou-se e, sem dizer
uma palavra, o Lama, Mingyar Dondup tomou seu lugar,
enquanto o Lama Médico Chinrobnobo acionava a
manivela, como meu guia fizera anteriormente. Afinal, eles
terminaram seu exame, e ali ficaram, sendo óbvio que
conversavam por telepatia. Não fiz qualquer tentativa de
interceptar-lhe os pensamentos, porque fazê-lo teria sido
uma grosseria e me teria posto "acima de minha posição".
Finalmente, voltaram-se para o indiano e disseram:
Tudo que Terça-Feira Lobsang Rampa lhe disse é cor-
reto. Examinamos sua aura do modo mais completo, e
acreditamos que tenha câncer do fígado. Também
acreditamos que isso tenha sido causado por certa
irritabilidade. Acreditamos que, se você levar uma vida
tranqüila, ainda terá bom número de anos à frente, anos nos
quais poderá cumprir sua tarefa. Estamos preparados para
interceder em seu favor, de modo que, se você concordar
com nosso plano, terá permissão de ficar aqui em Chakpori.
O indiano debateu o assunto por algum tempo, e depois fez
sinal a Chinrobnobo, com quem deixou a sala. Meu guia, o
Lama Mingyar Dondup, bateu-me no ombro e disse:
Andou bem, Lobsang. Andou bem! Agora, quero mos-
trar-lhe esta máquina.
Seguiu para aquele dispositivo muito estranho, e suspendeu
uma parte da tampa. Toda a coisa se movia, e lá dentro vi
uma série de braços que vinham de um eixo central. Na
extremidade dos braços havia prismas de vidro em
vermelho-rubi, azul, amarelo e branco. À medida que a
manivela era acionada, correias que ligavam a manivela ao
eixo faziam com que os braços girassem, e eu observei que
cada prisma, à sua vez, era posto em alinhamento, o que se
via espiando pelos dois oculares. Meu guia mostrou-me
como a coisa funcionava e depois disse:
Está claro que isto é um dispositivo muito primitivo e
desajeitado. Nós o utilizamos aqui para experiências, na
esperança de que algum dia se possa fazer um modelo
menor. Você jamais terá de utilizá-lo, Lobsang, mas não são
muitos os que possuem o poder de "ver a aura com tanta
clareza. Em alguma ocasião, explicarei o funcionamento
com mais detalhes; mas, resumindo, a máquina se baseia
num princípio heteródino, pelo qual prismas coloridos em
rotação rápida interrompem a linha da visão, destruindo
assim a imagem normal do corpo humano e intensificando
os raios, muito mais fracos, da aura.
Recolocou a tampa, e voltou-se para outro dispositivo em
uma mesa a um canto distante. Seguia para lá, quando o
Lama Médico Chinrobnobo voltou à sala e veio ter conosco.
Ah! — disse, aproximando-se de nós. — Com que,
então, vai examinar o poder de pensamento dele? Ótimo!
Preciso ver isto!
Meu guia apontou para um cilindro curioso, feito, ao que
parecia, de papel bruto.
Isto, Lobsang, é um papel grosso e forte. Você verá
que tem inúmeros buracos, feitos com um instrumento
muito embotado, de modo que o papel está rasgado e deixa
projeções. Depois disso, dobramos esse papel, de modo que
todas as projeções ficassem para fora e a folha, ao invés de
ser lisa, formasse um cilindro. Sobre a parte superior do
cilindro, fixamos uma palha rígida, e num pequeno pedestal
fixamos uma agulha pontiaguda. Assim, temos o cilindro
apoiado num suporte quase destituído de fricção. Agora,
observe!
Sentou-se, e pôs as mãos em ambos os lados do cilindro, sem
tocá-lo, mas deixando perto de uma polegada ou polegada e
meia de espaço entre as mãos e as projeções. Logo o cilindro
começava a girar, e fiquei atônito à medida que aquilo
adquiria velocidade, chegando a girar com rapidez. Meu guia
o deteve, com um toque, e colocou as mãos na direção
oposta, de modo que os dedos — ao invés de apontarem
para longe de seu corpo, como fora antes — apontavam
agora para o mesmo. O cilindro começou a girar, mas na
direção oposta!
O senhor está soprando nele! — disse eu.
Todos dizem isso! — disse o Lama Médico Chinrobno-
bo. — Mas estão completamente errados.
O Grande Lama Médico foi a um recanto, numa parede
distante, e dali voltou trazendo uma chapa de vidro, bastante
grossa, que levou a meu guia, o Lama Mingyar Dondup. Meu
guia deteve o cilindro, para que não girasse, e permaneceu
quieto e parado, enquanto o Grande Lama Médico
Chinrobnobo punha a folha de vidro entre ele e o cilindro
de papel.
Pense em rotação, — disse o Lama Médico.
Meu guia deve tê-lo feito, pois o cilindro começou a girar
outra vez. Era de todo impossível que ele, ou qualquer outra
pessoa, soprasse sobre o cilindro, fazendo-o girar, devido ao
vidro. Ele tornou a deter o cilindro, voltando-se para mim e
dizendo:
Você venha tentar, Lobsang!
Levantou-se do banco, onde eu me sentei.
Coloquei as mãos exatamente como meu guia fizera. O Lama
Médico Chinrobnobo segurava a folha de vidro, à minha
frente, para que minha respiração não influenciasse a
rotação do cilindro. Eu estava ali, sentado, sentindo-me um
imbecil. Ao que parecia, o cilindro achava que eu realmente
o era, pois nada aconteceu.
Pense em fazê-lo girar, Lobsang! — disse meu guia.
Eu pensei, e imediatamente a coisa começou a girar. Por
momentos, tive vontade de largar tudo e sair correndo —
julgando que aquilo era enfeitiçado, mas logo a razão (de
certo tipo!) prevaleceu, e permaneci sentado.
Este dispositivo, Lobsang, — disse meu guia —, gira
pela força da aura humana. Você pensa em rodá-lo, e sua
aura põe um rodopio na coisa, que a faz girar. Você pode
estar interessado em saber que um dispositivo assim já foi
experimentado em todos os principais países do mundo.
Todos os maiores cientistas já procuraram explicar o
funcionamento desta coisa, mas a gente ocidental,
naturalmente, não pode acreditar em força etérica, de modo
que inventam explicações ainda mais estranhas do que a
força verdadeira do etérico!
O Grande Lama Médico disse:
Estou com muita fome, Mingyar Dondup. Acho ter
chegado o momento de voltarmos a nossos quartos, para
descansar e comer. Não devemos sobrecarregar as
capacidades do rapaz, nem sua resistência, pois ele
enfrentará bastante disso no futuro.
Nós nos voltamos, e as luzes se apagaram naquela sala.
Seguimos pelo corredor de pedra, para o edifício principal
do Chakpori. Eu logo me encontrei em uma sala com meu
guia, o Lama Mingyar Dondup. Logo — pensando feliz! —
consumia alimento, e me sentia muito melhor.
Coma bem, Lobsang — disse meu guia — porque mais
tarde, hoje, voltaremos a vê-lo, para falar sobre outros
assuntos.
Por uma hora, aproximadamente, descansei em meu quarto
espiando pela janela, parque tinha uma fraqueza: sempre
gostei de olhar de lugares altos, observando o mundo a se
mover lá embaixo. Gostava muitíssimo de observar os
comerciantes, seguindo em marcha lenta pelo Portão
Ocidental, indicando a cada passo que davam o deleite por
terem alcançado o final de uma viagem longa e árdua, pelos
altos passos das montanhas. No passado, os comerciantes
haviam-me falado da visão maravilhosa que se tinha, de
determinado lugar num passo alto onde, quando se vinha da
fronteira indiana, podia-se espiar por uma rachadura das
montanhas, e ver a Cidade Sagrada, com seus telhados
refulgindo em ouro e, pelo lado das montanhas, as paredes
brancas do "Monte de Arroz", semelhante realmente a um
monte de arroz, estendendo-se em profusão generosa pelas
encostas montanhosas. Eu adorava observar o barqueiro que
atravessava o Rio Feliz, e sempre estava à espera para ver um
furo surgir em seu barco de peles infladas. Ansiava por vê-lo
afundar gradualmente, desaparecer de vista, até que apenas a
cabeça do homem estivesse acima da água. Nunca tive tanta
sorte, porém, e o barqueiro sempre chegou à outra margem,
recebendo sua carga e regressando.
Não tardou que eu estivesse outra vez naquela sala profunda,
com meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e o Grande Lama
Médico Chinrobnobo.
Lobsang! — disse o Grande Lama Médico. — Quando for
examinar um paciente ou uma paciente, para poder ajudá-lo
ou ajudá-la, você precisa fazer com que a pessoa fique
inteiramente sem roupa.
Honrado Lama Médico! — disse eu, um tanto confuso. —
Não vejo motivo pelo qual eu deva fazer, uma pessoa tirar a
roupa, neste clima frio, pois posso ver-lhe a aura
perfeitamente, sem qualquer necessidade, em absoluto, de
retirar uma só peça, e, oh! Respeitável Lama Médico! Como
seria possível eu pedir a uma mulher que tirasse a roupa?
Meus olhos se voltaram para cima, no horror causado pelo
pensamento. Devo ter formado uma figura bastante cômica,
porque tanto meu guia quanto o Lama Médico explodiram
em gargalhadas. Sentaram-se, enquanto davam vazão à sua
hilaridade. Fiquei à frente deles, sentindo-me
formidavelmente imbecil mas, na verdade, minha
perplexidade era completa quanto a essas coisas. Eu podia
ver uma aura perfeitamente — sem problema algum — e
não viá motivo para afastar-me do que era minha própria
prática normal.
Lobsang! — disse o Lama Médico. — Você é um
clarividente muito dotado, mas existem coisas que você não
vê ainda. Você nos deu uma demonstração notável da
habilidade que tem em ver a aura humana, mas não teria
percebido a enfermidade do fígado no lama indiano Marfata,
se ele não houvesse retirado a roupa.
Refleti sobre isso, e quando pensei bem tive de reconhecer
que era verdade; ao olhar para o lama indiano, enquanto o
mesmo estivera com o manto, embora visse muita coisa a
respeito de seu caráter e traços básicos, eu não percebera o
mal no fígado.
Está inteiramente correto, Honrado Lama Médico, —
confirmei —, mas eu gostaria de receber mais algum preparo
do senhor, nessa questão.
Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, olhou para mim e disse:
Quando você olha para a aura de uma pessoa, quer ver
a aura dela, não está preocupado com os pensamentos da
ovelha, da qual veio a lã que foi transformada em um manto.
Todas as auras são influenciadas por aquilo que interfere
com seus raios diretos. Aqui temos uma lâmina de vidro, e
se eu soprar sobre ela, isso afetará o que você pode ver
através do vidro. Da mesma forma, embora este vidro seja
transparente, na verdade êle altera a luz, ou melhor, a cor da
luz, que você veria quando espiando por ele. Do mesmo
modo, se olhar por um pedaço de vidro colorido, todas as
vibrações que recebe de um objeto são alteradas em
intensidade pela ação do vidro colorido. Assim é que uma
pessoa cujo corpo esteja vestido, ou tenha ornamentos de
qualquer tipo, fica com a aura modificada, de acordo com o
teor etérico da roupa ou ornamento.
Pensei sobre isso, e tive de concordar com o que o meu guia
afirmava. E ele prosseguiu:
Uma outra questão é que cada órgão do corpo projeta
seu próprio quadro... seu próprio estado de saúde ou
doença... no etérico, e a aura, quando descoberta e livre da
influência das roupas, amplia e intensifica a impressão que
recebemos. Assim, é fora de dúvida que, se você vai ajudar
uma pessoa, para saber se está com saúde ou doente, terá de
examiná-la sem as roupas.
Sorriu para mim, e aduziu:
E se estiver fazendo frio, Lobsang, ora! Você terá de
levá-la para um lugar mais quente!
Honrado Lama — disse eu —, faz algum tempo que o
senhor me disse que estava trabalhando em um dispositivo
que permitiria a cura de doença, por meio da aura.
Isso é inteiramente correto, Lobsang — disse meu guia —
, a doença é apenas uma dissonância nas vibrações do corpo.
Um órgão tem sua cadência de vibração molecular
perturbada, sendo assim considerado doente. Se pudéssemos
realmente ver o quanto a vibração de um órgão se afasta do
normal, nesse caso, restaurando a cadência de vibração à que
devia ser, teremos efetuado uma cura. No caso de uma
doença mental, o cérebro geralmente recebe mensagens do
Eu Maior, que não consegue interpretar corretamente, e
assim os atos resultantes são aqueles que se afastam do que é
aceito como atos normais de um ser humano. Desse modo,
se o ser humano não conseguir raciocinar ou agir de modo
normal, diz-se que apresenta alguma enfermidade mental.
Medindo a discrepância... ou subestímulo... podemos
ajudar uma pessoa a recuperar o equilíbrio normal. As
vibrações podem estar mais baixas do que o normal,
resultando em subestímulo, ou mais altas do que o normal, o
que apresentaria efeito semelhante àquele de uma febre
cerebral. De modo perfeitamente definido, a doença pode
ser curada pela intervenção através da aura.
O Grande Lama Médico interveio nesse ponto, dizendo:
Por falar nisso, Respeitável Colega, o Lama Marfata esteve
falando sobre essa questão comigo, e disse que em certos
lugares da índia... em certas lamaserias isoladas... eles
estavam fazendo experiências com um dispositivo de
voltagem muito alta, conhecido como... — ele hesitou, e
disse: — É um gerador de Graaf. — Mostrava-se um tanto
incerto quanto aos termos, mas fazia um esforço realmente
viril para nos dar a informação exata.
Esse gerador, ao que parece, desenvolve uma voltagem
extraordinariamente alta, com corrente extraordinariamente
baixa, e aplicado de certo modo ao corpo, faz com que a
intensidade da aura aumente muitíssimas vezes, de modo
que até o não-cterividente possa observá-la com clareza.
Também estou informado de que fotografias foram tiradas de
uma aura humana, sob tais condições.
Meu guia assentiu, com ar solene, e disse:
Sim, também é possível ver a aura humana por meio
de um corante especial, um líquido que fica imprensado
entre duas lâminas de vidro. Providenciando-se iluminação
e fundo adequados, e vendo o corpo humano nu por essa
cortina, muitas pessoas podem realmente ver a aura. Eu
intervim, dizendo:
Mas, Honrados Senhores! Por que as pessoas têm de
utilizar todos esses truques? Eu posso ver a aura! Por que elas
não podem?
Meus dois mentores voltaram a rir, e dessa feita não acharam
necessário explicar a diferença entre o preparo como o que
eu tinha e o preparo do homem ou mulher comuns.
O Lama Médico disse:
Agora, sondamos no escuro, procuramos curar nossos
pacientes, usamos regras empíricas, tais como ervas e pílulas
e poções. Somos como homens cegos, procurando um
alfinete que caiu ao chão. Gostaria de ver um dispositivo
pequeno, de modo que qualquer pessoa não-clarividente
pudesse espiar por ele e ver a aura humana, ver todos os
defeitos da aura humana e, ao vê-los, se capacitasse a curar a
discrepância ou deficiência que foi realmente a causa da
doença.
Durante o resto daquela semana, mostraram-me coisas,
usando o hipnotismo e a telepatia, e meus poderes
aumentaram e se intensificaram; tivemos conversas
sucessivas sobre os melhores meios de ver a aura e
aperfeiçoar u'a máquina que também visse a aura e então, na
última noite daquela semana, fui para meu pequeno quarto
na Lamaseria de Chakpori, espiando pela janela e pensando
no dia seguinte, quando voltaria àquele dormitório maior,
onde dormia em companhia de tantos outros.
As luzes no Vale cintilavam. Os últimos raios do sol, .
vindos sobre a orla rochosa de nosso Vale, faziam tremeluzir
os telhados dourados, como se fossem dedos faiscantes a
emitir chuveiros de luz dourada, e ao fazê-lo dividiam a luz
em cores iridiscentes, que eram do espectro do próprio
ouro. Azuis, amarelos, vermelhos e até alguns verdes,
lutavam por atrair o olhar, tornando-se cada vez mais fracos,
à medida que a luz esmaecia. Logo o próprio Vale se achava
envolto em veludo escuro, um azul-violeta escuro ou
purpúreo, que quase podia ser apalpado. Por minha janela
aberta, eu sentia o odor dos salgueiros, e o odor das plantas
no jardim tão lá embaixo. Uma brisa vadia trazia odores
ainda mais fortes às minhas narinas, o pólen e as flores em
botão.
Os últimos raios do sol desapareceram completamente, e
não mais aqueles dedos de luz vinham sondar a orla de
nosso Vale fechado por rochas. Ao invés de fazê-lo,
atiravam-se ao céu que eseurecia, refletindo-se sobre nuvens
baixas, exibindo vermelho e azul. De modo gradual, a noite
se tornou mais escura, à medida que o sol se punha mais e
mais, para além de nosso mundo. Logo surgiam pontos
brilhantes de luz no céu purpúreo escuro, a luz de Saturno,
de Vénus, de Marte. Depois veio a luz da Lua, corcovada no
céu, com todas as marcas de bexiga bem claras. Pela face da
lua passou uma nuvem leve e esgarçada. Fazia-me pensar em
uma mulher, que se encobria com alguma peça de
indumentária, depois de ter sido examinada mediante a aura.
Eu me voltei, decidido em cada fibra do meu ser em que
faria tudo para aumentar o conhecimento da aura humana, e
ajudaria aqueles que saíssem pelo grande mundo a fora para
levar ajuda e paz a milhões de sofredores. Deitei-me no chão
de pedra, e quase no mesmo instante em que minha cabeça
tocou no manto dobrado adormeci, e não percebi mais nada.

9

O silencio era profundo, intenso o ar de concentração. Com
intervalos longos, vinha um farfalhar quase inaudível, que
logo desaparecia outra vez, refazendo-se a tranqüilidade
tumular. Olhei ao redor, vendo as longas filas de figuras
imóveis e em mantos, sentadas no chão e de costas
aprumadas. Eram homens atentes, homens que se
concentravam nos feitos do mundo exterior. Alguns, na
verdade, estavam mais preocupados com os feitos do mundo
fora deste! Meu olhar percorreu o lugar, parando primeiro
em uma figura augusta, e depois em outra. Ali estava um
grande abade, vindo de um distrito distante. Lá estava um
lama, em roupa pobre e humilde, homem que descera das
montanhas. Sem pensar, movi uma das mesas compridas e
baixas, de modo a ter mais espaço. O silêncio era opressivo,
um silêncio vivo, silêncio que não podia haver, corn tantos
homens ali presentes.
Crash! O silêncio foi rude e ruidosamente estraçalhado. Eu
dei um salto de um palmo acima do chão, em posição sen-
tada, e de algum modo consegui voltar-me, ao mesmo
tempo. Estendido por completo no chão, ainda aturdido,
estava um mensageiro da Biblioteca, com livros de capa de
madeira ainda fazendo ruído a, seu redor. Ao entrar,
sobrecarregado, não vira a mesa que eu movera. Esta, tendo
apenas uns vinte e cinco centímetros de altura acima do
chão, servira para fazê-lo tropeçar. Agora, estava por cima
dele.
Mãos solícitas recolheram com gentileza os livros, tirando-
lhes a poeira. Os livros são objetos reverenciados no Tibete.
Eles contêm conhecimento, e jamais devem ser maltratados.
Ora, a preocupação tinha por objeto os livros e não o
homem. Eu recolhi a mesa, afastando-a do caminho.
Maravilha das maravilhas, ninguém achou que eu devia ser
incriminado, de modo algum. O mensageiro, esfregando a
cabeça, procurava compreender o que acontecera. Eu não
estivera por perto; como era óbvio, não podia tê-ío feito
tropeçar. Balançando a cabeça em espanto, ele se voltou e
saiu. Logo a calma era restaurada, e os Lamas voltaram à sua
leitura na Biblioteca.
Tendo danificado minha parte superior e a inferior (falando-
se literalmente!) enquanto trabalhava nas cozinhas, eu fora
permanentemente banido de lá. Agora, como trabalho
"braçal" eu tinha de ir à grande Biblioteca e espanar os
entalhes nas capas de livros e, de modo geral, manter limpo
o lugar. Os livros tibetanos são grandes e pesados. As capas
de madeira apresentam entalhes intricados, com o título e
muitas vezes também uma ilustração. Era um trabalho
pesado, o de erguer os livros das prateleiras, levá-los em
silêncio para minha mesa, espaná-los, e depois devolver cada
qual a seu lugar. O Bibliotecário mostrava-se muito exigente,
examinando cuidadosamente cada livro, para ver se
realmente estava limpo. Havia capas de madeira que
abrigavam revistas e jornais de países fora de nossas
fronteiras. Eu gostava, de modo particular, de examiná-los,
embora não conseguisse ler uma só palavra. Muitos desses
jornais estrangeiros, publicados meses antes, apresentavam
figuras, e eu as examinava sempre quando possível. Quanto
mais o Bibliotecário procurasse impedi-lo, tanto mais eu me
afundava nos livros proibidos, sempre que sua atenção se
desviava de mim.
As ilustrações de veículos com rodas me fascinavam. Não
havia, naturalmente, veículos de rodas em todo o Tibete, e
nossas Profecias indicavam com a maior clareza que, com a
chegada das rodas ao Tibete, haveria o "início do fim". O
Tibete seria mais tarde invadido por uma força do mal, que
se estendia pelo mundo como uma enorme chaga cancerosa.
Esperávamos que, a despeito da Profecia, as nações maiores
e mais poderosas não se interessariam por nosso pequeno
país, que não tinha intenção guerreira , nenhum desígnio ou
intenção quanto ao espaço de vida dos demais povos.
Eu examinava as ilustrações e fiquei fascinado em uma
revista (naturalmente não sei qual o seu nome) na qual vi
algumas fotos — toda uma série delas — mostrando como
esta revista era impressa. Havia máquinas enormes, com
grandes rolos e enormes rodas dentadas. Os homens, nas
figuras, trabalhavam como maníacos, e eu achei que isso era
muito diferente do que acontecia no Tibete. Ali,
trabalhávamos com o orgulho do artesanato, com o orgulho
de executar bem uma tarefa. Nenhuma idéia comercial
entrava no espírito do artesão do Tibete. Voltei-me e
examinei novamente aquelas páginas, e então pensei sobre
como estávamos fazendo as coisas.
Lá na Aldeia de Shö os livros estavam sendo impressos.
Monges-entalhadores habilidosos trabalhavam com boas
madeiras, esculpindo caracteres tibetanos, esculpindo-os
com a lentidão que garantia a precisão absoluta, a fidelidade
absoluta aos menores detalhes. Após os entalhadores
terminarem cada tábua de impressão, outros a levariam,
dando-lhe polimento, de modo que nenhuma falha ou
aspereza ficasse sobre a madeira, após o que a tábua seria
levada para exame de outros, que lhe conferiam a precisão
com relação ao texto, pois nenhum erro pôde jamais ocorrer
em um livro tibetano. O tempo não importava, mas a
precisão sim.
Com as tábuas todas entalhadas, cuidadosamente polidas e
inspecionadas à cata de erros ou falhas, elas passariam aos
monges-impressores. Estes punham a tábua voltada para
cima em uma bancada, e em seguida a tinta seria passada
sobre as palavras em relevo, entalhadas. As palavras,
naturalmente, eram todas entalhadas ao inverso, de modo
que, quando impressas, apareciam do modo certo. Tendo a
tábua tintada e cuidadosamente examinada mais uma vez,
para ter a certeza de que nenhuma parte ficara sem tinta,
uma folha de papel duro, semelhante ao papiro do Egito,
seria rapidamente estendida sobre o tipo, com sua superfície
com tinta. Uma pressão suave e em rolo seria aplicada à
parte de trás da folha de papel, e a mesma tirada da
superfície impressora, com movimento rápido. Monges-
inspetores imediatamente a tomavam, examinando-a com a
maior cautela, à procura de qualquer defeito — qualquer
falha — e se a houvesse, o papel não seria rasgado ou
queimado, mas empilhado e amarrado.
A palavra impressa, no Tibete, é tida como semi-sagrada,
sendo considerado um insulto ao conhecimento a destruição
ou mutilação de papel que tenha palavras de erudição ou
religiosas. Assim é que, com o correr do tempo o Tibete
acumulou pilha após pilha, fardo após fardo, de folhas
ligeiramente imperfeitas.
Se a folha de papel fosse considerada satisfatoriamente
impressa, os impressores recebiam ordem para continuar, e
produziam diversas folhas, cada uma das quais era tão
cuidadosamente examinada à procura de falhas quanto a
primeira. Muitas vezes observei esses impressores a
trabalhar, e no curso de meus estudos tive de empreender
esse trabalho também. Eu esculpia as palavras impressas,
invertidas, dava polimento aos entalhes e, sob supervisão
meticulosa, passava a tinta e mais tarde imprimia livros.
Os livros tibetanos não são encadernados como os ociden-
tais. Um livro tibetano é coisa comprida, ou talvez fosse
melhor dizer que se trata de coisa larga e muito curta,
porque uma linha tibetana se estende por diversos palmos,
mas a página pode ter apenas um palmo de altura. Todas as
foihas contendo o necessário seriam cuidadosamente
estendidas, e no correr do tempo — não havia pressa —
secariam. Quando já havia decorrido tempo mais do que
suficiente para secar, os livros eram reunidos. Em primeiro
lugar viria uma tábua de base, à qual eram ligadas duas fitas, e
depois, sobre essa tábua de base, seriam reunidas as páginas
do livro em sua ordem correta, e quando cada livro assim
estivesse montado, sobre a pilha de páginas impressas seria
colocada outra tábua pesada que formava sua capa. Essa
tábua pesada ostentaria entalhes intricados, mostrando talvez
cenas do livro e, naturalmente, dando-lhe o título. As duas
fitas vindas da tábua de baixo, a essa altura, eram trazidas e
amarradas na de cima, e uma pressão considerável era feita,
de modo que todas as folhas fossem comprimidas em uma
massa compacta. Os livros de valor especial eram, em
seguida, cuidadosamente envoltos em seda, e o envoltório
selado, de modo que apenas aqueles com autoridade
adequada pudessem abri-lo e perturbar a paz desse livro tão
cuidadosamente impresso!
A mim parecia que muitas dessas ilustrações ocidentais
representavam mulheres com notável falta de roupa; e tal
constatação me levava a crer que tais países deviam ser
muito quentes; pois, de outra forma, como poderiam as
mulheres andar tão descompostas? Em algumas das
ilustrações havia pessoas deitadas, obviamente mortas, e de
pé sobre elas estaria, talvez, um homem de aspecto vilanaz,
tendo um pedaço de cano de metal em uma das mãos, do
qual saía fumaça. Jamais pude compreender o intuito
daquilo, pois — a julgar por minhas próprias impressões — o
povo no mundo ocidental tem seu maior passatempo em
andar de um lado para outro, matando-se mutuamente, após
o que homens grandes, com roupas estranhas, chegavam e
punham coisas de metal nas mãos ou punhos da pessoa que
estava com o cano fumegante.
As damas sub-trajadas não me perturbavam, de modo algum,
e tampouco despertavam qualquer interesse particular em
mim, pois os budistas e hindus e, na verdade, todos os povos
do Oriente sabem muito bem que o sexo é necessário à vida
humana. Sabia-se que a experiência sexual talvez fosse a
mais elevada forma de êxtase que o ser humano podia
experimentar, enquanto ainda dotado de carne. Por esse
motivo, muitas de nossas pinturas religiosas mostravam um
homem e uma mulher — geralmente referidos como Deus e
Deusa — no mais apertado dos abraços apertados. Devido a
que os fatos da vida e do nascimento fossem tão bem
conhecidos, não havia qualquer necessidade especial de
disfarçar o que eram fatos e, às vezes, um detalhe se
mostrava quase fotográfico. Para nós, isso não era
pornográfico, de modo algum, não era indecente, em abso-
luto, sendo apenas o método mais conveniente de indicar
que, com a união do macho e da fêmea, certas sensações
específicas eram geradas, sendo explicado que, com a união
das almas, um prazer muito maior poderia ser
experimentado, mas que isso, naturalmente, não podia ser
neste mundo.
Nas conversas com os comerciantes, na cidade de Lhasa, na
Aldeia de Shö, e aqueles que descansavam ao lado da estrada
no Portão Ocidental, recolhi a informação notável de que no
mundo ocidental era considerado indecente expor o corpo
ao olhar de outra pessoa. Eu não podia compreender o
motivo para isso, pois o fato mais elementar da vida era que
tinha de haver dois sexos. Recordava-me de uma conversa
com um velho comerciante, que freqüentava a estrada entre
Kalimpong, na Índia, e Lhasa. Por algum tempo, procurei
encontrá-lo no Portão Ocidental, e saudá-lo a cada nova
visita bem sucedida à nossa terra. Muitas vezes, ficávamos
por ali, por bastante tempo. Eu lhe dava notícias a respeito
de Lhasa e ele me dava notícias a respeito do grande mundo
lá fora. Muitas vezes, também, ele trazia livros e revistas para
meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e me cabia então a
tarefa agradável de entregá-los. Aquele comerciante; certa
feita, me disse:
— Eu lhe contei muita coisa a respeito da gente do Oci-
dente, mas ainda não a compreendo, e há uma das coisas
que eles dizem, de modo particular, que não faz sentido
algum para mim. É a seguinte: o Homem é feito à imagem
de Deus. É o que dizem, mas ainda assim têm medo de
mostrar o corpo, que afirmam ser feito à imagem de Deus.
Quererá isso dizer, então, que eles sentem vergonha da
forma de Deus?
Fitava-me com ar indagador e eu, naturalmente, não sabia o
que dizer, simplesmente não podia responder à pergunta. O
Homem é feito à imagem de Deus. Portanto, se Deus é o
supremo na perfeição — como devia acontecer — não devia
haver vergonha na exposição de urna imagem de Deus. Nós,
chamados pagãos, não sentíamos vergonha de nossos
corpos. Sabíamos que sem o sexo não havia continuação da
raça. Sabíamos que o sexo, em ocasiões apropriadas, e em
ambientes apropriados, naturalmente, aumentava a
espiritualidade de um homem e de uma mulher.
Fiquei também atônito, quando soube que alguns homens e
mulheres que haviam estado casados, talvez por bom
número de anos, jamais tinham visto, sem roupas, o corpo
um do outro. Quando fui informado de que eles "se
amavam" apenas com as janelas fechadas e a luz apagada,
lembro-me de que julguei ter achado que meu informante
me tomava por um pateta do interior, realmente imbecil
demais para saber o que se passava no mundo, e depois de
uma sessão assim resolvi que na primeira oportunidade
perguntaria a meu guia, o Lama Mingyar Dondup, a respeito
do sexo no mundo ocidental. Afastei-me do Portão
Ocidental, e segui correndo pela estrada, indo ter à trilha
estreita e perigosa que nós, os meninos de Chakpori,
utilizávamos por gosto, ao invés de usarmos a trilha comum.
Ela teria causado medo a um homem das montanhas;
freqüentemente, assustava-nos também, mas era uma
questão de honra não utilizar a outra trilha, a menos que
estivéssemos em companhia dos que nos eram superiores e,
presumivelmente, melhores do que nós. A maneira de subir
acarretava a escalada, utilizando-se as mãos, em "dentes"
escarpados de rocha, pendurados precariamente em certos
pontos expostos e, por todo o tempo, fazendo aquelas coisas
que nenhuma pessoa supostamente lúcida faria, ainda que
para isso recebesse uma fortuna. Por fim, cheguei ao cimo e
entrei no Chakpori, passando por um caminho que também
era conhecido nosso e que teria feito os Inspetores terem
ataques de raiva se soubessem que o utilizávamos. Assim,
finalmente, eu me encontrava dentro do Pátio Interno,
muito mais esgotado do que se tivesse vindo pela trilha
comum, mas, ao menos, a honra ficara satisfeita. Eu subira
um pouco mais depressa do que alguns meninos conseguiam
descer.
Sacudi as pedrinhas e poeira do meu manto, esvaziei a tigela,
onde juntara numerosas plantas pequenas, e achando que
estava bastante apresentável, segui à procura de meu guia, o
Lama Mingyar Dondup. Ao dar uma volta, vi que ele se
afastava de mim, de modo que o chamei:
Upa! Honrado Lama!
Ele parou, voltou-se e caminhou para mim, coisa que
possivelmente nenhum outro homem em Chakpori teria
feito, pois ele tratava todos os homens e meninos como seus
iguais, e costumava dizer que não é a forma externa, não é o
corpo que se esteja usando no momento, mas o que há por
dentro — o que controla o corpo — o que importa. O meu
próprio guia era uma Grande Encarnação, que facilmente
fora Reconhecida, quando regressara ao corpo. Eu recebia
uma lição constante da humildade daquele grande homem, e
sempre levava em consideração os sentimentos daqueles que
não eram apenas "não tão grandes", mas de alguns que eram
— para dizer a coisa com clareza — dos mais baixos.
Pois, então, Lobsang! — disse meu guia. — Vi você
subindo por aquela trilha proibida e, se eu fosse um
Inspetor, você estaria ardendo num bom número de lugares
do corpo, neste momento; ficaria muito satisfeito em não ter
de sentar-se, por muitas horas.
Dito isso, riu e prosseguiu:
No entanto, eu mesmo costumava fazer coisa bem
parecida e ainda sinto o que possivelmente é uma emoção
proibida, ao ver outros fazendo o que não posso mais fazer
eu próprio. Bem, para que essa pressa, finalmente?
Eu o fitei, dizendo:
Honrado Lama, eu soube de coisas horríveis a respeito da
gente do mundo ocidental, e minha mente está em agitação
constante, porque; não consigo saber se estão zombando de
mim... se estão fazendo com que me torne um imbecil ainda
maior do que já sou... ou se as maravilhas que me foram
descritas são realmente um fato.
Venha comigo, Lobsang — disse meu guia. — Eu vou
para meu quarto, ia meditar, mas vamos falar sobre essas
coisas. A meditação pode esperar.
Voltamo-nos, e seguimos lado a lado para o quarto do Lama
Mingyar Dondup — aquele que tinha visão por cima do
Parque das Jóias. Entrei ali em suas pegadas e, ao invés de
sentar-se imediatamente, ele tocou a sineta para que o criado
trouxesse chá. Depois, tendo-me a seu lado, foi até a janela,
espiando para aquela faixa encantadora de terra. Terra que
era um dos mais belos lugares de todo o mundo, talvez. Lá
embaixo, ligeiramente à esquerda, encontrava-se o jardim
fértil e arbóreo, conhecido como Norbu Linga, o Parque das
Jóias. A bela água clara cintilava entre as árvores, e o
pequeno Templo de O Mais Precioso ali se achava em uma
ilha, refulgindo à luz do sol. Alguém seguia pelo caminho de
pedras — uma trilha na superfície da água, formada de
pedras lisas, com espaços vazios entre si, de modo que a
água pudesse passar livremente e os peixes não
encontrassem obstáculos. Olhei cuidadosamente e julguei
poder distinguir um dos altos membros do Governo.
Sim, Lobsang, ele vai ver O Mais Precioso — disse o
meu guia, em resposta ao pensamento que eu não enunciara
em palavras.
Juntos, observamos por algum tempo, pois era agradável
estar ali, vendo aquele parque com o Rio Feliz cintilando
mais além, e dançando, como se tomado pela alegria de um
belo dia. Também podíamos ver a Barca — um de meus
pontos favoritos, fonte interminável de prazer e espanto, ao
ver o barqueiro levar a embarcação feita de peles infladas,
atravessando alegremente para a outra margem.
Abaixo de nós, entre nó e o Norbu Linga, peregrinos
caminhavam devagar pela estrada Lingkor. Prosseguiam,
quase sem olharem para nossa própria Chakpori, mas em
vigilância constante, para ver se conseguiam observar
alguma coisa de interesse no Parque das Jóias, pois devia ser
conhecimento comum entre os peregrinos sempre alertas
que O Mais Precioso estaria no Norbu Linga. Eu também via
o Kashya Linga, um parque pequeno, com bom número de
árvores, que ficava ao lado da Estrada da Barca. Havia uma
pequena estrada que dava da Estrada de Lingkor para o Kyi
Chu, sendo usada principalmente por viajantes que
quisessem usar a Barca. Alguns, entretanto, a utilizavam para
chegar ao Jardim dos Lamas, no outro lado da Estrada da
Barca.
O criado trouxe chá, bem como uma comida saborosa. Meu
guia, o Lama Mirigyar Dondup, disse:
Venha, Lobsang, vamos quebrar nosso jejum, pois ho-
mens que vão conversar não devem estar vazios por dentro,
a não ser que a cabeça também o esteja!
Sentou-se sobre uma das almofadas duras que nós, no Ti-
bete, utilizamos ao invés de cadeiras, pois sentamos no chão
com as pernas cruzadas. Assim, fez-me um gesto para que
seguisse seu exemplo, e eu obedeci com alegria, porque a
visão de comida sempre servia para me apressar. Comemos
em silencio relativo. No Tibete, especialmente entre os
monges, não era considerado decente falar ou fazer ruído
enquanto a comida estivesse à frente. Os monges sozinhos
comiam em silêncio, mas se estivessem em uma
congregação de número maior, um Leitor faria a leitura, em
voz alta, dos Livros Sagrados. Esse Leitor situar-se-ia num
lugar alto, onde, além de ver o livro, pudesse ver a reunião
de monges, e ver imediatamente aqueles que se achavam tão
dedicados à comida que não tinham tempo para ouvir-lhe as
palavras. Quando se formava uma congregação de monges,
nesse caso também os Inspetores estariam presentes para
impedir que houvesse qualquer faia, a não ser a do Mange-
Leitor. Nós, entretanto, estávamos sós; e trocamos alguns
comentários sem importância, sabendo que muitos dos
antigos costumes, tais como permanecer em silêncio às
refeições, eram bons para a disciplina para quem estivesse
no meio de uma aglomeração de pessoas, mas não eram
necessários para dois homens como nós. Assim, em minha
presunção, eu me classificava como associado de um dos
homens realmente grandes de meu país.
Bem, Lobsang, — disse meu guia, quando havíamos
terminado. — Fale-me do que tanto o incomoda.
Honrado Lama! — disse eu, com alguma agitação. — Um
comerciante que passou por aqui, e com quem andei falando
sobre questões de alguma importância, no Portão Ocidental,
deu-me algumas informações notáveis acerca das pessoas do
Ocidente. Disse que elas consideram nossas pinturas re-
ligiosas como coisas obscenas. Contou-me algumas coisas
inacreditáveis a respeito dos hábitos sexuais delas, e eu ainda
creio "que ele estivesse a me fazer de tolo.
Meu guia fitou-me, pensou por momento, e depois disse:
Entrar nessa questão, Lobsang, tomaria mais de uma
sessão. Temos de ir a nosso Culto, e o tempo se avizinha
para isso. Vamos debater apenas um dos aspectos disso, está
bem?
Eu aceitei, ansioso, porque estava realmente intrigadíssimo
quanto a todo o assunto. Meu guia disse, então:
Tudo isso provém da religião. A religião do Ocidente é
diferente da religião do Oriente. Deveríamos examinar esse
aspecto e ver que relação ele tem com o assunto.
Endireitou o manto ao redor do corpo, pondo-se mais a
cômodo, e tocou a sineta para que o criado levasse as coisas
da mesa. Quando isso foi feito, voltou-se para mim e deu
início a uma palestra que achei de enorme interesse.
Lobsang, — disse ele —, devemos traçar um paralelo
entre uma das religiões do Ocidente e a nossa própria
religião budista. Você perceberá, de suas lições, que os
Ensinamentos de nosso Senhor Gautama foram um tanto
alterados, com o correr do tempo. No decurso dos anos e
séculos que se sucederam desde a passagem, nesta terra, de
O Gautama e Sua elevação à Budância , Os Ensinamentos
que Ele pessoalmente transmitiu sofreram alteração. Alguns
de nós acham que eles mudaram para pior. Outros acham
que os Ensinamentos foram postos de acordo com o
pensamento moderno.
Olhou para mim, para ver se eu o acompanhava com aten-
ção suficiente, e se eu compreendia o que ele falava. Eu
compreendia, sim, e o acompanhava com perfeição. Ele
assentiu para mim, de modo breve, e prosseguiu:
Nós tivemos o nosso Grande Ser, a quem chamamos
Gautama, a quem outros chamam o Buda. Os cristãos
também têm o seu Grande Ser. O Grande Ser deles divulgava
certos Ensinamentos. A lenda e, na verdade, os registros
verdadeiros dão testemunho do fato de que o Grande Ser
deles, de acordo com suas próprias Escrituras, andou pelos
desertos, na verdade visitou a Índia e o Tibete, à procura de
informação, à procura de conhecimento, buscando uma
religião que fosse adequada à mentalidade e espiritualidade
dos ocidentais. Esse Grande Ser veio a Lhasa, e realmente
visitou nossa Catedral, o Jo Kang. O Grande Ser, em seguida,
regressou ao Ocidente, formulando uma religião que era de
todos os modos admirável e adequada ao povo ocidental.
Com o Passamento desse Grande Ser desta terra... como
nosso próprio Gautama passou... certas dissensões surgiram
na Igreja Cristã. Uns sessenta anos após esse Passamento,
uma Convenção ou Reunião foi efetuada num lugar
chamado Constantinopla. Certas alterações foram
introduzidas nos dogmas cristãos... certas alterações foram
feitas na crença cristã. Provavelmente alguns dos sacerdotes
da época achavam que tinham de aduzir alguns tormentos, a
fim de manter em ordem alguns dos elementos mais
refratários de sua congregação.
Fitou-me novamente para ver se eu o acompanhava, e mais
uma vez indiquei que não apenas o fazia, mas que me
achava imensamente interessado.
Os homens que compareceram àquela Convenção em
Constantinopla, no ano 60, eram criaturas destituídas de
simpatia para com as mulheres, exatamente como alguns de
nossos monges sentem vertigem apenas por pensarem em
uma delas. A maioria dos mesmos encarava o sexo como
algo sujo, algo a que só se devia recorrer no caso de
necessidade absoluta, a fim de aumentar a população. Eram
homens que não tinham grande impulso sexual em si, e
certamente se viam dotados de outros impulsos, talvez
alguns dos mesmos fossem espirituais... eu não sei... sei
apenas que no ano 60 resolveram que o sexo era sujo, que o
sexo era obra do demônio. Decidiram que as crianças eram
trazidas ao mundo impuras e não mereciam uma recom-
pensa, enquanto, de algum modo, não houvessem sido
purificadas.
Fez uma pausa momentânea, e sorriu, ao prosseguir:
Eu não sei o que julgavam que devia ter acontecido
com todos os milhões de crianças nascidas antes desse
encontro em Constantinopla!
"Você compreenderá, Lobsang, que eu estou dando
informações a respeito da Cristandade, como eu a
compreendo. Talvez, quando você for viver entre essa
gente, tenha algumas impressões diferentes, ou informações
diferentes, que possam de algum modo modificar minhas
próprias opiniões e ensinamentos."
Ao encerrar essa afirmação, as conchas soaram e ouviu-se o
clangor das trombetas do Templo. Ao redor de nós, surgiu a
movimentação ordenada de homens disciplinados que se
preparavam para o Culto. Nós também nos pusemos em pé,
endireitando os mantos, antes de seguirmos para o Templo,
onde seria realizado o Culto. Antes de deixar-me à entrada,
meu Guia disse:
Venha a meu quarto depois, Lobsang, e
prosseguiremos com nossa conversa.
Assim é que entrei no Templo, tomando lugar entre meus
companheiros, fiz minhas orações e agradeci a meu próprio
Deus particular por ser eu tibetano tanto quanto meu guia, o
Lama Mingyar Dondup. O velho Templo era belo, com seu
ar de adoração e as nuvens de incenso em movimento lento
que nos punham em contato com as pessoas em outros
planos de existência. O incenso não é apenas um cheiro
agradável, algo que "desinfeta" um Templo — é uma força
viva, uma força disposta de tal modo que, escolhendo-se o
tipo determinado de incenso, podemos realmente controlar
a cadência de vibrações. Aquela noite, no Templo, o incenso
flutuava e conferia uma atmosfera suave e de mundo antigo
ao lugar. De meu lugar, em meio aos meninos de meu
grupo, olhei para os recantos difusos do edifício do Templo.
Havia o canto profundo dos velhos lamas acompanhado às
vezes pelas sinetas de prata. Aquela noite, tínhamos conosco
um monge japonês. Ele viera, percorrendo todo o caminho
até nossa terra e depois de se deter na Índia por algum
tempo. Era um grande homem em seu próprio país, e
trouxera consigo seus tambores de madeira, tambores que
desempenham parte tão importante na religião dos monges
japoneses. Eu me maravilhava diante da versatilidade dele,
diante da música notável que produzia nos tambores. Parecia
realmente espantoso, a mim, que ao bater em um tipo de
caixa de madeira se obtivesse um som tão musical; ele estava
com o tambor de madeira e tinha uma espécie de
castanholas, cada qual com sinetas. Também os nossos lamas
o acompanhavam com outras sinetas, enquanto a grande
concha do Templo se fazia ouvir, nos momentos
apropriados. Pareceu-me que todo o Templo vibrava, as
próprias paredes pareciam dançar e estremecer, e a bruma
na distância dos recantos mais afastados se transformava em
semblantes, os semblantes de lamas há muito mortos.
Daquela vez, entretanto, o Culto terminou com rapidez
demasiada, para mim, e me apressei a ir ter com meu guia, o
Lama Mingyar Dondup.
Você não perdeu muito tempo, Lobsang! — disse meu
guia, em tom alegre. — Pensei que talvez parasse no
caminho para fazer uma de suas inúmeras refeições leves!
Não, Honrado Lama, — respondi. — Estou aflito por
obter algum esclarecimento, pois confesso que a questão do
sexo no mundo ocidental me causou bastante espanto,
depois de ouvir tanta coisa dos comerciantes e outras
pessoas.
Ele riu de mim, e disse:
O sexo desperta muito interesse em toda parte! É o sexo,
afinal de contas, que mantém as pessoas nesta terra. Nós o
examinaremos conforme sua necessidade.
Honrado Lama, — disse eu —, o senhor disse
anteriormente que o sexo era a segunda força maior do
mundo. O que queria dizer com isso? Se o sexo é tão
necessário para manter o mundo povoado, por que não é a
força mais importante de todas ?
A maior força do mundo, Lobsang, não é o sexo, a maior
força que existe é a imaginação, pois sem a imaginação não
haveria o impulso sexual. Se um macho não tivesse
imaginação, não se interessaria pela fêmea. Sem imaginação,
não haveria escritores, artistas, não haveria coisa alguma
construtiva ou boa!
Mas, Honrado Lama — repliquei —, o senhor está
dizendo que a imaginação é necessária ao sexo? E se é assim,
como a imaginação se aplica aos animais?
— Os animais possuem imaginação, Lobsang, do mesmo
modo como os seres humanos. Muitas pessoas julgam que os
animais são criaturas sem mente, sem qualquer forma de
inteligência, sem qualquer forma de razão. Eu, que vivi um
número surpreendentemente prolongado de anos, afirmo o
contrário.
Meu guia olhou para mim, e depois, sacudindo um dedo em
minha direção, afirmou:
Você afirma gostar dos gatos do Templo, e vai dizer
que eles não têm imaginação? Você sempre fala com os
gatos do Templo e se detém para acariciá-los. Depois de
você ter sido afetuoso com eles a primeira vez, eles o
esperarão a segunda, a terceira, e assim por diante. Se fossem
apenas reações insensíveis, se fossem apenas padrões
cerebrais, então os gatos não esperariam por você na
segunda e na terceira ocasião, mas aguardariam até que o
hábito se formasse. Não, Lobsang, qualquer animal tem
imaginação. Um animal imagina os prazeres de estar com
sua companheira, e ocorre então o inevitável!
Quando me pus a pensar no assunto, e pensar longamente,
tornou-se perfeitamente claro que meu guia estava certo. Eu
vira pequenos pássaros— pequenas fêmeas — batendo as
asas, de modo bem parecido com aquele pelo qual as
mulheres jovens batem as pestanas! Eu observara pássaros
pequenos, e vira uma aflição muito verdadeira, enquanto
esperavam que seus companheiros regressassem da busca
incessante de comida. Observara a alegria com que um
pássaro amoroso saudara o companheiro, ao regresso do
mesmo. Era óbvio, agora que pensava no assunto, que os
animais realmente dispunham de imaginação e assim pude
perceber o teor das observações de meu guia, no sentido de
que a imaginação era a maior força sobre a terra.
Um dos comerciantes me contou que, quanto mais
uma pessoa se entregue ao ocultismo, tanto mais se opõe ao
sexo, Honrado Lama, — disse eu. — Isso é verdade, ou estão
brincando comigo? Já ouvi contar tantas coisas muito
estranhas, que francamente não sei em que acreditar.
O Lama Mingyar Dondup assentiu, com tristeza, enquanto
respondia:
É inteiramente correto, Lobsang, que muitas pessoas
intensamente interessadas nas questões ocultas se mostram
intensamente antipáticas ao sexo, e isso por um motivo
especial: você já ficou sabendo, anteriormente, que os
maiores ocultistas não são normais, isto é, eles têm alguma
coisa fisicamente errada em si. Uma pessoa pode sofrer uma
doença grave, como a tuberculose ou o câncer, ou qualquer
coisa assim. Uma pessoa pode apresentar algum mal dos
nervos... seja lá como for, trata-se de uma doença, e essa
doença aumenta a percepção metafísica.
Ele franziu levemente o cenho, ao prosseguir:
Muitos verificam que o impulso sexual é bem forte.
Alguns, por este ou aquele motivo, utilizam métodos de
sublimação desse impulso sexual, e podem voltar-se para as
coisas espirituais. Uma vez que um homem ou uma mulher
se tenha afastado de algo, deixa-se tomar de repulsa mortal
por essa coisa. Não há reformador maior... nenhum
propagandista maior... contra os males da bebida do que o
beberrão reformado! Do mesmo modo, um homem ou
mulher que tenha renunciado ao sexo (possivelmente
porque não podia satisfazer, ou receber satisfação) se
dedicará às questões ocultas, e todo o impulso que
anteriormente ia (com êxito ou sem ele) para as aventuras
sexuais dedica-se, então, a aventuras no plano oculto.
Infelizmente, porém, essa gente muitas vezes se inclina a
não manter equilíbrio nisso; tendem a lamuriar, dizendo que
apenas quem renuncia ao sexo é capaz de progredir. Nada
poderia ser mais fantástico, nem poderia haver maior
deformação. Algumas das pessoas de mais vulto conseguem
levar uma vida normal, e também progredir, de modo vasto,
na metafísica.
Exatamente nesse instante, o Grande Lama Médico
Chinrobnobo entrou. Nós o saudamos, e ele veio sentar-se
conosco.
Estou contando a Lobsang algumas coisas sobre o sexo e o
ocultismo, — disse o meu guia.
Ah, sim! — disse o Lama Chinrobnobo. — Está na hora
de ele receber algumas informações sobre isso; pensei no
assunto por muito tempo.
Meu guia prosseguiu:
Está claro que quem usa o sexo normalmente... como
deve ser usado... aumenta sua própria força espiritual. O
sexo não é coisa para ser abusada, mas por outro lado
também não deve ser repudiado. Levando-se vibrações a
uma pessoa, essa pessoa pode aumentar, espiritualmente.
Quero fazê-lo ver, entretanto — disse, fitando-me com
severidade —, que o ato sexual só deve ser executado por
aqueles que se amem, aqueles que estejam ligados por
afinidade espiritual. Aquilo que é ilícito, ilegal, não passa de
uma simples prostituição do corpo, e pode prejudicar a
pessoa tanto quanto a outra espécie pode ajudá-la. Do
mesmo modo, um homem ou uma mulher deve ter apenas
um companheiro, evitando todas as tentações que o
afastariam da trilha da verdade e da correção. O Lama
Chinrobnobo disse:
Mas existe outra questão sobre a qual deve falar com
mais extensão, Respeitável Colega, a referente ao controle da
natalidade. Eu o deixarei para tratar do caso.
Pôs-se em pé, fez uma mesura séria, e saiu da sala. Meu guia
esperou por momentos, e depois disse:
Você já se cansou disto, Lobsang?
Não, Senhor! — respondi. — Estou ansioso por aprender
o que puder, pois tudo isso é novo para mim.
Nesse caso, deve saber que nos primeiros dias da vida
sobre a terra, os povos se dividiam em famílias. Nas regiões
do mundo havia pequenas famílias que, com a passagem do
tempo, se tornaram grandes. Como parece ser inevitável
entre os seres humanos, ocorrerem brigas e dissensões. Uma
família lutou contra outra. Os vencedores mataram os
homens derrotados, levando as mulheres dos mesmos para
sua própria família. Logo se tornou claro que, quanto maior
fosse a família, que agora era designada como tribo, tanto
mais poderosa e segura se achava com relação aos atos
agressivos das outras.
Olhou para mim com algum pesar, e prosseguiu:
As tribos aumentavam em número, com o decorrer
dos anos, e séculos se passaram. Alguns homens se
estabeleceram como sacerdotes, mas sacerdotes com um
pouco de poder político, de olho no futuro! Eles decidiram
que necessitavam de um edito sagrado... aquilo a que
chamariam uma ordem de Deus... e que auxiliaria a tribo
em seu conjunto. Ensinaram que era preciso ser fértil e
multiplicar-se. Naqueles dias tratava-se de uma necessidade
muito real, porque se as pessoas não "se multiplicassem" sua
tribo se enfraqueceria e seria, talvez, completamente
exterminada. Assim... os sacerdotes que ordenaram ao
povo "crescei e multiplicai-vos" estavam até mesmo
salvaguardando o futuro de sua própria tribo. Com o
transcurso de séculos e mais séculos, entretanto, torna-se
bem claro que o índice de aumento da população do mundo
é de tal ordem que este se torna super povoado, existindo
mais gente do que é permitido pelas disponibilidades de
alimentos. Algo terá de ser feito a esse respeito.
Eu conseguia compreender tudo aquilo, e fiquei satisfeito ao
ver que meus amigos do Pargo Kaling — os comerciantes
que haviam viajado por tanta distância e tempo — me
haviam dito a verdade.
Meu guia prosseguiu:
Algumas religiões ainda hoje acham ser realmente errado
colocar alguma limitação no número de crianças que
nascem, mas se encararmos a história do mundo, vemos que
a maioria das guerras foi causada por falta de espaço, por
parte do agressor. O país que tenha uma população em
expansão rápida sabe que, se continuar a expandir-se nesse
ritmo, não haverá comida ou oportunidades suficientes para
seus próprios habitantes. Assim é que empreendem a guerra
dizendo que precisam ter espaço para viver!
Nesse caso, Honrado Lama, que solução daria ao pro-
blema?
Lobsang! A questão é fácil, se os homens e mulheres de
boa vontade se reunirem para debater o assunto. As formas
antigas de religiões... os velhos ensinamentos religiosos,
eram inteiramente adequados, quando o mundo era jovem,
as pessoas pouco numerosas, mas agora é inevitável... e
será, com o tempo! ... que novas atitudes sejam adotadas.
Você pergunta o que eu faria? Bem, eu faria o seguinte:
tornaria legal o controle de nascimentos. Ensinaria a todos
os povos o controle da natalidade, como pode ser
conseguido, o que é, e tudo o que se pudesse descobrir a
respeito. Que as pessoas desejosas de filhos tivessem talvez
um ou dois, enquanto que as que não o desejassem
soubessem como evitá-los. De acordo com nossa religião,
Lobsang, não haveria transgressão alguma em fazer isso. Eu
estudei os livros antigos, de muitos anos passados, antes que
a vida surgisse nas partes ocidentais deste planeta, pois,
como você sabe, a vida surgiu primeiramente na China e nas
regiões ao redor do Tibete, espalhando-se para a Índia, antes
de prosseguir para o Ocidente. Entretanto, não estamos
examinando isso.
Naquele instante, decidi que assim que pudesse pediria a
meu guia que falasse mais sobre a origem da vida neste
planeta, mas relembrei que estava estudando tudo quanto
podia sobre o sexo. Meu guia me observava e, ao ver que eu
voltara a prestar atenção, prosseguiu:
Como eu dizia, a maioria das guerras é causada pela
superpopulação. É um fato que haverá guerras... sempre
haverá guerras... enquanto houver populações vastas e em
crescimento. E é necessário que haja guerras, pois de outra
forma o mundo seria inteiramente tomado por gente, do
mesmo modo como um rato morto é inteiramente comido
por enxames de formigas. Quando você se afastar do Tibete,
onde temos uma população muito pequena, e for a algumas
das grandes cidades do mundo, ficará espantado e apavorado
com os grandes números e multidões de gente. Verá que
minhas palavras estão certas; as guerras são inteiramente
necessárias, para reduzirem a população. As pessoas vieram à
terra a fim de aprenderem coisas, e se não houvesse guerra e
doenças, não haveria modo algum de manter a população
sob controle e alimentada. Eles seriam como uma nuvem de
gafanhotos, comendo tudo o que encontrassem,
contaminando tudo, e depois dariam fim completo, a si
mesmos.
Honrado Lama! — disse eu. — Alguns dos comerciantes
com quem eu falei sobre essa coisa de controle da natalidade
dizem que muitas pessoas a julgam má. Ora, por que elas
pensam assim?
Meu guia meditou por momentos, provavelmente calculan-
do o quanto deveria contar-me, pois eu ainda era jovem, e
depois disse:
A alguns, o controle de natalidade parece ser o assas-
sinato de uma pessoa que não nasceu, mas segundo nossa Fé,
Lobsang, o espírito não entrou na criança por nascer. Em
nossa Fé, não pode ter ocorrido o assassinato e, de qualquer
modo, é claramente absurdo dizer que tenha havido algum
assassinato, ao se adotarem precauções para impedir a
concepção. Seria o mesmo se disséssemos que assassinamos
uma grande quantidade de plantas se impedirmos que as
sementes das mesmas germinem! Também os seres
humanos imaginam, com freqüência, serem a coisa mais
maravilhosa que já aconteceu neste grande Universo. Na
verdade, como é claro, os seres humanos são apenas uma
forma de vida, e nem por isso a mais elevada, mas não há
tempo para entrarmos na questão, neste momento.
Pensei em outro ser do qual ouvira falar, e que me parecera
coisa tão chocante — coisa tão terrível — que mal conseguia
ter a coragem de mencioná-lo. Ainda assim, consegui!
Honrado Lama! Ouvi falar que alguns animais, as
vacas, por exemplo, são enxertadas por meios não-naturais.
Isso é verdade ?
Meu guia pareceu bastante chocado, por momentos, e de-
pois disse:
Sim, Lobsang, isso é inteiramente correto. Existem
certos povos, no mundo ocidental, que procuram criar gado
pelo que chamam de inseminação artificial, isto é, as vacas
são inseminadas por um homem com uma seringa grande,
ao invés de porem um touro para fazê-lo. Essas pessoas
parecem não compreender que fazer uma cria, quer seja um
bebê humano ou bebê urso, ou bebê vaca, é mais do que
apenas uma união mecânica. Se alguém quer ter bom gado,
nesse caso deve haver amor, ou uma forma de afeição, no
processo de cruza. Se os seres humanos fossem
artificialmente inseminados, poderia acontecer que.. .
nascendo sem amor. .. eles seriam subumanos! Vou repetir,
Lobsang, dizendo que para o tipo melhor de ser humano ou
animal, é necessário que os pais gostem um do outro, que
ambos se elevem em vibração espiritual, bem como física. A
inseminação artificial, efetuada em condições frias e sem
amor, resulta em crias muito más, na verdade. Creio que a
inseminação artificial seja um dos maiores crimes
perpetrados nesta terra.
Eu ali estava sentado, com as sombras do anoitecer invadin-
do o quarto, banhando o Lama Mingyar Dondup no
crepúsculo, e enquanto aumentavam, vi que sua aura
refulgia com o dourado da espiritualidade. Para mim, de
modo clarividente, a luz era realmente brilhante e
interpenetrava o próprio crepúsculo. Minhas percepções
clarividentes diziam — como se eu não soubesse antes —
que me encontrava na presença de um dos maiores homens
do Tibete. Senti-me reconfortado, por dentro, senti que
todo o meu ser pulsava de amor por ele, meu guia e per-
ceptor .
Lá embaixo, as conchas do Templo soaram novamente, mas
desta feita não nos estavam chamando, chamavam outros.
Juntos, fomos à janela espiar. Meu guia pos a mão em meu
ombro, enquanto olhávamos para o vale lá embaixo — o
vale já parcialmente envolvido na escuridão purpúrea.
Deixe sua consciência ser o seu guia, Lobsang — disse
meu guia. — Você sempre saberá se uma coisa está certa, ou
se uma coisa está errada. Você irá longe... mais longe do que
consegue imaginar... e terá muitas tentações postas à sua
frente.  Deixe que sua consciência o guie.  Nós, no Tibete
somos povo pacífico, somos gente de uma população
pequena, somos criaturas que vivem em paz, que acreditam
na santidade, que acreditam na santidade do Espírito. Onde
estiver, seja lá o que suportar, deixe que sua consciência seja
o seu guia. Estamos tentando ajudá-lo com sua consciência.
Estamos tentando conferir-lhe um poder telepático e
clarividência máximos, de modo que sempre, no futuro,
enquanto viver, poderá estar em contato telepáticamente
com grandes lamas, aqui nos altos Himalaias, grandes lamas
que, mais tarde, dedicarão todo o seu tempo à espera de suas
mensagens.
À espera de minhas mensagens? Receio que tenha ficado
boquiaberto de espanto; minhas mensagens? O que havia de
tão especial em mim? Por que motivo grandes lamas
estariam esperando minhas mensagens todo o tempo? Meu
guia riu, dando-me um tapa no ombro.
— A razão para sua existência, Lobsang, é que você tem
uma tarefa muitíssimo especial a executar. A.despeito de
todas as vicissitudes, a despeito de todos os sofrimentos,
você obterá êxito em sua tarefa. Mas é claramente injusto
que você seja deixado por conta própria, em um mundo
estranho, mundo que zombará de você e o chamará de
mentiroso, impostor e mistificador. Nunca desespere, nunca
desista, pois o direito prevalecerá. Você... prevalecerá!
As sombras do anoitecer transformavam-se na escuridão da
noite, e lá embaixo as luzes da Cidade cintilavam. Acima de
nós uma lua nova nos fitava, sobre a orla das montanhas. Os
planetas, inúmeros milhões deles, cintilavam nos céus
purpúreos. Olhei para cima, pensei em todas as previsões a
meu respeito — todas as profecias que haviam feito sobre
minha vida — e pensei também na confiança e fé
demonstradas por meu amigo, meu guia, o Lama Mingyar
Dondup. E fiquei contente.
10

O Mestre estava de mau humor; talvez o chá que tomara não
se achasse suficientemente quente, talvez seu tsampa não
houvesse sido torrado ou misturado de acordo com seu
paladar. O Mestre estava de mau humor; nós, os meninos,
sentávamo-nos na sala de aula quase estremecendo de pavor.
Ele já caíra inesperadamente sobre meninos à minha direita,
meninos à minha esquerda. Eu tinha boa memória, conhecia
perfeitamente as Lições — poderia repetir capítulo e
versículo de qualquer parte dos cento e oito volumes de O
Kangyur. "Ta-plac! Ta-plac!" Eu saltei, quase um palmo no
ar, tomado de surpresa, e uns três meninos à esquerda,
outros três à direita, saltaram também igualmente surpresos.
Por momentos nem sabíamos qual de nós estava levando a
coça, e então, quando o mestre bateu com mais força,
percebi que eu era o infeliz! Ele prosseguiu batendo,
enquanto resmungava, sem parar:
— Favorito do Lama! Idiota mimado!! Vou-lhe ensinar a
aprender alguma coisa!
A poeira se levantava de meu manto, em nuvem sufocante
que me pôs a espirrar. Por algum motivo, isso enraiveceu
ainda mais o Mestre, pelo que se dedicou à tarefa de tirar
mais poeira de mim. Por sorte — e sem que ele soubesse —
eu previra seu mau humor, e vestira mais roupa do que o
comum, de modo que — embora ele não ficasse satisfeito, se
tivesse conhecimento disso — seus golpes não me
preocupavam além da conta. De qualquer modo, eu era um
menino rijo.
Aquele Mestre era uma criatura tirânica, um perfeccionista
sem ser perfeito ele mesmo. Não só tínhamos de ser
perfeitos em nosso Trabalho Escolar, como também se a
pronúncia e a inflexão não fossem exatamente de acordo
com seus desejos, apanhava a bengala, ia para trás, e depois
nos surrava pelas costas. Agora, fazia algum exercício a mais,
e eu quase sufocava no meio da poeira. Os meninos, no
Tibete, como os meninos por toda a parte, costumam rolar
na poeira, quando brigam ou brincam, e meninos
inteiramente separados da influência feminina nem sempre
conseguem que toda a poeira saia da roupa; a minha estava
cheia dela, e isso era mais ou menos o costumeiro. O Mestre
prosseguiu, deferindo bordoadas:
Vou-lhe ensinar a pronunciar mal as palavras!
Demonstrando desrespeito ao Conhecimento Sagrado! Seu
imbecil mimado, sempre faltando às aulas, e depois voltando
e sabendo mais do que os outros a quem, ensinei... Fedelho
inútil... vou-lhe ensinar, você vai aprender comigo, de um
modo ou de outro!
No Tibete, sentamo-nos no chão, as pernas cruzadas, na
maioria das vezes sobre almofadas com umas quatro
polegadas de espessura, e diante de nós temos mesas que
podem ir de palmo a palmo e meio de altura do chão,
dependendo do tamanho do estudante. Aquele Mestre, de
repente, pôs as mãos com força na parte de trás da minha
cabeça, empurrando-a para minha mesa, onde eu tinha uma
ardósia e alguns livros. Colocando-me assim em posição
adequada, respirou fundo e passou a um verdadeiro
espancamento. Eu me contorcia, só por questão de hábito,
não porque estivesse sofrendo, porque a despeito de seus
esforços mais empenhados, nós éramos meninos enri-
jecidos, quase literalmente "curtidos em couro", e coisas
assim eram uma ocorrência cotidiana. Algum menino deu
uma risadinha mais ao lado, e o Mestre deixou-me, como se
eu me houvesse transformado em brasa viva, saltando como
um tigre sobre o outro. Tive o cuidado de não proporcionar
qualquer indicação de meu próprio divertimento, ao ver
uma nuvem de poeira levantar-se de alguns meninos mais
adiante na fila! Surgiram diversas exclamações de dor, pavor
e horror, à minha direita, porque o Mestre já estava batendo
indiscriminadamente em todos, sem saber qual dos meninos
rira. Finalmente, sem fôlego e por certo sentindo-se muito
melhor, o Mestre encerrou seu exercício físico.
Ah! — arquejou. — Isso vai ensinar a vocês, seus
monstrinhos, a prestarem atenção ao que digo. Agora,
Lobsang Rampa, recomece, e trate de apresentar a
pronúncia perfeita.
Eu recomecei tudo, e quando dedicava os pensamentos a
alguma coisa sabia realmente fazê-la bem. Dessa feita foi o
que fiz — com atenção, — de modo que não houve novas
demonstrações de raiva do Mestre nem bordoadas ainda
mais fortes em mim.
Durante toda aquela sessão, cinco horas ao todo o Mestre
andou para a frente e para trás, de olho muitíssimo vivo em
todos nós, e nenhuma provocação lhe foi necessária para
que se atirasse, apanhando algum menino infeliz,
exatamente quando o mesmo julgava não estar sendo
observado. No Tibete, nosso dia começa à meia-noite,
quando vamos a um culto Religioso e, naturalmente, existem
cultos a intervalos regulares. Depois, temos de executar
trabalho rude, para que nos mantenhamos humildes, para
que não encaremos o pessoal doméstico com desdém.
Também temos um período de descanso, e depois disso
vamos para nossas aulas. Estas duram cinco horas, sem parar,
e por todo esse tempo os professores cuidavam de fazer-nos
aprender completamente. Nossas aulas, é claro, duravam
mais do que cinco horas por dia, mas aquela sessão, a da
tarde, tinha essa duração.
As horas se arrastavam, parecia que estávamos ali há dias e
dias. As sombras quase não se moviam, e o sol, lá em cima,
dava a impressão de estar cravado em um só lugar, do qual
não se retirava. Suspirávamos em exasperação e tédio,
achando que um dos Deuses devia descer e tirar aquele
Mestre de nosso meio, pois era o pior de todos, ao que
parecia esquecido de que em alguma ocasião, oh, em tempo
muito longínquo, também fora jovem. Mas, afinal, as
conchas soaram e lá em cima, no teto, ouviu-se uma
trombeta, reverberando pelo Vale, mandando um eco de
volta, refletido pela Potala. Com um suspiro, o Mestre disse:
Bem, lamento que tenha de deixá-los agora, meninos,
mas podem acreditar que quando os vir outra vez, tratarei de
fazê-los aprender alguma coisa!
Fez um sinal, em direção à porta. Os meninos da fileira mais
próxima puseram-se em pé, com um salto, e correram para a
mesma. Eu já ia, também, mas ele me chamou:
Você, Terça-Feira Lobsang Rampa, vá ter com o seu
guia, e aprenda as coisas, mas não volte aqui, exibindo-se
com os meninos a quem eu ensinei. Você está aprendendo
por hipnotismo e outros métodos, e vou ver se consigo
expulsá-lo da sala.
Desferiu-me um pescoção, e prosseguiu:
Agora, suma-se de minha vista. Acho difícil suportá-lo
aqui, outros estão se queixando de que você aprende mais do
que os meninos a quem eu ensino.
Assim que soltou meu manto, também saí correndo, e nem
sequer me dei ao trabalho de fechar a porta por onde saíra.
Ele berrou alguma coisa mas eu já corria com velocidade
suficiente para não ter de voltar.
Lá fora, alguns dos outros meninos estavam à minha espera,
bem fora do alcance da audição do Mestre, como era natural.
Devíamos fazer alguma coisa com esse camarada, — disse
um dos meninos.
Sim! — corroborou outro. — Alguém vai ficar muito
machucado se ele continuar desse jeito.
Você, Lobsang — disse um terceiro —, está sempre a
jactar-se de seu Mestre e Guia... Por que não fala com ele,
por que não diz a ele como somos maltratados?
Pensei no assunto, e me pareceu uma boa idéia, pois tínha-
mos de aprender, mas não havia motivo pelo qual
devêssemos fazê-lo sob tanta brutalidade. Quanto mais
pensava na questão, tanto mais agradável ela se tornava; eu
iria ter com meu guia, dizendo-lhe como éramos tratados, e
ele, a seu turno, iria ter com o Mestre, aplicando-se um
sortilégio, transformando-o em um sapo, ou coisa parecida.
Sim! — exclamei. — Vou, agora mesmo.
Dito isso, voltei-me e saí correndo.
Segui pelos corredores conhecidos, subindo sempre, de
modo a me aproximar do telhado. Finalmente, enveredei
pelo corredor dos lamas, e descobri que meu guia já estava
em seu quarto, tendo a porta aberta. Fez-me sinal para que
entrasse, e disse:
Ora, Lobsang! Você está agitado. Foi nomeado Abade
ou coisa parecida?
Olhei para ele, com ar bastante pesaroso, e disse:
Honrado Lama, por que motivo nós, os meninos,
somos tão maltratados na aula?
Meu guia fitou-me com ar sério, dizendo:
Mas como foram maltratados, Lobsang? Sente-se e
conte o que o preocupa tanto.
Sentei-me, e comecei minha narrativa triste. Enquanto falei,
meu guia não fez qualquer comentário, nem interrupção
alguma. Deixou-me dizer o que sentia, e finalmente cheguei
ao final de meu rosário de pesares, e quase ao final do fôlego.
Lobsang — disse meu guia —, não lhe ocorre que a
própria vida é apenas uma escola?
Uma escola? — contrapus, fitando-o como se meu guia
houvesse repentinamente perdido a lucidez. Minha surpresa
não seria maior se ele me dissesse que o Sol se fora e que a
Lua viera para o lugar do mesmo!
Honrado Lama, — disse eu, atônito, — o senhor disse que
a vida é uma escola?
Foi exatamente o que eu disse, Lobsang. Descanse um
pouco, vamos tomar chá, e depois conversaremos.
O auxiliar que foi chamado logo nos trouxe chá e coisas boas
para comer. Meu guia comia de modo muito parcimonioso.
Como dissera uma vez, eu comia o bastante para sustentar
uns quatro homens como ele! Mas o dissera com um sorriso
tão travesso, que não houvera qualquer ofensa. Muitas vezes
brincava comigo e eu sabia que ele jamais, em qualquer
circunstância, diria alguma coisa que magoasse outra pessoa.
Eu realmente não me importava, de modo algum, com o que
ele me dizia, sabendo qual era sua intenção. Ali, sentados,
tomamos nosso chá, e depois meu guia escreveu um
pequeno bilhete dando-o ao auxiliar para que o entregasse a
outro lama.
Lobsang, eu disse que você e eu não estaremos no Ser-
viço do Templo, esta noite, pois temos muito a conversar, e
embora os Serviços do Templo sejam coisas muito
essenciais... diante de suas circunstâncias especiais... é
necessário dar-lhe mais instrução do que o comum.
Pôs-se em pé, e foi ter à janela. Eu o imitei, apressadamente,
indo ter com ele, pois um dos meus prazeres era ficar por ali
e ver tudo o que acontecia. Meu guia tinha um dos quartos
mais altos no Chakpori, quarto do qual se podiam ver
espaços amplos a distâncias enormes. Além disso, ele
dispunha de uma daquelas coisas maravilhosas, um
telescópio. As horas que passei com aquele instrumento! As
horas que passei olhando a Planície de Lhasa, vendo os
comerciantes na própria Cidade, observando as damas de
Lhasa que cuidavam de seus afazeres, fazendo compras,
visitas e (como entendo) desperdiçando o tempo. Durante
dez ou quinze minutos ficamos ali, olhando, após o que meu
guia disse:
Vamo-nos sentar outra vez, Lobsang, e falar sobre a
questão de escola. Quero que me escute, Lobsang, pois se
trata de um assunto que você deve compreender bem
claramente desde o início. Se não entender algo do que eu
digo, faça-me parar no mesmo instante, pois é essencial que
compreenda tudo, ouviu?
Assenti e polidamente disse:
Sim, Honrado Lama, eu o ouço e compreendo. Se não.
entender, falarei.
Ele concordou e disse:
A vida é como uma escola. Quando estamos além
desta vida, no mundo astral, antes de descermos ao corpo de
uma mulher, examinamos com os outros o que vamos
aprender. Há algum tempo, contei-lhe uma história sobre o
velho Seng, o chinês. Eu lhe disse que íamos usar um nome
chinês porque você... sendo quem você é!... procuraria
ligar qualquer nome tibetano com algum tibetano seu
conhecido. Vamos dizer que o velho Seng, que morreu e
viu todo seu passado, chegou à conclusão de que tinha certas
lições a aprender. E então as pessoas que o ajudavam
puseram-se a procurar pais, ou melhor, possíveis país, que
vivessem nas circunstâncias e nas condições capazes de
capacitar à alma que fora o velho Seng a aprender as lições
desejadas.
Meu guia olhou para mim e prosseguiu:
Acontece coisa muito parecida a um menino que se
vai tornar monge. Se quiser ser monge-médico, vem para o
Chakpori. Se quiser fazer trabalho doméstico, certamente
poderá entrar na Potala, pois eles parecem estar sempre com
escassez de monges domésticos, por lá. Escolhemos nossa
escola de acordo com o que queremos aprender.
Assenti, porque tudo era bem claro para mim. Meus pró-
prios pais haviam feito todos os preparativos para que eu
entrasse no Chakpori, desde que tivesse a necessária
capacidade de permanência para enfrentar a prova inicial de
resistência. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, continuou:
Uma pessoa que vai nascer já tem tudo preparado. Ela
descerá e nascerá de uma mulher, que vive em certo
distrito, casada com certa classe de homem. Julga-se que isso
conferirá à criança que vai nascer as oportunidades de
adquirir a experiência e o conhecimento planejados antes.
Com o tempo, chegado o momento, nasce a criança. De
inicie, tem de aprender a comer, tem de aprender a
controlar certas partes do corpo físico... Tem de aprender a
falar e ouvir. De início, você sabe, uma criancinha não
consegue focalizar os olhos, tem de aprender a ver. Ela está
na escola.
Olhou para mim e havia um sorriso em seu semblante, ao
aduzir:
Nenhum de nós gosta da escola, alguns têm de vir, mas
outros não o precisam fazer... Planejamos vir... não pelo
Carma... mas para aprendermos outras coisas. A criança
cresce, torna-se um menino e vai então para uma sala de
aulas, onde às vezes é tratado com bastante brutalidade pelo
mestre. Mas não há nada de errado nisso, Lobsang. Ninguém
jamais foi prejudicado pela disciplina. A disciplina é a
diferença entre um exército e uma turba. Você não
consegue um homem culto, a menos que esse homem tenha
sido disciplinado. Muitas vezes, agora, você acha que está
sendo maltratado, que o professor é duro e cruel, mas... seja
lá o que pense, agora... você escolheu particularmente vir a
esta Terra, em tais condições.
Bem, Honrado Lama, se eu concordei em vir para cá,
nesse caso acho que devia mandar examinar os meus miolos.
E se eu concordei em vir para cá, por que motivo não sei de
nada disso?
Meu guia olhava para mim, a rir-se, gargalhando mesmo.
Eu sei exatamente como você se sente, Lobsang, no
dia de hoje, mas na verdade não há coisa alguma com que
deva preocupar-se. Você veio a este planeta, em primeiro
lugar, para aprender certas coisas. E então, tendo aprendido
essas coisas, vai passar a um mundo maior, além de nossas
fronteiras, para aprender outras. A Trilha não vai ser fácil,
mas você obterá êxito no fim, e eu não quero que fique
desanimado. Todas as pessoas, qualquer que seja a posição
ocupada por elas na vida, descem à Terra, vindas dos planos
astrais, para poderem aprender e, ao aprendê-lo,
progredirem. Você concordará comigo, Lobsang, em que se
quiser progredir na Lamaseria tem que estudar e passar nos
exames. Você não teria grande respeito por um menino que
fosse repentinamente colocado acima de você, e que apenas
pelo favoritismo se tornasse um lama ou abade. Enquanto
houver exames adequados, você sabe que não será preterido
pelo capricho, fantasia ou favoritismo de uma pessoa
superior.
Eu percebia isso, também. Assim explicado, o assunto era de
uma simplicidade a toda prova.
Nós vimos à terra para aprender coisas e, não importa
quão duras ou amargas sejam as lições aqui, trata-se de lições
que nós nos propusemos receber antes de virmos. Quando
deixamos esta terra, temos férias por algum tempo no outro
Mundo, e depois, se quisermos fazer progresso, passamos à
frente. Podemos regressar a esta terra sob condições
diferentes, ou podemos seguir para uma etapa
completamente diferente da existência. Muitas vezes,
quando estamos na escola, julgamos que o dia não vai
acabar, achamos que não vai haver um fim para a aspereza
do professor. A vida sobre a terra é assim; se tudo corresse
sem tropeços, se tivéssemos tudo que quiséssemos, não
estaríamos aprendendo uma lição, estaríamos apenas
vagando na corrente da vida. É um fato deplorável que só
aprendemos com a dor e o sofrimento.
Bem, então, Honrado Lama, por que motivo alguns
meninos, e alguns lamas também, têm uma vida tão fácil?
Sempre me parece que eu fico com as dificuldades, as
profecias más, os espancamentos por um professor irritado,
quando realmente fiz o melhor que pude.
Mas, Lobsang, algumas dessas pessoas que aparentemente
estão muito satisfeitas... você tem certeza de que realmente
o estejam? Tem a certeza de que as condições são tão fáceis
para elas, afinal de contas? Enquanto não souber o que elas
planejavam fazer antes de virem à terra, você não se
encontra em posição de avaliar. Todas as pessoas que vêm a
esta terra o fazem com um plano preparado, um plano do
que querem aprender, o que se propõem a fazer, e o que
aspiram a ser quando deixarem esta terra, depois de
passarem pela sua escola. E você diz que realmente se
esforçou na aula de hoje. Tem certeza disso? Não estava
bastante complacente, achando que sabia tudo quanto devia
saber da lição? Você, por sua atitude bastante superior, não
fez com que o Mestre se sentisse mal?
Perguntava isso a fitar-me de modo um tanto acusador, e
percebi que minhas faces se punham vermelhas. Sim, ele
realmente sabia de alguma coisa! Meu guia tinha a habilidade
mais deplorável de pôr a mão nos lugares sensíveis. Sim, eu
fora complacente, achara que daquela feita o Mestre não
conseguiria descobrir falta alguma em mim. Minha atitude
superior, naturalmente, não contribuíra pouco para a
exasperação daquele Mestre. Meneei a cabeça, concordando.
Sim, Honrado Lama, tenho tanta culpa quanto outro
qualquer.
Meu guia olhou para mim, sorriu, e assentiu.
Mais tarde, Lobsang, você irá a Chungking, na China,
como sabe — disse o Lama Mingyar Dondup.
Concordei, taciturno, não querendo sequer pensar no
momento em que eu teria de partir. Ele prosseguiu:
Antes que deixe o Tibete, mandaremos consultar di-
versas escolas e faculdades para obter detalhes quanto ao
método de instrução que usam. Receberemos todos os
pormenores, e decidiremos então que faculdade ou
universidade lhe oferecerá exatamente o tipo de preparo do
qual você necessita nesta vida. De modo semelhante, antes
que uma pessoa no mundo astral sequer pense em descer à
terra, avalia o que se propõe a fazer, o que quer aprender, e
o que finalmente deseja conseguir. Depois, como já lhe
disse, pais adequados são descobertos. É o mesmo que
procurar uma escola adequada.
Quanto mais eu pensava nessa coisa de escola, tanto mais a
mesma me desagradava.
Honrado Lama! — disse eu. — Por que motivo algu-
mas pessoas sofrem tantas doenças, tantos infortúnios? O
que isso lhes ensina?
Meu guia disse:
Mas você deve lembrar-se de que uma pessoa que vem
a este mundo tem muito a aprender, não se trata apenas de
aprender a entalhar, de aprender uma língua, ou a recitar os
Livros Sagrados. A pessoa tem de aprender coisas que vão
ser de utilidade no mundo astral, depois de deixar a terra.
Como já lhe disse, este é o Mundo de Ilusão, e se presta
extremamente bem a nos ensinar o que são as vicissitudes e,
ao passarmos por estas, devemos compreender as
dificuldades e problemas dos outros.
Pensei sobre tudo isso, e me pareceu que tínhamos chegado
a um assunto dos mais importantes. Meu guia, obviamente,
percebeu meus pensamentos, pois disse:
Sim, a noite está chegando, está na hora de
encerrarmos nossa conversa, pois ainda temos muito o que
fazer. Preciso ir ao Pico (como chamávamos a Potala) e
quero levá-lo comigo. Você passará lá toda a noite e o dia de
amanhã. Amanhã, poderemos falar novamente sobre esta
questão, mas vá agora pôr um manto limpo, e trazer outro
de reserva.
Pos-se em pé, e deixou o quarto. Eu hesitei apenas por
momentos — e isso porque estava estonteado — e logo
segui às pressas para me preparar com a melhor
indumentária, levando outra de reserva.
Juntos, descemos a estrada da montanha, chegando ao Mani
Lhakhang, e exatamente quando passávamos pelo Pargo
Kaling, o Portão Ocidental, ouvi um berro alto e repentino
pór trás de mim, que quase me fez cair da sela.
Uai! Santo Médico Lama! — gritou uma voz feminina,
bem ao lado da estrada.
Meu guia olhou, e desmontou em seguida. Conhecedor da
minha insegurança quando em cima de um pônei, fez sinal
para que continuasse montado, concessão que me encheu
de gratidão.
Sim, madame, o que é? — perguntou meu guia, em
tom bondoso.
Houve movimentos repentinos e uma mulher atirou-se aos
pés dele.
Oh! Santo Médico Lama — disse ela, arquejante. —
Meu marido não soube gerar um filho normal, aquele
desgraçado filho de uma cabra!
Taciturna — aturdida por sua própria audácia — ela estendeu
um pequeno volume à frente. Meu guia inclinou-se e
examinou.
Mas, madame, — observou. — Por que incrimina seu
marido, devido a seu filho adoentado?
Porque aquele homem malsinado sempre andou por aí,
em companhia de mulheres à toa, só pensa em mulheres, e
quando nos casamos não conseguiu sequer gerar uma
criança normal.
Para meu desalento, ela começou a chorar, e as lágrimas
caíam ao chão, fazendo "pequenos ruídos, exatamente como
pedras de granizo, rolando das montanhas.
Meu guia olhou ao redor, fitando & escuridão que aumen-
tava. Uma figura ao lado do Pargo Kaling saiu das sombras
mais escuras e veio à frente. Era um homem com roupa
esfarrapada, e no semblante ostentava uma expressão das
mais cabisbaixas. Meu guia fez-lhe um sinal e ele se
adiantou, ajoelhando-se no chão aos pés do Lama Mingyar
Dondup. Este fitou a ambos e disse:
Vocês não andam certos em incriminar-se
mutuamente por um acidente de nascimento, pois isso não é
questão que tenha ocorrido entre vocês, mas tem a ver com
o Carma.
Voltou a olhar para a criança, afastando os abrigos em que a
mesma se achava envolta. Examinou com atenção, e eu sabia
que ele olhava para a aura da criança. Depois, empertigou-se,
dizendo:
Madame! Sua criança pode ser curada, a cura se acha
dentro das nossas possibilidades. Por que não a trouxe antes?
A pobre mulher voltou a pôr-se de joelhos e apressadamente
entregou a criança ao marido, que a recebeu como se fosse
algo capaz de explodir a qualquer momento. Ela entrelaçou
as mãos e, olhando para meu guia, disse:
Santa Médico Lama, quem nos daria atenção? Nós vie-
mos do Ragyab, e não merecemos os favores de alguns dos
outros Lamas. Não podíamos vir, Santo Lama, por mais
urgente que fosse nossa necessidade.
Eu achei tudo aquilo ridículo, pois os Ragyabs ou
Eliminadores dos Mortos, que viviam no canto sudeste de
Lhasa, eram tão essenciais quanto outros em nossa
comunidade. Eu sabia disso porque meu guia estava sempre
frisando que qualquer que fosse a atividade da pessoa, a
mesma continuava sendo um membro útil da comunidade.
Lembro-me de ter rido gostosamente certa feita, quando ele
dissera:
Até mesmo os ladrões, Lobsang, são gente útil, pois
sem eles não haveria necessidade de policiais, e são os
ladrões que dão emprego aos homens da polícia!
Mas aqueles Ragyabs... muita gente os encarava com
desdém, julgando-os impuros porque lidavam com os
mortos, retalhavam os cadáveres, de modo que os abutres
comessem as partes espalhadas. Eu sabia — e sentia, como
meu guia — que eles faziam um bom trabalho, pois grande
parte de Lhasa era tão rochosa, tão pedregosa, que não se
podia cavar sepulturas, e ainda que isso fosse possível, de
modo normal o Tibete era tão frio que os corpos ficariam
congelados e não entrariam em decomposição, não seriam
absorvidos pelo solo.
Madame! — ordenou meu guia. — Vai trazer-me esta
criança pessoalmente, daqui a três dias, e nós faremos o
possível para curá-la, porque com base neste exame rápido
que fiz parece que pode ser curada.
Procurou alguma coisa na bolsa da sela, tirando dali um
pedaço de pergaminho. Com rapidez escreveu uma
mensagem no mesmo, entregando-a à mulher.
Traga isto a mim, no Chakpori, e o ajudante a deixará
entrar. Informarei ao guarda do portão de sua vinda, e não
encontrará dificuldade alguma. Esteja tranqüila, todos nós
somos humanos aos olhos de nossos Deuses, e nada tem a
recear de nós.
Voltou-se, então, e fitou o marido:
Você deve continuar fiel à sua esposa.
E, voltando-se para esta, aduziu:
Você não deve ser tão áspera com seu marido. Talvez,
se for mais bondosa, ele não vá a outros lugares, à procura de
compensação! Agora, vão para sua casa, e daqui a três dias
voltem ao Chakpori, que eu os receberei e ajudarei. É minha
promessa.
Montou novamente no pônei, e nós partimos. Diminuindo,
à medida que a distância aumentava, vinham os sons de
louvores e agradecimentos do homem do Ragyab e a
mulher.
Acredito que esta noite, ao menos, Lobsang, eles esta-
rão de acordo, sentir-se-ão com disposição bondosa um com
o outro! — afirmou, com uma risada curta, seguindo adiante
pela estrada à esquerda, pouco antes de chegarmos à Aldeia
de Shö.
Eu ficara realmente espantado com aquilo, pois fora a
primeira vez que vira marido e mulher.
Santo Lama, — exclamei —, não compreendo como
essa gente pode unir-se. Se não gostam um do outro, por
que o fazem?
Meu guia sorria, enquanto respondia:
Você, a chamar-me de "Santo Lama"! Você se julga
um camponês? Quanto à sua pergunta, bem, vamos falar
sobre tudo isso amanhã. Esta noite, estamos ocupados
demais. Amanhã, falaremos sobre essas coisas, e eu
procurarei tranqüilizá-lo, porque a sua mente está muito
confusa!
Juntos, escalávamos a montanha. Eu sempre gostei de olhar
para trás, vendo a Aldeia de Shö, e imaginei o que acon-
teceria se jogasse uma pedra de bom tamanho em um ou
dois telhados: Atravessá-los-ia? Ou o estardalhaço faria
alguém sair da casa, pensando que os demônios estavam
jogando coisas sobre ele? Nunca tivera o atrevimento de
jogar a pedra, porque não queria que a mesma atravessasse o
telhado e atingisse alguém lá dentro. Entretanto, a tentação
sempre foi das mais fortes.
Na Potala, subimos as escadas sem fim — escadas que se
mostravam bem gastas, e com degraus íngremes — e
finalmente chegamos a nossos apartamentos, que ficavam
bem além do alcance dos monges comuns, e situados por
cima dos armazéns. O Lama Mingyar Dondup foi para seu
quarto e eu para o meu, que ficava ao lado do dele, devido à
posição de meu guia, e por ser eu o seu chela. Segui para a
janela, e como gostava de fazê-lo, fiquei olhando dali. Lá
embaixo havia algum pássaro noturno, chamando a
companheira, no Bosque de Salgueiros. A luz brilhava,
agora, e eu podia ver aquele pássaro — ver as ondulações da
água, enquanto suas pernas compridas se sacudiam bem
como a lama. De algum lugar, bem próximo, veio o canto de
um pássaro em resposta. "Pelo menos aquele marido e
mulher parecem estar em harmonia" — pensei. Logo
chegava o momento de dormir, pois eu tinha de comparecer
ao culto da meia-noite, e já estava tão cansado que talvez na
manhã seguinte eu viesse a perder a hora.
Na tarde do dia seguinte, o Lama Mingyar Dondup veio a
meu quarto, onde eu estudava um livro antigo.
Venha comigo, Lobsang. Acabo de voltar de uma con-
versa com O Mais Precioso, e agora temos de debater
problemas que estão intrigando você.
Voltou-se e seguiu à frente, para seu próprio quarto. Sentado
diante dele, pensei em todas as coisas que tinha no espírito.
Senhor! — perguntei eu. — Por que motivo as pessoas
que se casam são tão inamistosas umas com as outras? Eu
olhei a aura daqueles dois Ragyabs, ontem à noite, e me
pareceu que realmente se odiavam um ao outro; se se
odiavam, por que se casaram?
O lama pareceu realmente triste, por alguns momentos, e
depois disse:
As pessoas esquecem, Lobsang, que vêm a esta terra
para aprender lições. Antes que uma pessoa nasça, enquanto
uma pessoa se acha ainda no outro lado da vida, os prepara-
tivos têm prosseguimento, decidindo que tipo de
companheiro matrimonial será escolhido. Você deve
compreender que muita gente se casa com o que
poderíamos chamar o calor da paixão. Depois a paixão passa,
a novidade se esgota, e a familiaridade cria o desdém!
"A familiaridade cria o desdém." Pensei sobre isso e con-
tinuei pensando. Por que motivo, então, as pessoas se casa-
vam? Era claro que o faziam para que a raça humana conti-
nuasse. Mas por que motivo as pessoas não se acasalavam do
mesmo modo que os animais? Ergui a cabeça, e fiz essa per-
gunta a meu guia. Ele me fitava, ao responder:
Ora, Lobsang! Você me surpreende, pois devia saber
tão bem quanto eu que os chamados animais muitas vezes se
acasalam por toda a vida. Muitos animais o fazem, muitos
pássaros também, certamente os mais evoluídos. Se as
pessoas se juntassem, como você diz, apenas com o fito de
aumentarem a população, nesse caso as crianças resultantes
seriam criaturas quase sem alma, o mesmo, na verdade, que
aquelas criaturas nascidas pelo que se conhece como
inseminação artificial.
Deve haver amor nas relações, deve haver amor entre os
pais, se quiserem que nasça o melhor tipo de criança... de
outra forma, será coisa bem parecida com um produto saído
de uma fábrica!
As questões de marido e mulher realmente me intrigavam.
Pensei em meus próprios pais, minha Mãe, que fora mulher
dominadora, e em meu Pai, que fora realmente duro com os
seus filhos. Eu não sentia muito afeto filial quando pensava
quer nela ou nele. Disse, então, a meu guia:
Mas por que as pessoas se casam no calor da paixão? Por
que não se casam assim como quem faz um negócio?
Lobsang! — disse meu guia. — Isso acontece muitas
vezes com os chineses e japoneses. É freqüente que os casa-
mentos deles sejam combinados, e tenho de reconhecer que
os matrimônios chineses e japoneses são mais bem
sucedidos do que no mundo ocidental. Os próprios chineses
comparam o casamento a uma chaleira. Não se casam na
paixão porque dizem que é como uma chaleira que ferve e
que se esfria. Casam-se com calma, e deixam que a chaleira
mítica vá à fervura; desse modo ela permanece quente por
mais tempo!
Olhou para mim, para ver se eu o acompanhava — para ver
se o assunto se tornara claro.
Mas eu não posso compreender, Senhor, o motivo pelo
qual as pessoas são infelizes, quando juntas.
Lobsang, as pessoas vêm à terra como a uma sala de aula.
Vêm para aprender as coisas, e se marido e mulher fossem
idealmente felizes juntos, desse modo não aprenderiam,
porque nada haveria a aprender. Eles vêm a esta terra para
estarem juntos, e prosseguirem juntos... e isso é parte da
lição... eles têm de aprender a dar e a receber. Cada qual tem
arestas cortantes, arestas ou idiossincrasias que irritam e
magoam o outro cônjuge. O cônjuge irritante tem de
aprender a dominar e, talvez, dar fim ao traço irritante,
enquanto o cônjuge irritado deve aprender a ser tolerante e
a perdoar. Praticamente todo casal poderia viver com êxito,
desde que aprendesse essa lição de dar e receber.
Senhor! — disse eu. — Como deviam marido e mulher
viver juntos?
Marido e mulher, Lobsang, deviam esperar o momento
favorável, e nessa oportunidade ser bondosos, corteses, e
dizer calmamente o que os incomoda. Se marido e mulher
debatessem as questões, seriam, então, mais felizes em seu
matrimônio .
Pensei sobre isso, e imaginei como meu Pai e minha Mãe se
dariam, se procurassem discutir qualquer coisa entre si! A
mim, pareciam o fogo e a água, cada qual tão contrário ao
outro quanto possível. Meu guia, como era óbvio, sabia o
que eu estava pensando, pois prosseguiu:
Deve haver algum dar e receber, porque se as pessoas têm
de aprender alguma coisa, nesse caso necessitam de uma
percepção suficiente para saberem que existe algo de errado
nelas.
Mas como é — perguntei — que uma pessoa se apaixona
por outra, ou se sente atraída por outra? Se as duas se sentem
atraídas uma pela outra em uma etapa, por que logo esfriam?
Lobsang, você saberá muito bem que, se uma pessoa vir a
aura, poderá conhecer a outra. A criatura comum não vê a
aura, mas, não obstante, são numerosos os que têm um
sentimento, podem dizer que gostam desta pessoa, ou não
gostam daquela outra. Na maior parte das vezes, não podem
afirmar qual seja o motivo pelo qual gostam ou desgostam,
mas concordarão em que uma pessoa as agrada, e outra as
desagrada.
Bem, Senhor, como podem gostar repentinamente de
uma pessoa e, repentinamente, desgostar de outra?
Quando as pessoas se encontram em certa etapa, quando
sentem que estão apaixonadas, suas vibrações aumentam e
pode ocorrer muito bem que essas duas, um homem e uma
mulher, tenham elevadas vibrações, tomando-se
compatíveis. Infelizmente, não as deixam sempre elevadas.
A esposa se tornará desmazelada, talvez negue ao marido o
que é direito dele, sem a menor dúvida. O marido, em
seguida, procurará outra mulher, e gradualmente eles se
separarão. Também gradualmente, suas vibrações etéricas
sofrerão alteração, de modo que não mais se mostrem
compatíveis, tornando-se então inteiramente antipáticos.
Sim, eu podia perceber isso, que realmente vinha explicar
muita coisa, mas voltava ao ataque!
Senhor! Fico de todo perplexo em saber que uma
criancinha viva por talvez um mês, e depois morra. Que
possibilidade teve essa criancinha de aprender, ou de pagar o
Carma atrasado? Parece um desperdício para todos, até onde
percebo!
O Lama Mingyar Dondup sorriu de leve, diante de minha
veemência.
Não, Lobsang, nada se desperdiça! Sua mente está con-
fusa. Supõe que uma pessoa viva uma vida, apenas.
Tomemos outro exemplo.
Dito isso, olhou para mim, e depois pela janela, por
momentos. Eu percebia que ele pensava naquela gente dos
Ragyabs
talvez pensasse no filho deles.
Eu quero que você imagine estar acompanhando uma
pessoa que passa por uma série de vidas, — disse meu guia.
Essa pessoa andou bastante mal em uma vida, e nos
últimos anos chegou à conclusão de que não pode prosseguir
mais, decide que a situação está demasiadamente ruim para
ela, de modo que dá fim à vida; comete suicídio. Tal pessoa,
portanto, morreu antes do tempo certo. Todos nós estamos
destinados a viver um determinado número de anos, dias e
horas. Tudo está fixado antes de descermos a esta terra. Se
uma pessoa dá fim à sua própria vida, talvez doze meses
antes do momento em que teria morrido normalmente,
nessas condições é preciso voltar e cumprir os doze meses
restantes.
Olhei para ele, visualizando algumas das possibilidades
notáveis que podiam advir disso. Meu guia prosseguiu:
Uma pessoa dá fim à vida. Continua no mundo astral
até que ocorra uma oportunidade pela qual possa descer
novamente à terra, sob condições apropriadas, e viver o
tempo que tem de cumprir na terra. Esse homem, com doze
meses, bem, ele poderá descer e ser uma criancinha doentia
e morrerá enquanto ainda o for. Ao perder essa criancinha,
também os pais terão ganho algo; terão perdido uma
criancinha, mas terão adquirido experiência, pago um pouco
do que tinham de pagar. Nós concordaremos em que,
enquanto as pessoas se acham sobre a terra, sua visão, as
percepções, os valores... tudo... está deformado. Este, repito,
é o Mundo de Ilusão, o mundo de valores falsos, e quando as
pessoas regressam ao Mundo Maior do Eu Maior, poderão
ver que as lições duras e destituídas de sentido que tiveram
de atravessar neste período da terra não foram tão
disparatadas, afinal de contas.
Olhei ao redor, e pensei em todas as profecias a meu respei-
to; profecias antevendo vicissitudes, profecias antevendo
torturas, profecias antevendo períodos passados em terras
distantes e estranhas. Comentei, então:
Nesse caso, uma pessoa que faz uma profecia está ape-
nas entrando em contato com a fonte de informações; se
tudo está determinado antes que se venha à terra, então é
possível, sob certas condições, adquirir tal conhecimento?
— Sim, isso é inteiramente correto, mas não creia que tudo
esteja determinado de modo inevitável. As linhas básicas se
acham presentes. Recebemos certos problemas, certas linhas
a seguir, e ali somos deixados, para fazermos o melhor
possível. Uma pessoa pode ter êxito, outra fracassar. Olhe a
coisa da seguinte maneira: Suponho que dois homens sejam
informados de que têm de ir daqui a Kalimpong, na Índia,
não precisam seguir a mesma trilha ou caminho, mas é
necessário que cheguem ao mesmo destino, se o
conseguirem. Um deles adotará uma rota, e o segundo
tomará outra; dependendo da rota que adotem, suas
experiências e aventuras serão afetadas. Assim temos a vida,
nosso destino é conhecido, mas como chegamos a ele, eis
algo que depende de nós mesmos.
Enquanto falávamos, um mensageiro surgiu, e meu guia,
com palavras curtas de explicação a mim, o acompanhou
pelo corredor. Fui ter novamente à janela, apoiando os
cotovelos no peitoril, o rosto nas mãos. Pensei em tudo que
ouvira, pensei em todas as experiências que atravessara, e
todo o meu ser se enchia de amor por aquele grande
homem, o Lama Mingyar Dondup, meu guia, que me
demonstrara mais amor do que meus pais, em qualquer
momento da vida. Decidi que, fosse como fosse o futuro, eu
sempre agiria e me comportaria como se meu guia estivesse
à meu lado, examinando meus atos. Lá embaixo, nos
campos, monges músicos praticavam sua arte; lá estavam os
diversos "brumps-brumps-brumps", gemidos e guinchos
emitidos por seus instrumentos. Ociosamente eu os fitava. A
música nada representava para mim, pois eu era surdo aos
acordes, mas vi que se tratava de homens muito sérios,
esforçando-se bastante para produzirem boa música. Voltei-
me, procurando ocupar-me novamente com um livro.
Logo me cansei da leitura; estava inquieto. As coisas
aconteciam cada vez mais depressa, comigo. Cada vez mais
ociosamente eu folheava as páginas e então, tomado de uma
decisão repentina, pus tudo aquilo entre as capas de madeira
esculpida e amarrei as fitas. Tratava-se de um livro que devia
ser envolto em seda. Seguindo o cuidado inato, completei
minha tarefa, e deixei o livro de lado.
Pondo-me em pé, fui à janela e pus-me a olhar para fora. A
noite estava um tanto abafada, parada, sem um só sopro de
vento. Voltei-me, e saí do quarto. Tudo estava parado,
parado como a quietude de um grande edifício que parecia
dotado de vida. Ali, na Potala, há alguns séculos que os
homens vinham trabalhando e desempenhando tarefas
sagradas, e por isso o próprio edifício como que criara uma
vida própria. Segui com pressa até a extremidade do
corredor, e ali subi em uma escada. Logo chegava ao telhado
alto, ao lado dos Túmulos Sagrados.
Em silêncio, fui ter a meu lugar costumeiro, um ponto bem
abrigado dos ventos, que normalmente desciam com força
das montanhas. Encostado a uma Imagem Sagrada, e com as
mãos entrelaçadas na nuca, fiquei a contemplar o Vale.
Cansando-me disso após algum tempo, deitei-me e fitei as
estrelas. Enquanto o fazia, tive a mais estranha das
impressões: todos aqueles mundos lá em cima estavam
girando em torno da Potala. Por algum tempo isso me fez
sentir tonteira, como se eu estivesse caindo. Enquanto
observava, notei um traço fino de luz. Tornando-se mais
intenso, ele explodiu repentinamente numa luz brilhante.
"Outro cometa que acaba!" pensei, enquanto ele se
queimava, expirando em um chuveiro de fagulhas
vermelhas.
Tomei consciência de um "shush-shush" quase inaudível,
por perto. Com cautela, ergui a cabeça, imaginando o que
podia ser. À luz fraca das estrelas, vi uma figura de capuz,,
andando de um lado para outro, na parte oposta aos Túmulos
Sagrados. Pus-me a observar. A figura seguiu até a parede de
frente para a cidade de Lhasa. Observei o perfil, enquanto
ele fitava a distância. Era o Homem mais solitário do Tibete,
a meu ver. O Homem com mais preocupações e
responsabilidades do que qualquer outro no país. Ouvi um
suspiro profundo, e tive curiosidade de saber se também Ele
tivera profecias tão duras quanto as minhas. Com cuidado,
rolei para o lado e me arrastei, afastando-me dali em
silêncio; não desejava intrometer-me — ainda que
inocentemente — nos pensamentos particulares de outro.
Logo cheguei à entrada, e desci em silêncio para o abrigo de
meu próprio quarto.
Uns três dias depois, eu me achava presente quando meu
guia, o Lama Mingyar Dondup, examinava o filho do casal
de Ragyabs. Ele despiu a criança, examinando-lhe
cuidadosamente a aura. Por algum tempo, meditou, fitando a
base do cérebro. Aquela criança não chorou, nem
choramingou durante todo o exame. Como eu sabia, embora
fosse pequenina, compreendia que o Lama Mingyar Dondup
estava procurando curá-la. Meu guia, finalmente, pôs-se em
pé, e disse:
Bem, Lobsang! Vamos curá-lo. É claro que ele tem um
mal causado por dificuldades no nascimento.
Os pais esperavam num quarto próximo à entrada. Eu, tão
próximo à meu guia quanto uma sombra, fui com ele ver
aquela gente. Quando entramos, eles se prostraram aos pés
do Lama. Com suavidade, ele lhes falou:
O seu filho pode ser curado, e o será. Em nosso exame,
tornou-se claro que no momento do nascimento o deixaram
cair, ou bateram nele. Isso pode ser remediado, e vocês não
precisam ter receio.
A mãe tremia, ao responder:
Santo Lama Médico, é como o senhor diz. Ele veio de
chofre, sem ser esperado, e caiu ao chão. Eu estava sozinha,
nesse momento.
Meu guia fez um gesto de solidariedade e compreensão,
dizendo:
Voltem amanhã a esta hora, e tenham a certeza de que
poderão levar seu filho... curado.
Eles ainda faziam mesuras e prostrações, enquanto
deixávamos a sala.
Meu guia fez com que eu examinasse cuidadosamente a
criança.
Olhe, Lobsang, há pressão aqui — indicou. — Este
osso está comprimindo o nervo... observe como a luz
áurica toma a forma de leque ao invés de ser redonda.
Tomou minhas mãos nas suas, fazendo-me apalpar ao redor
da área afetada.
Vou reduzir, afastar o osso que está causando a obstru-
ção. Observe!
Mais depressa do que eu consegui ver, apertou os polegares,
para dentro, para fora. O menino não gritou; fora rápido
demais para sentir dor. Agora, porém, a cabeça não pendia
para o lado, como antes, mas se mostrava firme, sobre o
pescoço, como devia ser. Por algum tempo, meu guia
massageou o pescoço da criança, cuidadosamente, da cabeça
para baixo, em direção ao coração, e nunca na direção
oposta.
No dia seguinte, à hora marcada, os pais regressaram e
ficaram quase delirantes de alegria ao verem o que parecia
milagre.
Vocês terão de pagar por isto, — disse o Lama
Mingyar Dondup, sorrindo. — Vocês receberam o bem.
Assim sendo, precisam pagar o bem, um ao outro. Não
briguem, nem estejam em desacordo um com o outro, pois
uma criança absorve as atitudes dos pais. O filho de pais sem
bondade torna-se destituído dela. A criança de pais infelizes
e sem amor é infeliz e sem amor, à seu turno. Paguem...
com bondade e amor um para com o outro. Nós os
visitaremos, para ver a criança, dentro de uma semana.
Dito isso, sorriu, afagando a face da criança, e depois se
voltou e saiu, tendo-me ao lado.
— Algumas das criaturas muito pobres são orgulhosas,
Lobsang, ficam perturbadas se não tiverem dinheiro com
que pagar. Faça sempre o possível para que elas pensem que
estão pagando. Eu lhes disse que precisam pagar. Isso os
agradou, pois eles acharam que, em sua melhor roupa,
haviam-me impressionado a tal ponto que eu julguei tratar-
se de gente com dinheiro. O único modo pelo qual eles
podem pagar é, como eu disse, sendo bondosos um com o
outro. Se o homem e a mulher mantiverem seu orgulho, seu
amor-próprio, Lobsang, eles farão qualquer coisa que
pedirmos!
De volta à meu quarto, apanhei o telescópio com que esti-
vera brincando. Estendendo os tubos luzidios de latão, olhei
na direção de Lhasa. Duas figuras surgiram rapidamente em
foco, uma delas levando uma criancinha nos braços.
Enquanto eu observava, o homem passou o braço pelo
ombro da mulher, beijando-a. Em silêncio, guardei o
telescópio e dei prosseguimento a meus estudos.
11

Estávamo-nos divertindo, diversos de nós, no pátio,
caminhando sobre nossas andas, procurando um derrubar o
outro. Aquele que permanecesse sobre as andas, invencível
diante dos assaltos efetuados pelos demais, seria o vencedor.
Três de nós caímos em meio ao estrugir de gargalhadas, pois
alguém enfiara as andas em um buraco no chão e tombara
sobre nós, derrubando-nos.
O velho Mestre Raks estava roxo de raiva, hoje, vocês
viram? — disse um de meus companheiros, feliz da vida.
Sim! — gritou outro do grupo. — Os outros haveriam de
ficar verdes de inveja se o vissem em tal estado de espírito e
desabafar em nós, sem perder o fôlego.
Nós nos entreolhamos, e começamos a rir; estava roxo?
Verde de inveja? Chamamos os outros para que saíssem das
andas e se sentassem em nossa companhia, e começamos
um brinquedo novo. Quantas cores podíamos usar,
descrevendo as coisas?
Roxo na cara! — exclamou um deles.
Não — respondi —, já temos o rosto roxo de raiva.
Assim é que prosseguimos, partindo de um estado de espí-
rito que fazia suas vítimas tornarem-se roxas de raiva, até um
professor que se mostrava verde de inveja. Outro se referiu a
uma mulher escarlate, que vira no mercado, em Lhasa! Por
momentos, não soubemos se isso estaria certo, porque não
tínhamos a certeza do que significava uma mulher escarlate.
Eu sei! — retorquiu o menino à minha direita. —
Podemos ter um homem que esteja amarelo, amarelo de
covardia. Afinal de contas, o amarelo é usado muitas vezes
para indicar a covardia.
Pensei sobre tudo isso, parecendo-me que, se tais ditos eram
de usança comum em nossa língua, nesse caso deveria haver
alguma causa; e isso me fez sair à procura de meu guia, o
Lama Mingyar Dondup.
Honrado Lama! — disse eu, irrompendo no estúdio
dele, um tanto agitado.
Ele me fitou, sem se mostrar perturbado, em absoluto, com
minha entrada sem cerimônia.
Honrado Lama, por que motivo utilizamos as cores
para descrever os estados de espírito?
Ele baixou o livro que estudava, fazendo-me um gesto para
que me sentasse.
Você deve estar falando desses termos de uso comum, a
respeito de um roxo de raiva, ou homem verde de inveja —
sugeriu.
Sim — respondi, ainda mais agitado, vendo que ele sabia a
que eu me referia. — Eu realmente gostaria de saber o
motivo por que todas essas cores são importantes. Deve
haver explicação para isso!
Ele olhou para mim, voltou a rir, replicando:
Bem, Lobsang, com essa você se candidatou a mais
uma preleção extensa. Vejo, porém, que andou fazendo
algum exercício fatigante, e acho que podemos tomar chá...
eu já estava à espera do meu, aliás... antes de prosseguirmos
com este assunto.
O chá não tardou a chegar. Dessa feita, foi chá com tsarnpa,
o mesmo que qualquer outro lama, monge ou menino, em
toda a Lamaseria, estaria recebendo. Comemos em silêncio,
eu pensando sobre cores e imaginando qual podia ser a
implicação das mesmas. Logo terminávamos nossa refeição
bastante frugal, e olhei para meu guia, com ar de expectativa.
Você sabe um pouco a respeito dos instrumentos
musicais, Lobsang — principiou ele. — Sabe, por exemplo,
que existe um instrumento musical muito utilizado no
Ocidente, conhecido pelo nome de piano Há de lembrar-se
que, juntos, examinamos uma fotografia com tal
instrumento. Ele contém muitas teclas, umas negras, outras
brancas. Bem, esqueçamos as negras, e imaginemos ao invés
disso que temos um teclado com, digamos, três quilômetros
de extensão... ainda mais comprido, se você quiser... e
contendo todas as vibrações que possam ser obtidas, em
qualquer plano da existência.
Dito isso, observou-me para ver se o acompanhava, porque
o piano era um instrumento estranho para mim. Eu — como
meu guia dissera — vira aquilo somente em ilustrações.
Satisfeito ao verificar que eu percebia a idéia essencial, ele
prosseguiu:
Se você tiver um teclado, contendo todas as vibrações,
nesse caso a faixa completa de vibrações humanas estaria,
talvez, nas três teclas do meio. Você compreenderá... pelo
menos, espero que seja assim!... que tudo consiste de
vibrações. Tomemos a vibração mais baixa que o homem
conhece. Trata-se daquela de um material duro. Você a toca,
e ela obstrui a passagem de seu dedo, e ao mesmo tempo
todas as moléculas desse material está vibrando! Pode ir mais
além, subindo o teclado imaginário, e ouvirá uma vibração
conhecida por som. Pode subir mais, e seus olhos receberão
uma vibração chamada visão.
Com essa, eu me pus ereto, num movimento rápido; como
podia a visão ser uma vibração? Se eu olhasse para uma
coisa... bem, como é que a via?
Você vê, Lobsang, porque o artigo que está sendo
visto vibra e cria uma agitação que é percebida pelo olho.
Em outras palavras, um artigo que você possa ver gera uma
onda que pode ser recebida pelos bastões e cones no olho,
que a seu turno transfere esses impulsos em imagem do
artigo contemplado. É tudo muito complicado e não
precisamos examinar o assunto em detalhe. Estou apenas
procurando fazer ver que tudo é vibração. Se subirmos mais
na escala, temos ondas de rádio, ondas telepáticas, e as ondas
daquelas pessoas que vivem em outros planos. Mas,
naturalmente, eu disse que íamos limitar-nos, de modo
específico, àquelas três notas imaginárias do teclado, que
podern ser percebidas pelos seres humanos como coisas
sólidas, como som, ou como visão.
Eu tinha de pensar sobre tudo isso, tratando-se de uma
questão que realmente fazia meu cérebro tinir. Nunca me
opunha a aprender, entretanto, mediante os métodos
bondosos de meu guia. A ocasião única em que eu detestava
aprender era quando algum professor tirânico esbordoava
meu pobre manto antigo com um bastão inteiramente
desagradável.
Você pergunta acerca das cores, Lobsang. Bem, certas
vibrações se imprimem na aura da pessoa como cores.
Assim, por exemplo, se uma pessoa estiver muito abatida...
se ela estiver inteiramente infeliz... nesse caso parte de seus
sentidos emitirão uma vibração, ou freqüência que se
aproxima da cor a que chamamos roxo, de modo que até as
pessoas que não sejam clarividentes podem quase percebê-
lo, e assim é que essa cor entrou na maioria das línguas em
todo o mundo, indicando um estado de abatimento... um
estado de espírito desagradável, infeliz.
Eu começava a compreender a idéia, agora, mas ainda estava
intrigado, sem saber como uma pessoa podia ficar verde de
inveja, e o disse.
Lobsang, por dedução, você poderia ter raciocinado por si
mesmo que, quando uma pessoa está sofrendo do vício
conhecido por inveja, suas vibrações se transformam um
tanto, de modo que dá a impressão, às demais, de ficar
verde. Não quero dizer, com isso, que seus traços
fisionômicos se esverdeiem, como você sabe muito bem,
mas tal criatura dá a impressão de ser verde. Também
gostaria de tornar claro a você que, quando uma pessoa
nasce sob uma determinada influência planetária, nesse caso
é afetada com força ainda maior por essas cores.
Sim! — exclamei. — Sei que uma pessoa nascida sob Áries
gosta do vermelho!
Meu guia riu, e disse:
Sim, isso está sob a lei da harmonia. Certas pessoas
correspondem mais prontamente à uma certa cor, porque a
vibração da mesma está em simpatia íntima com sua própria
vibração básica. É esse o motivo pelo qual uma pessoa de
Áries (por exemplo) prefere uma cor vermelha... porque a
pessoa de Áries tem muito vermelho em sua composição, e
acha a própria cor vermelha agradável à vista.
Eu ansiava por fazer uma pergunta; já tinha conhecimento
desses verdes e roxos, e podia até compreender o motivo
pelo qual uma pessoa absorta em profunda meditação tivesse
sua aura permeada de traços castanhos. Mas não
compreendia o motivo pelo qual uma mulher fosse escarlate!
'
Honrado Lama! — explodi, incapaz de conter mais
minha curiosidade. — Por que uma mulher pode ser
chamada de mulher escarlate?
O meu guia olhou-me como se fosse explodir, e por
momentos fiquei dando tratos à bola, sem saber o que
dissera e que quase o levara a ter um acesso de hilaridade
reprimida. Então ele me disse, bondosamente e com
detalhes, de modo que no futuro eu não tivesse qualquer
dúvida sobre a questão!
Quero dizer-lhe, também, Lobsang, que cada pessoa
tem uma freqüência básica de vibração, isto é, as moléculas
de cada um vibram em certa cadência, e o comprimento de
ondas geradas pelo cérebro de uma pessoa pode classificar-se
em grupos especiais. Não há duas pessoas com o mesmo
comprimento de onda... nem o mesmo comprimento de
onda é idêntico em todos os aspectos, mas quando duas
pessoas se encontram próximas ao mesmo comprimento, ou
quando este acompanha certas oitavas de outra, nesse caso é
dito que são compatíveis, e geralmente dão-se muito bem,
quando juntas.
Olhei para ele, e me pus a pensar acerca de alguns de nossos
artistas altamente temperamentais.
Honrado Lama, é verdade que alguns dos artistas vibram
em cadência maior do que outros? — indaguei
Não há dúvida alguma, Lobsang. Para o homem ter o que
se conhece por inspiração, para ser um bom artista, nessas
condições sua freqüência de vibrações deve ser muitas vezes
mais elevada do que o normal. Às vezes ela o torna
irritadiço... difícil de lidar. Estando em cadência mais alta
de vibração do que a maioria, ele tende a encarar com
desdém os mortais inferiores. Entretanto, muitas vezes o
trabalho que executa é tão bom que conseguimos tolerar os
seus modos desdenhosos e suas fantasias!
Eu imaginei aquele grande teclado, estendendo-se por
diversos quilômetros. Pareceu-me estranho que, num
teclado em tais condições, o alcance humano de experiência
se limitasse a apenas umas três teclas, e manifestei tal
estranheza.
O ser humano, Lobsang, gosta de pensar que é a coisa
única na criação que importa, como você sabe. Na verdade,
existem muitas, muitíssimas outras formas de vida, além dos
seres humanos. Em outros planetas, existem formas de vida
que são inteiramente desconhecidas dos seres humanos, e o
homem comum nem sequer poderia começar a entender tal
forma de vida. Em nosso teclado imaginário, os habitantes
de um planeta muito distante deste Universo estariam em
extremo diferente do teclado, diferente daquele em que se
situariam os seres humanos. Também as pessoas nos planos
astrais de existência encontrar-se-iam em faixa mais alta do
teclado, pois um fantasma que pode atravessar uma parede é
de natureza tão tênue que sua própria cadência de vibrações
seria realmente alta, embora o teor molecular se mostrasse
baixo.
Ele olhou para mim, e riu de minha expressão de
perplexidade, explicando então:
Bem, como você sabe, um fantasma pode atravessar
uma parede de pedras, porque a mesma consiste de
moléculas em vibração. Existem espaços entre cada
molécula, e se houver um ser composto de moléculas tão
pequenas que elas possam passar entre os espaços de uma
parede de pedras, nesse caso esse ser conseguirá atravessá-la,
sem qualquer impedimento. Naturalmente, as criaturas
astrais possuem uma cadência muito elevada de vibração, e
são de uma natureza tênue, isto é, não são sólidas, o que, a
seu turno, significa que elas têm poucas moléculas. A
maioria das pessoas imagina que o espaço além de nossa
terra... além da orla de ar acima de nós... esteja vazio. Isso
não acontece assim, o espaço possui moléculas por toda a
parte. São, em sua maioria, moléculas de hidrogênio, ampla-
mente dispersas, mas as moléculas estão lá, e podem ser
medidas, sem a menor dúvida, de modo bem semelhante
àquele pelo qual a presença de um chamado fantasma pode
ser medida.
As conchas do Templo soaram, chamando-nos novamente.
Voltaremos a este assunto amanhã, Lobsang, porque
quero que você fique muito bem esclarecido sobre esta
questão, — disse meu guia, ao nos separarmos à entrada do
Templo.
O encerramento do Serviço do Templo foi o início de uma
corrida — a corrida para o alimento. Estávamos todos
bastante famintos, pois nossos próprios suprimentos de
alimento haviam-se esgotado. Era aquele o dia em que se
recebia um suprimento novo de cevada recém-torrada. No
Tibete, todos os monges carregam uma pequena bolsa de
couro, com cevada, que foi torrada e moída, e que,
misturada ao chá amanteigado, torna-se tsampa. Assim é que
seguimos com pressa, e logo nos juntamos à multidão que
esperava para encher as bolsas. Em seguida, fomos para o
Salão, onde havia chá, de modo que pudéssemos fazer nossa
refeição da noite.
Aquela substância era horrível. Eu mastiguei o meu tsampa,
perguntando a mim mesmo se havia algo de errado no meu
estômago. Ela apresentava um paladar horrível, oleoso e
queimado, e eu francamente não sabia como engoli-la.
Bolas! — resmungou o menino a meu lado. — Esta coisa
foi queimada demais, ninguém vai conseguir engolir!
A mim, parece que tudo ficou estragado, neste lote de
alimento! — afirmei.
Tentei um pouco mais, contorcendo o rosto em concen-
tração aflita — imaginando como iria engolir aquilo. No Ti-
bete, desperdiçar comida é um grande pecado. Olhei ao
redor, e vi que os outros faziam exatamente o mesmo,
olhavam em volta! A tsampa era ruim, não havia dúvida
alguma. Por toda a parte, as tigelas estavam sendo postas no
chão, e isso era ocorrência muito rara em nossa
comunidade, onde todos se achavam sempre à beira da
fome. Engoli apressadamente o tsampa que tinha na boca, e
algo muito estranho no mesmo atingiu-me com força
inesperada, no estômago. Pondo-me rapidamente em pé, e
levando a mão à boca, tomado de apreensão, saí correndo
para a porta...
Bem! Jovem, -— disse uma voz de sotaque estranho,
quando me voltei para a porta, depois de haver vomitado
violentamente a comida perturbadora.
Voltei-me, e vi Kenji Tekeuchi, o monge japonês que
estivera em toda parte do mundo, vira tudo, fizera tudo, e
agora estava pagando por tudo, com ataques periódicos de
instabilidade mental. Ele olhou para mim, com uma
expressão de solidariedade .
Coisa horrível, não é? — perguntou, solidário. — Tive a
mesma dificuldade, e vim cá fora pelo mesmo motivo.
Teremos de ver o que vai acontecer. Vou ficar aqui fora
alguns momentos, contando que o ar puro afaste parte do
miasma que esta comida ruim causou.
Senhor! — disse eu, com desânimo. — Esteve em toda
parte, e pode dizer por que motivo, aqui no Tibete, rece-
bemos alimentação tão horrivelmente monótona? Estou
inteiramente farto de tsampa e chá, e chá com tsampa, e
tsampa com chá. Às vezes, mal consigo enfiar essa porcaria
pela goela abaixo.
O japonês fitava-me com grande compreensão e solidarie-
dade ainda maior.
Ah! Você, então, pergunta a mim, porque eu provei
muitas espécies diferentes de comida? Sim, e provei mesmo.
Viajei muito toda minha vida. Comi na Inglaterra,
Alemanha, Rússia... quase em toda parte do mundo. A
despeito de meus votos sacerdotais, vivi bem, ou pelo
menos julguei que vivia bem, nessa ocasião, mas agora
minha negligência quanto aos votos que fiz trouxe-me
remorsos.
Olhava para mim, e pareceu voltar novamente à vida, com
um tremor em todo o corpo.
— Oh! Sim! Perguntou o motivo pelo qual temos comida tão
monótona. Vou-lhe dizer. As pessoas no Ocidente comem
muito, e dispõem de variedade demasiada de comida. Os
órgãos digestivos trabalham em base involuntária, isto é, não
são controlados pela parte voluntária do cérebro. Conforme
ensinamos, se o cerebro, por meio dos olhos, tiver a
oportunidade de avaliar o tipo de comida que vai ser
consumido, nesse caso o estómago consegue soltar a
quantidade e concentração necessárias de sucos gástricos, a
fim de envolver e trabalhar o alimento. Se, por outro lado,
tudo for engolido indiscriminadamente, e a pessoa estiver
ocupada em conversa tola, durante esse tempo, nesse caso
os sucos não são preparados, a digestão não se pode efetuar,
e a pobre pessoa tem indigestão e, mais tarde, talvez sofra de
úlceras gástricas. Você quer saber por que sua comida é
simples? Bem! Quanto mais comum e, razoavelmente, mais
monótona for a comida consumida, tanto melhor se mostra
para o desenvolvimento das partes psíquicas do corpo.
Estudei a fundo o ocultismo, tive grandes poderes de
clarividência, e depois devorei todos os tipos de preparados
inacreditáveis, e bebidas ainda mais incríveis. Perdi todos os
meus poderes metafísicos, de modo que agora tenho de vir
aqui, ao Chakpori, para ser tratado, para ter um lugar onde
descansar o corpo cansado, antes de deixar esta terra. E
quando eu a houver deixado, em questão de poucos meses,
os quebradores de cadáveres farão a tarefa... completarão a
tarefa... que uma mistura indiscriminada de bebidas e
alimentos iniciou.
Olhou para mim, em seguida teve um daqueles tremores
estranhos, outra vez, e disse:
— Oh, sim, meu menino! Receba meu conselho, fique com
a comida simples todos os dias de sua vida, e jamais perderá
os seus poderes. Se não atender ao meu conselho, e enfiar
por sua garganta esfaimada tudo que puder, perderá o que
tem, e o que ganhará? Bem, meu menino, você ganhará uma
indigestão; ganhará úlceras gástricas, juntamente com mau
gênio. Oh, oh! Vou-me embora, aí vem um outro acesso.
O monge japonês, Kenji Tekeuchi, pos-se em pé, trêmulo, e
cambaleou na direção do Alojamento dos Lamas. Eu o fitava,
sacudindo a cabeça, com tristeza. Gostaria muitíssimo de
poder conversar com ele por mais tempo. Que tipo de
comida seria aquele de que falara? Teria bom sabor? Depois,
controlei-me com um estremecimento; por que tentar-me,
quando tudo que tinha à frente era chá amanteigado e
rançoso, e tsampa, que realmente havia queimado a ponto
de se tornar uma massa esturricada, à qual alguma substância
estranha e oleosa fora adicionada? Sacudi a cabeça, e
caminhei novamente para o Salão.
Mais tarde, aquela noite, estava conversando com meu guia,
o Lama Mingyar Dondup.
Honrado Lama, por que motivo as pessoas compram
horóscopos aos vendedores, lá na Trilha?
Meu guia sorriu, com tristeza, enquanto respondia:
Naturalmente, como você sabe, não pode haver
qualquer horóscopo de valor, a menos que seja preparado
individualmente para a pessoa a quem ele alega referir-se.
Nenhum horóscopo pode ser preparado na base de produção
em massa. Os horóscopos dos vendedores na Trilha, lá
embaixo, servem apenas para que eles consigam dinheiro
dos crédulos.
Olhava para mim, e aduziu:
Naturalmente, Lobsang, os peregrinos que têm esses
horóscopos voltam para casa, e mostram essa lembrança da
Potala. Ficam satisfeitos, bem como o vendedor. Assim
sendo, por que pensar nisso? Todos se satisfazem.
O senhor acha que as pessoas devem mandar preparar
horóscopos? — perguntei.
Não, Lobsang, não acho. Apenas em certos casos, como é
o seu. Com freqüência demasiada os horóscopos são apenas
usados para poupar à pessoa o esforço de adotar um rumo de
ação de sua própria responsabilidade. Eu me oponho muito
ao uso da astrologia ou horóscopos a menos que exista um
motivo definido e específico para isso. Como você sabe, a
pessoa comum é como um peregrino que segue até a Cidade
de Lhasa. Ele não pode ver a estrada à frente, porque árvores
e casas e curvas da estrada o impedem. Tem de estar
preparado para o que aparecer. Daqui, podemos olhar lá
embaixo a estrada, e ver qualquer obstrução, pois estamos
em elevação maior. O peregrino, portanto, é como uma
pessoa sem horóscopo. Nós, mais altos no ar do que o
peregrino, somos como as pessoas que têm o horóscopo,
pois podemos ver a estrada à frente, podemos ver os
obstáculos e dificuldades, e desse modo devíamos
encontrar-nos em posição de sobrepujar as dificuldades,
antes que elas realmente ocorram.
Há uma outra coisa que me perturba muito, Honrado
Lama. Pode dizer-me como sabemos das coisas, nesta vida,
que conhecemos no passado?
Olhei para ele ansiosíssimo, pois sempre tinha medo de
fazer perguntas assim, não me cabendo o direito de
mergulhar com tanta profundidade nesses assuntos, mas ele
não se ofendeu. Ao invés disso, respondeu:
Antes de virmos para esta terra, Lobsang, planejamos
o que pretendíamos fazer. O conhecimento foi guardado em
nosso subconsciente, e se pudéssemos entrar em contato
com esse subconsciente... como alguns de nós o podem
fazer!... nesse caso, saberíamos de tudo que tínhamos
planejado. Naturalmente, se desejássemos conhecer tudo
que havíamos planejado, não haveria mérito algum em
esforçar-nos por melhorarmos, porque saberíamos estar
seguindo um plano predeterminado. Por alguns motivos, às
vezes, a pessoa entra em sono, ou sai do corpo, enquanto se
acha consciente, e entra em contato com seu Eu Maior. Às
vezes, o Eu Maior poderá trazer conhecimento do
subconsciente e transferi-lo de volta ao corpo na terra, de
modo que, quando o corpo astral regressa ao corpo carnal,
há o conhecimento, na mente, de certas coisas que
ocorreram na vida passada. Pode servir de advertência espe-
cial para não cometer um engano, que poderia ter sido
cometido em vida após vida. As vezes, uma pessoa sente o
grande desejo de cometer suicídio... e isso é apenas um
exemplo,.. e se foi castigada, vida após vida, por fazê-lo,
nesse caso é freqüente ter uma recordação de algo acerca da
autodestruição, na esperança de que tal lembrança leve o
corpo a abster-se da autodestruição.
Pensei acerca de tudo isso, e depois fui para a janela, pondo-
me a olhar para fora. Lá embaixo, estendia-se o verde da área
alagada e o belo verde das folhas dos salgueiros. Meu guia
interrompeu-me os devaneios.
Você gosta de olhar por essa janela, lobsang. Será que
lhe ocorre que olha para fora com tanta freqüência porque
acha que o verde é muito agradável aos olhos?
Enquanto pensava nisso, compreendi que instintivamente
via o verde, após ter estudado os meus livros.
O verde, Lobsang, é a cor mais repousante para os
olhos. Ela traz descanso aos olhos cansados. Se for para o
mundo ocidental, verificará que em alguns teatros de lá
existem lugares chamados "a sala verde", onde atores e
atrizes vão descansar os olhos, depois de estarem submetidos
aos palcos cheios de fumaça e ao brilho ofuscante das
lâmpadas.
Abri os olhos, espantado diante disso, e achei que daria
prosseguimento a essa questão de cores, quando a
oportunidade se apresentasse. Meu guia disse:
— Tenho de deixá-lo agora, Lobsang, mas amanhã volte a
ter comigo, porque vou ensinar-lhe outras coisas.
Pôs-se em pé, bateu-me gentilmente no ombro e saiu. Por
algum tempo, permaneci espiando pela janela, olhando para
o verde da grama no pântano e as árvores que se mostravam
tão repousantes à visão.
12

Eu me afastei um pouco da trilha, olhando para a encosta da
montanha. Meu coração pesava no peito, e eu tinha os olhos
quentes das lágrimas que não me atrevia a derramar. O
ancião estava sendo carregado, descendo a montanha. O
monge japonês Kenji Tekeuchi havia "regressado a seus
Ancestrais". Agora, os Quebradores de Cadáveres levavam-
lhe o pobre corpo encarquilhado, tirando-o de nós. Estaria
seu Espírito, naquele momento, percorrendo uma trilha
orlada de flores de cerejeira? Ou estaria vendo os erros de
sua vida, e planejando o regresso? Olhei novamente, antes
que os homens fizessem uma curva na trilha. Olhei lá para
baixo, vendo o vulto inerme e comovente que já fora um
homem. Uma sombra encobriu o sol, e por algum tempo
imaginei perceber um semblante no formato das nuvens.
Era verdade — perguntava-me a mim mesmo — que havia
Guardiães do Mundo? Grandes Espíritos Guardiães, que
tratavam de fazer com que o Homem tivesse sofrimentos na
Terra, a fim de poder viver? Ora, deviam ser como
professores de escola, estava eu pensando. Kenji Tekeuchi
talvez fosse encontrar-se com eles. Talvez lhe dissessem que
ele aprendera bem. Eu contava que assim fosse, pois ele fora
um velho frágil, que vira muita coisa e sofrera bastante. Ou
teria de voltar à carne outra vez, reencarnar, de modo que
pudesse aprender mais? E quando ele viria? Em uns
seiscentos anos, ou agora?
Pensei no assunto; pensei no Culto que acabara de deixar, o
Culto de Orientação dos Mortos. As tremeluzentes lâmpadas
de manteiga, cintilando como as chamas de uma vida débil.
Pensei nas nuvens de incenso odorífero, que pareciam
formar criaturas vivas. Por momentos, eu julgara que Kenji
Tekeuchi voltara a ter conosco, como ser vivo, ao invés de
seguir carregado à nossa frente, como um cadáver
encarquilhado. Agora, talvez, ele estivesse examinando o
Registro Akáshico, esse Registro indelével de tudo quanto já
acontecera. Talvez ele conseguisse ver onde errara e
lembrar-se disso, quando voltasse.
O ancião me ensinara muita coisa. A seu modo estranho,
gostara de mim, falara comigo como se fosse um igual.
Agora, não estava mais sobre a Terra. Ociosamente, desferi
um pontapé numa pedra, esfreguei as sandálias surradas no
chão. Ele tivera uma mãe? De algum modo, não conseguia
imaginá-lo jovem, tendo família. Deveria ter sido sozinho,
vivendo entre nós, estranhos, tão longe de seu próprio país,
tão longe da brisa cálida e de sua própria Montanha Sagrada.
Com freqüência ele me falara sobre o Japão, e nessas
ocasiões sua voz se tornara roufenha, os olhos tinham
adquirido expressão estranha.
Certo dia, ele me chocara, dizendo que as pessoas
esquadrinhavam as questões ocultas, quando fariam melhor
se esperassem, até estarem prontas, ao invés de tentarem
importunar um Mestre.
— O Mestre sempre vem, quando o estudante está pronto,
menino — ele me dissera. — E quando você tiver um
Mestre, faça tudo que ele disser, pois apenas então você
estará pronto.
O dia se tornara mais escuro. Nuvens se apresentavam e o
vento começava a fazer voar as pedrinhas.
Lá embaixo, na planície, um pequeno grupo de homens
surgiu, vindo da base da montanha. Com suavidade, eles
colocaram seu fardo no dorso de um pônei, montaram nos
seus e seguiram devagar. Eu fiquei a olhar para a planície até
que, finalmente, o pequeno cortejo desaparecesse. Devagar,
voltando-me para outro lado, subi a montanha.

   N.T. — Etapa atingida por quem se torna um Buda.